''Escreve Luigi Giussani: “A natureza de Deus aparece ao homem como dom absoluto: Deus se dá, dá a si mesmo ao homem. E Deus, o que é? A fonte do ser. Deus dá ao homem o ser: dá ao homem a existência; concede ao homem ser mais, o crescimento; concede ao homem ser completamente ele mesmo, crescer até a sua realização, isto é, doa ao homem a felicidade (feliz, ou seja, totalmente satisfeito ou perfeito; como sempre disse, em latim e em grego, perfeito e satisfeito são a mesma palavra: perfectus, isto é, perfeito ou realizado; um homem satisfeito é realizado). Deu-se a mim, dando-me o seu ser: ‘Façamos o homem a nossa imagem e semelhança’. E depois, quando o homem menos esperava, não podia sequer sonhar com isso, não esperava mais, não pensava mais n’Aquele do qual tinha recebido o ser, este reentra na vida do homem para salvá-la, dá-se novamente a si mesmo morrendo pelo homem. Dá-se totalmente, dom total de si, até: ‘Ninguém ama tanto os amigos como quem dá a vida pelos amigos’. Dom total” (É possível viver assim? Trad. Neófita Oliveira e Francesco Tremolada. São Paulo: Companhia Ilimitada: 2008, pp. 272-273).
Mas Dom Giussani não se limita ao grandioso aspecto objetivo do dom de si; acrescenta que esse dom de si é “comovido”: “O segundo fator - o primeiro é o essencial - é como um adjetivo ao lado do substantivo, é adjetivo; adjetivo quer dizer que se apoia, apoia-se no substantivo, por isso seria secundário em relação ao primeiro. E mesmo assim é o mais impressionante, e nós - eu aposto - nunca pensamos nisso e nunca pensaríamos, se Deus não nos tivesse colocado juntos. Por que Deus dedica ele mesmo a mim? Por que se doa a mim criando-me, dando-me o ser, isto é, ele mesmo (me dá ele mesmo, isto é, o ser)? Além do mais, por que se torna homem e se doa a mim para tornar-me de novo inocente [...] e morre por mim (não precisava absolutamente disso: bastava estalar os dedos e o Pai teria agido obrigatoriamente)? Por que morre por mim? Por que este dom de si mesmo até o extremo concebível, além do extremo concebível? Aqui vocês devem ir ver e decorar esta frase do profeta Jeremias, no capítulo 31, do versículo 3 em diante. Diz Deus, através da voz do profeta que em Cristo se realiza (pensem nas pessoas que estavam junto àquele homem, àquele jovem homem que fazia estas coisas): ‘Eu te amei com um amor eterno, por isso te atraí para mim (isto é, tornei-te partícipe da minha natureza), tendo piedade do teu nada’, eu sempre traduzi assim essa frase. ‘Tendo piedade do teu nada’, o que quer dizer? De que se trata? De um sentimento, de um sentimento! De um valor que é sentimento. Porque a afeição é um sentimento; estar ‘afeiçoado por’ é um sentimento, mas é um valor. Na medida em que existe razão, é valor; se não existe uma razão, nenhuma afeição é valor, pois falta metade do eu, é um eu cortado à altura do umbigo: fica o resto, a parte de baixo” (id., ibid., p. 274).
Alguém que é capaz de falar da caridade como “dom de si comovido” só pode fazê-lo porque ele mesmo se comove com a comoção de Jesus: “A caridade de Deus para com o homem é uma comoção, um dom de si que vibra, agita-se, move-se, realiza-se como emoção, na realidade de uma comoção: comove-se. Deus que se comove! ‘Que é o homem para que Tu te recordes dele?’, diz o Salmo” (id., ibid., p. 276).
Dom Giussani tem perfeita consciência da insidiosa possibilidade de que também esse aspecto seja reduzido, exatamente como – vimos antes – o Papa adverte no início da encíclica; assim, Giussani nos diz: “Mas é preciso estarmos atentos a um detalhe: esta comoção e esta emoção veiculam, carregam consigo um juízo e um palpitar do coração. É um juízo, portanto é um valor - digamos - racional, não enquanto possa ser reconduzido e reduzido a um horizonte do qual a nossa razão seja puramente capaz, mas racional no sentido de que dá a razão, carrega em si a sua razão. E se torna palpitar do coração por causa dessa razão. A emoção ou a comoção, se não tem dentro de si este juízo e este palpitar do coração, não é caridade. Qual é a razão? ‘Eu te amei com um amor eterno, por isso tornei-te parte de mim, tendo piedade do teu nada’: o palpitar do coração é a piedade do seu nada, mas a razão é que você participe do ser” (id., ibid., p. 279).
Todo o Novo Testamento afirma essa precedência absoluta do amor de Deus. João, em suas cartas, a exprime de maneira definitiva: “Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de reparação pelos nossos pecados. Caríssimos, se Deus nos amou assim, nós também devemos amar-nos uns aos outros” (1Jo 4,10-11). E mais adiante: “Amamos a Deus, porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19).
Foi essa novidade que o Papa nos lembrou em sua primeira encíclica: “A verdadeira novidade do Novo Testamento não reside em novas ideias, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos – um incrível realismo” (Deus caritas est, 12)." (Mons. Carrón)
Nenhum comentário:
Postar um comentário