"Nossa alma como um pássaro escapou do laço que lhe armara o caçador
— Se o Senhor não estivesse ao nosso lado, quando os homens investiram contra nós, com certeza nos teriam devorado no furor de sua ira contra nós.
— Então as águas nos teriam submergido, a correnteza nos teria arrastado, e então, por sobre nós teriam passado essas águas sempre mais impetuosas.
— O laço arrebentou-se de repente, e assim nós conseguimos libertar-nos. O nosso auxílio está no nome do Senhor, do Senhor que fez o céu e fez a terra." (Sl 123)
No dia do Santos Inocentes o salmo que lemos acima é proclamado. O salmista parece estar convicto de que a sua vida é breve; ele diz;" Nossa alma como um pássaro escapou do laço que lhe armara o caçador." A vida na sua brevidade, a vida na sua finitude, escapa perante os nossos olhos. Uma hora estamos aqui, no minuto seguinte não sabemos se teremos a sorte de estarmos vivos. O sopro da vida é breve, passa num piscar de olhos. Por isso, o salmista afirma que o laço, a trama, o desenrolar das situações da vida, tornou-se insuficiente, a alma escapou como um pássaro que voa rapidamente de seu ninho.
Num segundo momento o salmista canta as maravilhas do Senhor, e a estrofe mais comovente é esta:" Se o Senhor não estivesse ao nosso lado, quando os homens investiram contra nós, com certeza nos teriam devorado no furor de sua ira contra nós." O inimigo mesmo com a força do material bélico, não tem poder sobre os escolhidos do Senhor, a alma escapa e retorna para o seu Criador. Nem a morte é capaz de retirar a certeza de que não caminhamos sós. Aquelas crianças, os Santos Inocentes da Igreja, morreram por causa do furor de Herodes. Ele temia perder o seu reinado, ao saber que um Menino havia nascido. O Menino referido não era qualquer um, por este motivo, despertava o medo e o pavor naquele velho rei. Sobre isso nos diz Bento XVI: "Herodes é um homem de poder, que no próximo só consegue ver um rival para combater. No fundo, se meditarmos bem, até Deus lhe parece um rival, aliás, um rival particularmente perigoso, que gostaria de privar os homens do seu espaço vital, da sua autonomia, do seu poder; um rival que indica o caminho a percorrer na vida, e assim impede que se realize tudo o que se deseja. Herodes ouve dos seus peritos nas Sagradas Escrituras, as palavras do profeta Miqueias (cf. 5, 1), mas o seu único pensamento é o trono. Então, o próprio Deus deve ser ofuscado e as pessoas devem reduzir-se a ser simples peças para mover no grande tabuleiro do poder. Herodes é uma figura que não nos é simpática e que, instintivamente, julgamos de modo negativo pela sua brutalidade. Mas deveríamos perguntar-nos: existe, porventura, algo de Herodes também em nós? Acaso também nós, às vezes, vemos Deus como uma espécie de rival? Porventura também nós somos cegos diante dos seus sinais, surdos às suas palavras, porque pensamos que Ele impõe limites à nossa vida e não nos permite dispor da existência a nosso bel-prazer? Estimados irmãos e irmãs, quando vemos Deus deste modo, acabamos por nos sentir insatisfeitos e aborrecidos, porque não nos deixamos guiar por Aquele que está no fundamento de tudo. Temos que eliminar da nossa mente e do nosso coração a ideia da rivalidade, a ideia de que conceder espaço a Deus constitui um limite para nós mesmos; devemos abrir-nos à certeza de que Deus é o amor todo-poderoso que nada tira, não ameaça, aliás, é o Único capaz de nos oferecer a possibilidade de viver em plenitude, de sentir a verdadeira alegria."
O poder que cegava Herodes era algo tão brutal que para resguardar seu poderio, ele preferiu matar. Matar em nome de um reinado que acabaria, que seria reduzido a pó e que em nada acrescentaria em sua salvação. Olhar uma Criança como rival, disputar com uma criança o poder de um reino é mesquinho e atroz. O que Bento XVI nos exorta é algo dramático. Nós também temos a tentação de olhar o Senhor como nosso adversário, enxergá-Lo como aquEle que está preocupado em atrapalhar os nossos planos, como o "ditador" que pretende aniquilar nossa liberdade. Será que isto procede? Será que está ideia tem sua verdade? Ou será que o inimigo que arma o laço e a trama, enfia em nossa cabeça tal pensamento? São perguntas chaves que colocam em relevo para nós o cerne do problema. A resposta é clara e objetiva: Quem deixa ser Deus tem tudo na vida! As crianças que deram suas vidas, mesmo sem saber o porque daquilo, encontraram-se com a salvação que nascia na pobreza de Belém. O Menino reclinado no curral de Belém é o motivo da salvação daqueles pequenos filhos de Israel. O choro de Raquel (Mt 2,11-20) agora encontra alento. A tristeza, converte-se em alegria, porque a morte dos Inocentes é certeza de vida eterna. O céu acolhe os primeiros mártires, acolhe na pureza peculiar das crianças.
O que nos fala o salmo que lemos? Nos diz que o Senhor está do nosso lado, pois se não estivesse teríamos perecido. Fala de amor, fala de vida verdadeira, fala de confiança. O salmista envolto em dificuldades pode exclamar em alta voz:
"O nosso auxílio está no nome do Senhor, do Senhor que fez o céu e fez a terra." Sim, é lá que está a nossa certeza. É nEle que temos redenção, como nos dirá São Paulo. É por Ele que tudo tem significado na vida. Sem Ele nada somos. Dom Giussani dizia: " Sem Cristo tudo é vão; sem uma Presença tudo é vazio na vida!" Esta verdade penetra e fere nosso peito mais do que uma faca afiada. Por que? Porque responde as inquietações que trazemos em nós. Sem Cristo o universo, mesmo com toda a sua beleza, o mar, mesmo com toda a sua imensidão, as estrelas, mesmo com todo o espetáculo no céu, o homem, mesmo com toda a complexidade que o reveste, não é nada. A vida com Ele é diferente. Não só a vida, mas também a morte, quando enfrentada na perspectiva cristã, é sinal de redenção e de salvação. Enfim , tudo com Ele respira melhor, caminha melhor, encontra sentido.
Ao celebrarmos a memória festiva dos Santos Inocentes, somos convidados a uma revisão de vida: Será que estou disposto a dar a vida por alguém mesmo sem conhecer? Será que a minha fé está pautada onde deve estar? Será que eu vejo Deus como amigo ou como rival? Será? Será? Será... Quantos 'serás' poderíamos aqui mencionar, não cabe apenas perguntar é preciso ter coragem de responder ao Senhor, mesmo sem saber o que Ele quer de nós, sejamos mendicantes de sua Presença no meio de nós, se for preciso gritemos diante dEle: "Senhor, ajuda-me! Não posso dar mais um passo se Tu não estiveres ao meu lado!"
Em Cristo, e unido sempre diante do incruento Sacrifico Eucarístico,
Sem. Rafael Viana Lima
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