Ao criar este blog, gostaria de propor reflexões, mensagens e apontamentos sobre aspectos relevantes a fé e tudo aquilo que ensina a Santa Igreja, através de seu magistério, da Liturgia e dos demais meios que nos são propostos pela mesma Igreja. Espero que todos gostem deste novo blog. Grande abraço a todos, sejam bem vindos!
quinta-feira, 9 de setembro de 2010
É possível viver assim? (Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação 10 de Março de 2010) Mons. Carrón
Começamos hoje o ponto “Perfeitos como o vosso pai”, mas, para nos ajudar a trabalhar
este trecho, paremos um momento para tentar ligá-lo com o anterior a fim de que não possamos
deixar para trás o que já dissemos, a fim de que, como por pressão osmótica possamos entrar no
mistério de Cristo. Queria especialmente sublinhar estas coisas que Dom Giussani diz quase en
passant, sem que quase nos demos conta, porque são estas passagens onde se vê a alma de Dom
Giussani pelas quais passa seu testemunho a nós, porque somente uma humanidade assim pode se
deixar tocar como ele; tudo está na Bíblia, parece absolutamente banal, mas por que não nos damos
conta? Por isso identificarmo-nos com aquela modalidade pela qual ele se deixa tocar é como ser
gerado, como deixar-se comover: “Por que Deus se dedica a mim? [...] Por que, além disso, se faz
homem e se entrega a mim para tornar-me novamente inocente [...]? [...] Por que este dom de si até
o extremo concebível, para além do extremo concebível?” Nós passamos por cima dessas frases,
mas é nelas que Dom Giussani expressa o contragolpe, porque é assim que ele se deixa tocar pela
frase de Jeremias que nos convida a memorizar: “Amei-te com um amor eterno e por isso te atraí a
mim tendo piedade do teu nada”; podemos repetir esta frase sem nos deixarmos atingir, assim como
muitas vezes olhamos para os outros sem nos deixar tocar, mas o amor que o Mistério nos
testemunha é este sentimento que tem dentro uma razão, que é a expressão de uma razão: “Eu me
comovo pelo teu valor, eu me comovo pelo teu nada, mas este teu nada é muito precioso para
Mim”. Prossegue Dom Giussani na página 275: “Esta piedade [...] é belo descobri-la no Evangelho.
Por exemplo, quando – disse duas vezes – uma noite (Jesus) da colina, vê sua cidade e chora por ela
[...] Aquela cidade o matará algumas semanas depois, mas para Ele isto não importa”. E depois diz
como soluçou diante daquela mulher que vai sepultar o próprio filho: ‘Mulher, não chores’, que era
uma coisa inconcebível; à parte o fato de que é ridículo e absurdo: como dizer a uma mulher que
segue o féretro do filho: ‘Não chores?’ Era o transbordamento de uma piedade, de uma compaixão”.
Sem experimentar este transbordamento de compaixão nós não sabemos o verdadeiro significado do
que o Evangelho exprime. Nós pensamos que entendemos porque somos muito presunçosos, muito
racionalistas... Não, não entendemos. Quando se percebe que entendemos? Quando reacontece; por
isso, como é diferente “fazer Escola de Comunidade e relê-la pensando tê-la compreendido” de
“fazer Escola de Comunidade vendo se reacontece” (e aí alguém não pode passar por cima, como
tantas vezes fazemos, porque isto quer dizer que nós permanecemos na superfície daquelas palavras
e depois se vê que não muda nada). De Zaqueu, a quem Jesus diz: “Desce, estou indo a tua casa”,
Dom Giussani comenta (basta uma frase para mostrar toda a sua comoção): “Não existe
possibilidade de ternura como essa entre nós”; que distância disso! Ou então, Lázaro: o pranto pelo
amigo que morre; apenas quando nos identificamos com isso podemos compreender que a caridade
de Deus pelo homem é esta emoção, esta comoção: “Eis então o ponto: Deus se comoveu pelo
nosso nada”; repete-o para nos ajudar a compreender, lhe vem do coração: “O que é o homem para
que Te lembres dele?” O máximo é quando diz que não apenas se comove do nosso nada, mas até
da nossa mesquinhez: “Tive piedade do teu ódio por Mim. Comovo-me porque Me odeias, o teu
ódio não pode evitar a comoção, toda a tua aversão por Mim não é suficiente para derrotar, para
vencer toda a comoção que sinto ao olhar-te, ao olhar o teu destino”. Esta comoção não é um
sentimento mas um juízo: um sentimento que carrega a razão dele: “Pela estima que tenho pelo teu
nada Me comovo”. E como Dom Giussani explica isso? Afirmando que “o palpitar do coração é a
piedade do teu nada”!
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Percebam que esta não é a premissa lógica (como muitas vezes a usamos: “Já sei e aplico”): isto é o
imergir numa vida a fim de que se torne nossa. Porque, se não me comovo, quer dizer que não
conheço; e se não me comovo, não se comunica a mim e toda a dificuldade que vem depois nasce
daqui. O que Dom Giussani nos diz se tornou realidade em Cristo, por isso não há outro olhar sobre
nós, seja o que for que tenhamos feito; porque Ele chora de comoção até pelo nosso ódio é que não
há outro olhar verdadeiro com o qual possamos nos olhar que não seja este. Se me olho de outro
modo, é um olhar velho, é um olhar que não existe mais porque, desde que entrou este olhar no real,
não existe mais realidade que não o tenha dentro; devemos atualizar o file (arquivo), como sempre
digo; não existe, este modo é velho, é como um mapa sem a América depois do descobrimento da
América, está errado! É exatamente isto que devemos nos ajudar a compreender: “A palavra
caridade indica a natureza própria de Deus”, isto é, que Ele doa a Si mesmo com esta comoção por
nós. Como isso se torna nosso? Somente Deus quebra esta estranheza. Alguém me escreve: “Em É
possível viver assim? Dom Giussani diz: ‘Porque Cristo existe, não existe nenhum homem que não
me interesse’. Gostaria que me explicasse melhor esta passagem: De Cristo aos homens. Tenho
dificuldade para entender como o ato de misericórdia comigo me impulsiona a me interessar por
cada homem”. Esta é a passagem e a deixo aberta porque é o que devemos testemunhar: como
acontece esta passagem?
Colocação: Aquilo que diz, aconteceu comigo outro dia. À p. 283 diz: “Um detalhe, entre
parênteses: não existe apego a si se não for cheio de comoção. A comoção une, deixando
separado”. Quando li este trecho, disse: “Sim, o mesmo discurso, alongado de um passo...”
interpretei-o de modo enviesado, de forma literal, como quem diz: “Sim, estou há séculos no
Movimento, já sei” Depois, foi como se o bom Deus me dissesse: “Não, volta atrás” e o reli e Ele
me fez vir à mente esta cotidianidade que está me acontecendo no relacionamento com meu filho
mais velho que está com 16 anos, e estou me dando conta de que ele está se revelando como
pessoa, enquanto há bem pouco tempo era um menininho. Para mim, é muito comovente que ele
tenha as mesmas perguntas que eu, o meu mesmo desejo de ser amado, de amar, de bem, de beleza,
de verdade e isto o torna para mim absolutamente próximo, interessante.
Carrón: Convém que cresça.
Colocação: Mesmo porque, para mim, é fascinante, interessante, e de fato, quando Dom Giussani
fala da comoção, pensei: “Caramba, é a experiência que estou fazendo com ele”, mas depois disse:
“A comoção une deixando separado”, e aqui ...
Carrón: É a mãe aqui ...
Colocação: Pela primeira vez na minha vida não entendi esta separação, está realmente
empregada numa acepção que não encontro em minha experiência porque, se penso na experiência
que estou fazendo com ele, aí é que me emociono, me interesso, vou ver as coisas que faz, perguntolhe
coisas, algo que não havia feito nunca – é claro que o atendia, nunca lhe faltou nada –, mas
agora se você me diz “distância”, “ficar longe”, é realmente a última coisa que imagino ter neste
momento com ele; e assim, pelas coisas que me apaixonam, porque é a mesma coisa que me
acontece pelas coisas que me apaixonam.
Carrón: Parta da experiência que faz e depois pensaremos no termo “distância”. O fato de que
comece a ver como ele é diferente de você, que é um tu, que é outro, implica um distanciamento
(isto é, que o deixe crescer)?
Colocação: Sim.
Carrón: Sim. Este é o significado do termo, basta observar o que acontece. Você se maravilhou
com algo que estava acontecendo e que começou a ver como positivo: este aflorar da alteridade do
filho, porque esta alteridade não é uma diminuição para você, mas um aumento, tinha um
interlocutor, começava a vê-lo aflorar, mas para isso ocorria deixar-lhe um espaço, não sufocá-lo,
não continuar a pensar que ele tem dez anos, não continuar a asfixiá-lo. Isto se chama
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distanciamento. Pode usar outra palavra que lhe agrade mais, mas é isto. Trata-se de uma
experiência sua, tanto é verdade que a tocou e a percebeu como um bem; isto é amar o destino do
filho. Como diz Dom Giussani, no dia em que nasceu, começou a afastar-se; agora começa a
adquirir verdadeiramente uma alteridade, não apenas fisiológica (que já tinha), mas como “eu”.
Colocação: Sou enfermeira e, nesta semana, encontrei uma senhora de 50 anos, internada na
minha ala, que tem uma distrofia muscular que a paralisa e não lhe permite respirar; já no
primeiro dia em que chegou, havia me pego pelo braço e me dissera: “Faça-me morrer!”; na outra
noite, chamou-me pela campainha porque não conseguia ficar deitada, não parava quieta, sempre
tentando retirar o oxigênio porque queria morrer. Como ela não queria dormir fiquei um pouco
com ela e me contou sua vida: “Tive três maridos, mas ainda não achei o certo” e depois
continuou a dizer: “Quero morrer, quero morrer; por que não me deixam morrer?” Perguntei-lhe:
“Por que quer morrer?”, e ela: “Porque estou aprisionada num corpo, quero conhecer, quero
tagarelar com as pessoas, mas estou aprisionada num corpo que não me permite fazer aquilo que
desejo”. Fiquei tocada pelo seu desejo, me comovi por ela (que não é uma coisa que me aconteça
sempre diante de meus pacientes), pelo seu desejo de conhecer. O que aconteceu depois foi que lhe
disse: “Você ainda tem o que descobrir na vida” e ela, olhando-me, desafiando-me dizia: “Mas
quem sou eu para você? Não sou sua mãe, não sou sua parenta, tem que me dizer quem sou eu
para você”. Naquele momento me dei conta de que ela era alguém para mim porque, além do fato
de que me comovi pelo destino daquela mulher, dei-me conta de que ainda uma vez era a Sua
iniciativa para comigo.
Carrón: Ficou comovida pelo destino daquela mulher; isto é o que corresponde, esta é a nossa
experiência da natureza de Deus como comoção; todo o nosso mal, toda a nossa fragilidade não
pode evitar, em certos momentos, de comover-se pelo destino de outra pessoa, nestas condições.
Colocação: Tenho uma empresa de construção civil junto com outros três amigos. Faz algum
tempo, oferecemos oportunidade de trabalho a algumas pessoas; eles fazem o trabalho e nós
pagamos ao responsável deles. Passado algum tempo, alguns operários submetidos a um senhor
me chamaram e me disseram que devia lhes pagar. Eu disse: “Já pagamos ao responsável”; eles
não acreditaram, continuaram por alguns dias, e então lhes disse: “Venham ao meu escritório,
vejam com meu sócio e explicaremos o problema”. Em resumo, estes operários foram enganados
por seu chefe (e se tivessem feito denúncia, o efeito seria de bumerang e eles é que deveriam pagar
multas). Preparavam-se para sair quando meu sócio disse: “Esperem. Não os deixaremos sozinhos.
Não é justo que paguemos duas vezes pelo trabalho, mas existe a possibilidade de dar-lhes
trabalho, trabalhando para mim”. Então, chorando, disseram: “Não existe gente como vocês, que
faça assim”. E eu lhes disse: “Não é verdade que não existam, poderia fazer uma grande lista
porque, se temos esta forma de trabalhar, este modo de estar no mundo, é porque aprendemos com
quem nos tratou e nos trata assim”. Quando eles foram embora, eu disse ao meu amigo: “Você se
dá conta do que fez?” O que me tocava é que ao fim da página 284 que nos tinha dito que lêssemos
para esta noite, Dom Giussani cita Madre Teresa: “Pode existir!” (não é uma pergunta, tem um
ponto de exclamação). “Pode existir!”: basta que alguém olhe como ele mesmo foi olhado e, como
conseqüência, reaja dessa forma por essa caridade que antes de tudo aconteceu a ele.
Carrón: Esta noite devemos compreender a passagem que Dom Giussani faz para responder a esta
pergunta: como posso ser perfeito como o nosso Pai é perfeito? Algum tempo atrás, dissemos em
uma Escola de Comunidade: “Não projetos de perfeição, mas olhar Cristo no rosto”, agora
mudamos o registro e dizemos “Devemos ser perfeitos como o Pai é perfeito” e voltamos para casa
todos como se mudássemos a palavra de ordem (e depois de um tempo “enlouquecemos’ porque
não compreendemos o nexo). Deste ponto de vista, Dom Giussani diz: “Sede perfeitos como é
perfeito o vosso Pai”. Perfeito como o nosso Pai; mas quem é capaz? Como recomendação não é
considerável; como recomendação produz o contrário: o medo”. Então, como podemos nos tornar
como o Pai? Que passo faz Dom Giussani para nos ajudar a compreender?
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Colocação: Vou contar o que me aconteceu na última Escola de Comunidade e que me acontece em
todos os âmbitos, mas que com dificuldade consigo comunicar. Quando foi lida a palavra do Papa
e disse “Permanecei no meu amor”, fiquei satisfeita e livre enquanto o dizia, não depois e não
porque aquelas palavras me davam uma indicação de como fazer, isto é, que bastava permanecer,
mas porque as estava ouvindo, porque as escutava, nem porque aquela era uma instrução de algo a
fazer por mim; o motivo pelo qual estava feliz não era porque devo permanecer, que basta
permanecer no Seu amor, mas aquelas palavras (permanecer) eram as palavras de Jesus que eu
ouvia dizer naquele momento, que saíam da boca de uma pessoa que existe e que, portanto, eu e
qualquer outro, em qualquer momento, podemos encontrar. Nós não geramos o acontecimento, a
humanidade nova não é algo que nós devemos fazer; a única coisa que devemos fazer é ser simples
e viver a nossa necessidade humana até o fim. Mas, então, o que tenho que fazer? O que depende
de mim? Porque a minha experiência é a de que, aquilo que sou, não depende de mim, mesmo o
viver até o fundo a minha necessidade humana, quando me acontece, é uma coisa que eu não me
dou. Isto é, nem mesmo o meu empenho é algo que eu gero, mas me é dado sempre como um dom,
verdadeiramente, e isto não o vejo só para mim, mas vejo em outras pessoas também. Por exemplo,
diante de uma pessoa que é totalmente fechada à vida, que manifesta um ódio a quem a ama ou que
não cede nem por um instante diante da beleza daquilo que acontece, não basta dizer:
“Permanecei”, ou: “Só deveis permanecer”, ou: “Basta que viva até o fundo a tua humanidade”,
dizendo-o como uma instrução, como alguma coisa a fazer, porque ela não tem intenção nenhuma
de permanecer nem de mudar, não consegue, precisa que aconteça o Senhor, a fim de que consiga
precisa que aconteça o milagre, que Jesus a toque, que a tome e eu não posso olhá-la, graças a
Deus não vejo mais, com a idéia de que ela deva fazer uma coisa que não sabe fazer, da mesma
forma que não sei fazê-la, como dizer a um doente: “Cure-se”. Mas é Jesus que deve tocá-lo e
curá-lo. Portanto, o meu relacionamento com o Mistério é apenas invocação: que venha, como de
verdade vem (porque depois, quando vem, é a única coisa que me dá paz e felicidade). Quando
digo: “Sou tu que me fazes”, digo isto literalmente. Tem piedade do meu nada: nada é nada, não é
alguma coisa.
Carrón: Espere um pouco, devemos retomar certas coisas porque o que disse é absolutamente
verdadeiro: o que estamos afirmando é esta precedência da Sua ação sobre qualquer outra. O que
contou da última Escola de Comunidade é o acontecimento disto, não são instruções para o uso que
depois aplico, acontece contemporaneamente e, por isso, é verdade que nós não geramos o
Acontecimento, mas somos tão arrastados por ele que não nos damos conta. Aquilo que é preciso
entender da colocação que você fez hoje, e que você não pode evitar que isso aconteça, mas é
preciso que o acolha, é esta simplicidade. Posso lhe dar um presente, o presente é todo seu, é tudo
graça, mas não posso acolhê-lo por você; é um exemplo banal (porque o presente fica fora de você,
enquanto o Acontecimento ocorre em você) mas está sempre em jogo a liberdade, mesmo se somos
facilitados pelo fato de que é exatamente o sinal que acontece que me facilita a liberdade, tanto é
verdade que o responder por si é graça, é provocado por este fato de que é tudo gratuito. Por isso, a
Escola de Comunidade diz que a gratuidade é “como o reflexo da gratuidade da minha graça”:
reflexo, mas devemos acolhê-lo; isto é o que o Evangelho chama de “simplicidade” ou “pobreza de
espírito”, chamem-no como quiserem, é aquilo que Jesus constantemente pede para poder participar
disto – Ele é tão consciente, como você disse, que tudo é graça – o que devemos fazer é acolhê-Lo,
ter a simplicidade de acolhê-Lo.
Colocação: É que esta simplicidade, sinceramente... Por tanto tempo recusei o fato de que tenha
necessidade de mim.
Carrón: Tem necessidade de você!
Colocação: Mas com o tempo, se devo dizer, nem uma vírgula vem fora de mim, como dos outros...
Carrón: É verdade, também a resposta livre nasce desta graça, mas é minha a resposta, e por isso
não podemos deixar fora este aspecto, porque de outra forma é mecânico, de outra forma é como
deixar de fora a sua colaboração, mesmo que pequena, mesmo que gratuita, porque nasce da
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comoção, da Sua graça, mas é sua; sem isto, não se torna nosso e isto é importantíssimo não deixálo
de fora; porque também a simplicidade é dada, mas no sentido de que move o seu eu para
reconhecê-la. A potência da Sua graça demonstra exatamente porque Cristo a dá através de você,
através do seu “sim” e isto é o máximo, compreende? Envolve você mesma naquela graça para ser
salva! Por isso a minha invocação é pedir esta simplicidade; de outra forma para que tem
necessidade da invocação?
Colocação: Preciso da invocação para que aconteça.
Carrón: Para que aconteça e para que você reconheça.
Carrón: Hoje temos a alegria de ter aqui padre Aldo; não tenho como não convidá-lo a contar a
experiência que faz, como este olhar, esta caridade do Mistério para conosco se tornou também sua.
Padre Aldo: Antes de tudo, obrigado. Estou comovido porque o milagre cada dia maior da minha
vida coincide com a graça que vocês têm de levar seriamente, palavra por palavra, o que diz
Carrón. Cleuza e Marcos diziam, recentemente, a alguns amigos que lhe perguntavam
por que iam
ao Paraguai: “No Paraguai não há nada de bonito, é tudo feio, não há nada de pior no mundo:
moribundos, doentes de AIDS, prostitutas, travestis, crianças violentadas, mendigos de rua”.
“Então, por que vão?”. “Vamos para aprender um olhar”, que é o olhar de Cristo para a
Madalena, de Cristo para Zaqueu, de Cristo para a samaritana. Este olhar, para mim, contém um
ponto seguro sobre o qual não tenho dúvidas há muitos anos: “Tenho a certeza de ser querido,
instante por instante, assim como sou”. A coisa mais trágica da vida é a incerteza afetiva, porque é
a certeza afetiva que sustenta a vida e a certeza afetiva, para mim, é que “eu sou Tu que me fazes”,
que os cabelos de minha cabeça estão contados, palavras que, na America Latina, vão do Panamá
até a Terra do Fogo. Olhar-me com os olhos do Tu, olhar a minha humanidade com a mesma
modalidade com a qual me olha o Ser; e o Ser me olha assim, mesmo quando estou zangado,
quando estou mal, isto se torna um motivo a mais, porque não existiria a cólera, o mal-estar sem a
minha humanidade, ou seja, o mal-estar, a doença, o câncer, a depressão se tornam motivo para
afirmar: “Eu sou Tu que me fazes”, porque estes fatores pertencem à minha humanidade. E isto faz
com que me comova porque, mesmo diante de minha doença ou dos meus doentes, pensem o que
quer dizer: “O Senhor me chamou desde o seio materno, pronunciou o meu nome, antes de
conceber-me no ventre de minha mãe; com um amor eterno me amou, teve piedade do meu nada”.
Palavras que Carrón nos repete continuamente e que são como o motor de todos os minutos de
minha vida e da vida dos meus amigos; entendam que não há um aspecto da vida que seja negativo,
por isso os meus doentes morrem sorridentes, porque o ponto da questão é este olhar pleno de
ternura; isto é para mim o início da caridade. O segundo passo é que este eu comovido pelo
Mistério eu encontrei visível em Cristo; como posso ser perfeito como o Pai? Tenho um critério:
olhar para Jesus, como Jesus vivia, como Giussani me abraçou, como Carrón me olha, é um
critério muito concreto, preciso, pelo qual o “Eu sou Tu que me fazes” se torna Tu, o Cristo. Por
isso, com Cleuza e Marcos retomamos há meses a homilia de Carrón no funeral de Pontiggia,
quando dizia: “Quem és Tu, ó Cristo?” Esta pergunta crucial está ressoando, instante por instante,
mas não com uma resposta imediata, porque a resposta não terminará nem mesmo no Paraíso, se
não nos cansarmos; podemos sempre perguntar: “Quem és Tu, ó Cristo?” E, depois, tem a ternura
de Deus; estes são os dois pontos sobre os quais estamos trabalhando muito porque no dizer: “Tu,
ó Cristo” nasceu tudo, nasceu a certeza que me faz ajoelhar diante de cada doente e beijá-lo, não
porque os vermes não me provoquem nojo, não porque não me provoque vômito aquela carne que
cai aos pedaços, não porque eu seja melhor que vocês, mas porque naquela carne putrefata é
Cristo que sofre, é Cristo que palpita, é Cristo que vive e, quando se vê Cristo, não se pode não
abraçá-lo, não se pode não beijá-lo; e assim também a capacidade de beijar ou de tirar os vermes
se torna cheia de alegria, porque se torna um gesto de gratuidade; tirar os vermes de Cristo. E um
Deus comovido pela minha humanidade se torna um eu comovido diante de cada homem, em
particular esses homens desprezados, porque devo fazer-lhes companhia como Cristo faz para
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mim, porque Cristo não me abandona um instante, entende? Cristo tem um encontro contínuo
comigo, continuamente ao meu lado e não me diz: “Vem amanhã”, não, está aqui presente agora, e
o mais belo sinal deste dom comovido de mim é a alegria (isto é, tudo se torna amigo). Então, o
maravilhamento substitui os lamentos; a minha impotência, a distância é preenchida pelo Mistério;
no fundo, não sou patrão de nada; se o Mistério quer isto, quer dizer que é o melhor e tudo começa
pelo eu, pelo meu eu como certeza de ser querido. Cleuza diz: “Pergunto-me como alguém
consegue duvidar”. Como fazem para ter dúvidas diante da crise, diante do câncer, como fazem
para não sentir que até aquela é maneira com a qual Deus me ama; mesmo não dormir é um modo
pelo qual Deus me diz: “Estou aqui junto de ti e vigio contigo”? Por isso minha humanidade é
seduzida, como fala Jeremias: “Deus me seduziu e eu me deixei seduzir”. Que espetáculo! Em cada
aspecto de minha vida, fui escolhido, sou Tu que me fazes, os cabelos de minha cabeça estão
contados: “Quem és Tu, ó Cristo?”, nos dizia Carrón; e desde novembro continuamos a repetir:
“Quem és Tu, ó Cristo?” a cada vez que nos vemos: “Quem és Tu, ó Cristo?”, em cada coisa,
diante de cada detalhe. Esta é a caridade que vivo.
Carrón: Compreendem agora porque Dom Giussani pode dizer: “O primeiro objeto da caridade do
homem se chama Jesus Cristo”? Esta é a passagem do Velho para o Novo Testamento: Deus, para
nos fazer seus, para nos tornar como Ele, não apenas dá as instruções para o uso, que são os
mandamentos, mas se torna Homem para atrair toda a nossa afeição para Ele. “Quem és Tu, ó
Cristo?” Por isso, o primeiro objeto da caridade é estar magnetizado por esta Sua caridade, de
Cristo; é somente o permanecer do qual falávamos antes, é o permanecer nisto, é o permanecer
agarrados a este Tu. E alguém que O encontrou não pode evitar ser atraído, seduzido. É daí que
tudo vem, todo o resto é desenvolvimento disto, mas nós não passamos da caridade de Deus a amar
assim, se não for através de Cristo; não se trata de ler as instruções para o uso ou ler o que é a
caridade e... Não! Dom Giussani faz esta passagem, que é o que fez Cristo, a primeira coisa que
aconteceu aos discípulos não era serem caridosos com os outros; a primeira coisa que lhes
aconteceu foi ficarem fascinados por Cristo, o primeiro objeto de seu amor, da sua caridade, foi
Cristo e então nasceu todo o resto. Por isso, não podemos terminar sem fazer esta passagem
conscientemente: “Amar Cristo e n’Ele [porque somos atraídos, seduzidos por Ele], isto é, de
acordo com o seu modo, os irmãos”. Péguy fala em “encontrar nele como uma certa gratuidade que
seja como que o reflexo da gratuidade da minha graça”. E Dom Giussani acaba perguntando: de
onde brota esta comoção? “A fonte desta comoção, em Cristo, como em mim mesmo, é o Espírito
de Cristo”. O Espírito Santo é Aquele que devemos invocar, pedir. Por isso, quando Dom Giussani
nos faz dizer: “Veni Sancte Spiritus, veni per Mariam”, nos convida a pedir isto. Porque, como
dizíamos numa outra vez ao ler o Papa, “Amai-vos como vos amei” [...]. Não é um novo
mandamento; o mandamento de amar o próximo como a si mesmo existe já no Antigo Testamento.
Alguns afirmam: “Tal amor é ainda mais radicalizado; este amar o outro deve imitar Cristo, que se
deu por nós; deve ser um amar heróico, até o dom de si mesmo”. Neste caso, porém, o Cristianismo
seria um moralismo heróico; assim, com as mesmas palavras do Evangelho podemos mudar a
natureza do Cristianismo, com as mesmas palavras, com os mesmos ingredientes, cozinhar uma
sopa diferente. “É verdade que devemos chegar até aquela radicalidade do amor que Cristo nos
mostrou e doou [é verdade, este é o objetivo; fazer-nos participar da própria natureza de Deus], mas
também aqui a verdadeira novidade não é o quanto nós fazemos, a verdadeira novidade é o quanto
Ele fez [...] a novidade é o dom, o grande dom, e a partir do dom [...] o novo agir. São Tomás de
Aquino o disse de modo preciso quando escreveu: “A nova lei [não é um mandamento radicalizado,
mais complicado de cumprir] é a graça do Espírito Santo. A nova lei não é um mandamento mais
difícil que os outros; a nova lei é um dom, a nova lei é a presença do Espírito Santo”. O Espírito é a
modalidade com a qual Cristo entra até o miolo em nossa vida, fazendo com que nos tornemos verdadeiramente dEle.
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