quarta-feira, 30 de junho de 2010

Cardeal Van Thuan, testemunha da esperança!




Por: Maria Auristela B. Alves

O Cardeal vietnamita Francisco Xavier Nguyen Van Thuan teve como lema de vida a esperança que enche de amor o momento presente. Mantido prisioneiro pelo regime comunista durante 13 anos, 9 dos quais em total isolamento, não ficou de “braços cruzados” esperando a libertação; ao contrário, com a criatividade própria do amor, fez-se amigo dos carcereiros, construiu para si um crucifixo, celebrou a eucaristia clandestinamente e escreveu três livros. Depois de uma vida luminosa, morreu vitimado pelo câncer em setembro de 2002.

Francisco Nguyen Van Thuan nasceu no dia 17 de abril de 1928, numa família que conta numerosos mártires da fé. Sua mãe, todas as noites, contava-lhe histórias bíblicas e narrava-lhe testemunhos de mártires, especialmente de seus antepassados.

Van Thuan foi ordenado sacerdote em 11 de junho de 1953. Formado em Direito Canônico, em Roma, retorna ao Vietnã e é nomeado professor e reitor do seminário.

Em 1967, é ordenado Bispo de Nhatrang, no centro do Vietnã, diocese pela qual sempre confessou predileção. Oito anos depois, Paulo VI o nomeou Arcebispo coadjutor de Saigon. Ardoroso animador dos leigos e jovens, prepara-os para participarem dos conselhos pastorais.

Poucos meses depois, porém, foi preso pelo regime comunista: “Disseram-me que minha nomeação era fruto de um complô entre o Vaticano e os imperialistas para organizar a luta contra o regime comunista”, conta Van Thuan. Era o dia de Nossa Senhora da Assunção, 15 de agosto de 1975.

Rumo à prisão, tomou uma decisão importantíssima: “Vinham-me à mente muitos pensamentos confusos: tristeza, abandono, cansaço depois de três meses de tensões... Porém, em minha mente surgiu claramente uma palavra que dispersou toda a escuridão, a palavra que Monsenhor John Walsh, Bispo missionário na China, pronunciou quando foi libertado depois de doze anos de cativeiro: ‘Passei a metade da minha

vida esperando’. É verdadeiríssimo: todos os prisioneiros, inclusive eu, esperam a cada minuto sua libertação. Porém, depois decidi: ‘Eu não esperarei. Vou viver o momento presente, enchendo-o de amor’.”

De fato, foi o que fez: amou, amou, amou. As condições não eram favoráveis. Durante alguns meses esteve confinado numa cela minúscula, sem janela, úmida, que para respirar passava horas com o rosto enfiado num pequeno buraco no chão. A cama era coberta de fungos.

Os nove primeiros anos foram terríveis: “uma tortura mental, no vazio absoluto, sem trabalho, caminhando dentro da cela desde a manhã às nove e meia da noite para não ser destruído pela artrose, no limite da loucura”.

Buscava conversar com os carcereiros, que resistiam, mas logo eram seduzidos por sua gentileza e inteligência. Contava-lhes sobre países e culturas diferentes. Isso chamava sua atenção e instigava a curiosidade. Logo começavam a fazer perguntas, o diálogo se estabelecia, a amizade se enraizava. Chegou a dar aulas de inglês e francês.

No começo, a cada semana os guardas eram substituídos, mas logo as autoridades, para evitar que o exército todo fosse “contaminado”, deixou uma dupla de carcereiros fixa. Estes espantavam-se de como o prisioneiro pudesse chamar de amigos os seus carcereiros, mas ele afirmava que os amava porque esse era o ensinamento de Jesus.

Como o amor é criativo, Van Thuan encontrou também um jeito de se comunicar com seu rebanho: “Em outubro de 1975, fiz um sinal a um menino de sete anos, Quang, que regressava da missa às 5 horas, ainda escuro: ‘Diz à tua mãe que me compre blocos velhos de calendários’. Mais tarde, também na escuridão, Quang me traz os calendários, e em todas as noites de outubro e novembro de 1975 escrevi da prisão minha mensagem ao meu povo. Cada manhã o menino vinha recolher as folhas para levá-las à sua casa e fazer que seus irmãos e irmãs copiassem-na”. Assim foi escrito o livro “O Caminho da Esperança”, posteriormente publicado em oito

idiomas: vietnamita, inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, coreano e chinês.

Em 1980, na residência obrigatória de Giang-xá, no Norte do Vietnã, sempre de noite e em segredo, escreveu seu segundo livro: “O caminho da esperança à luz da Palavra de Deus e do Concílio Vaticano II”; depois o terceiro livro: “Os peregrinos do caminho da esperança”.

Sempre inspirado pela criatividade amorosa, Van Thuan escreveu uma carta aos amigos pedindo que enviassem um pouco de vinho, como remédio para doenças estomacais. Assim, a cada dia, três gotas de vinho e uma de água eram suficientes para trazer Jesus eucarístico à prisão. Os pedacinhos de pão consagrado eram conservados em papel de cigarro, guardado no bolso com reverência. De madrugada, ele e os poucos católicos detidos ali davam um jeito de adorar o Senhor escondido com eles.

Um dia, enquanto trabalhava de lenhador, Van Thuan pediu ao amigo carcereiro: “Queria cortar um pedaço de madeira em forma de cruz... Feche os olhos, farei agora e serei muito cauteloso. Você vai andando e me deixa só”. Assim, conseguiu como companheira aquela rústica cruz feita por ele mesmo.

Para completar sua obra, pediu: “Amigo, você me consegue um pedaço de fio elétrico?” Este ficou espantado, sabia que quando prisioneiros conseguem fios, suicidam-se. Mas Van Thuan explicou: “Queria fazer uma correntinha para levar minha cruz”. Saindo da prisão, com uma moldura de metal, aquele pedaço de madeira tornou-se sua cruz peitoral.

O Cardeal Van Thuan foi libertado no dia 21 de novembro de 1988. Em 1994 deixou o Vietnã e foi para Roma, onde presidiu o Pontifício Conselho Justiça e Paz.

Foi criado Cardeal em 21 de fevereiro de 2001. Escreveu mais um livro: “Testemunhas da esperança”, no qual relata sua experiência de prisioneiro. Fazia questão de dizer que não se trata de um livro para fazer denúncias, mas testemunhar o dom da esperança. Vitimado pelo câncer, faleceu no dia 17 de setembro de 2002.

• Os cinco defeitos de Jesús

Van Thuan declara-se apaixonado pelos defeitos de Jesus e os descreve no livro “Testemunhas da esperança”:

PRIMEIRO DEFEITO: JESUS NÃO TEM MEMÓRIA

No calvário, no auge da indescritível agonia, Jesus ouve a voz do ladrão à sua direita: “Jesus, lembra-te de mim quando estiveres em teu reino” (Lc 23,43). Se fosse eu, teria respondido: “Não vou esquecê-lo, mas seus crimes devem ser pagos por longos anos no purgatório”. No entanto, Jesus respondeu-lhe: “...hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43). Jesus esqueceu todos os crimes desse homem.

Semelhante atitude Jesus teve com a pecadora que banhou os seus pés com perfume... Não faz nenhuma pergunta sobre seu escandaloso passado. Simplesmente diz: “Seus inúmeros pecados estão perdoados, porque muito amor demonstrou” (Lc 7,47)...
A memória de Jesus não é igual à minha...

SEGUNDO DEFEITO: JESUS NÃO “SABE” MATEMÁTICA

Se Jesus tivesse se submetido a um exame de matemática, por certo teria sido reprovado... “Um pastor tinha 100 ovelhas. Uma se extravia. Ele, imediatamente, deixa as 99 no redil e vai em busca da desgarrada. Reencontra-a, coloca-a no ombro e volta feliz” (cf. Lc 15,4-7).

Para Jesus, uma pessoa tem o mesmo valor de noventa e nove e, talvez, até mais. Quem aceita tal procedimento? Sua misericórdia se estende de geração em geração...

TERCEIRO DEFEITO: JESUS DESCONHECE A LÓGICA

Uma mulher possuía 10 dracmas. Perdeu uma. Acende a lâmpada; varre a casa... procura até encontrá-la. Quando a encontra convida suas amigas para partilhar sua alegria pelo reencontro da dracma... (Lc 15,8-10)... de fato, não tem lógica fazer festa por uma dracma... O coração tem motivações que a razão desconhece... Jesus deu uma pista: “Eu vos digo que haverá mais alegria diante dos anjos de Deus por um só pecador que se converte...” (Lc 15,10).

QUARTO DEFEITO: JESUS É AVENTUREIRO

Executivos, pessoas encarregadas do “marketing das empresas”, levam em suas pastas projetos, planos cuidadosamente elaborados... Em todas as instituições, organizações civis ou religiosas não faltam programas prioritários; objetivos, estratégias...

Nada semelhante acontece com Jesus. Humanamente analisando, seu projeto está destinado ao fracasso.

Aos apóstolos, que deixaram tudo para segui-lo, não garante sustento material, casa para morar, somente partilhar do seu estilo de vida. A um desejoso de unir-se aos seus, responde: “As raposas têm tocas e as aves do céu ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20)...

Os doze confiaram neste aventureiro. Milhões e milhões de outros igualmente. Já vão lá mais de dois mil anos e a incalculável multidão de seguidores continua a peregrinar. Galerias enormes de santos e santas, bem-aventurados, heróis e heroínas da aventura. No Universo inteiro esta abençoada romaria continua... Vai que este aventureiro tem razão...? Neste caso, a mais fantástica viagem na “contramão” da história será a verdadeira...! “A quem iremos?”...

QUINTO DEFEITO: JESUS NÃO ENTENDE DE FINANÇAS NEM ECONOMIA.

Se Jesus fosse o administrador da empresa, da comunidade, a falência seria uma questão de dias. Como entender um administrador que paga o mesmo salário a quem inicia o trabalho cedo e a outro que só trabalha uma hora? Um descuido? Jesus errou a conta? ...

Por que Jesus tem esses defeitos? Porque é o Deus da Misericórdia e Amor Encarnado. Deus Amor (cf. 1Jo 4,16). Portanto, não um amor racional, calculista, que condiciona, recorda ofensas recebidas. Mas um amor doação, serviço, misericórdia, perdão, compreensão, acolhida... Em que medida? Infinita.

Os defeitos de Jesus são o caminho da felicidade. Por isso, damos graças a Deus. Para alegria e esperança da humanidade, esses defeitos são incorrigíveis.



RETIRADO DO SITE:
http://www.comunidadeshalom.org.br/formacao/ santos/van_thuan.html

Homilia do Santo Padre, Bento XVI, por ocasião da Solenidade dos dois Princípes da Igreja, São Pedro e São Paulo




Queridos irmãos e irmãs!

Os textos bíblicos desta Liturgia Eucarística da Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, na sua grande riqueza, ressaltam um tema que se poderia resumir assim: Deus está próximo de seus fiéis servidores e os livra de todo o mal, e livra a Igreja das forças negativas. É o tema da liberdade da Igreja, que apresenta um aspecto histórico e um outro mais profundamente espiritual.

Esta temática atravessa toda a Liturgia da Palavra de hoje. A primeira e a segunda Leitura falam, respectivamente, de São Pedro e de São Paulo, salientando exatamente a ação libertadora de Deus sobre eles. Especialmente o texto dos Atos dos Apóstolos descreve com abundância de detalhes a intervenção do anjo do Senhor, que soltou Pedro das correntes e o conduziu para fora do cárcere de Jerusalém, onde o havia aprisionado, sob rígida vigilância, o rei Herodes (cf. At 12, 1-11 ). Paulo, por sua vez, escrevendo a Timóteo quando sente que está perto o fim de sua vida terra, faz um balanço final do qual emerge que o Senhor esteve sempre perto de si, o livrou de muitos perigos e ainda o libertará, introduzindo-o em seu Reino eterno (cf. II Tm 4, 6-8.17-18). O tema é reforçado pelo Salmo Responsorial (Sal 33), e encontra um particular desenvolvimento também no trecho evangélico da confissão de Pedro, lá onde Cristo promete que as forças do inferno não prevalecerão sobre sua Igreja (cf. Mt 16, 18).

Observando-se bem, nota-se, com relação a esta temática, uma certa progressão. Na primeira Leitura, é narrado um episódio que mostra a intervenção específica do Senhor para libertar Pedro da prisão; na segunda, Paulo, com base em sua extraordinária experiência apostólica, afirma estar convencido de que o Senhor, que já o havia livrado "da boca do leão", o livrará de "todo o mal", abrindo-lhe as portas do Céu; no Evangelho, ao contrário, não se fala mais dos Apóstolos individualmente, mas da Igreja no seu conjunto e da sua proteção com relação às forças do mal, entendida em sentido amplo e profundo. Desse modo, vemos que a promessa de Jesus - "as forças do inferno não prevalecerão" sobre a Igreja - compreende, sim, as experiências históricas de perseguição sofridas por Pedro e Paulo e outras testemunhas do Evangelho, mas vai além, desejando assegurar a proteção sobretudo contra as ameaças de ordem espiritual; segundo o que Paulo escreve na Carta aos Efésios: "Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares" (Ef 6, 12).

Com efeito, se pensamos nos dois milênios de história da Igreja, podemos observar que - como havia prenunciado o Senhor Jesus (cf. Mt 10, 16-33) - nunca faltaram para os cristãos as provações, que em alguns períodos e lugares assumiram o caráter de verdadeiras e próprias perseguições. Essas, no entanto, apesar do sofrimento que provocam, não constituem o perigo mais grave para a Igreja. O dano maior, de fato, provém daquilo que polui a fé e a vida cristã dos seus membros e das suas comunidades, afetando a integridade do Corpo Místico, enfraquecendo a sua capacidade de profecia e testemunho, manchando a beleza de seu rosto. Essa realidade é atestada já no epistolário [cartas] paulino. A Primeira Carta aos Coríntios, por exemplo, responde exatamente a alguns problemas de divisões, incoerências, infidelidade ao Evangelho, que ameaçam seriamente a Igreja. Mas também a Segunda Carta a Timóteo - da qual ouvimos uma parte - fala sobre os perigos dos "últimos tempos", identificando-os com atitudes negativas que pertencem ao mundo e podem contagiar a comunidade cristã: egoísmo, vaidade, orgulho, apego ao dinheiro, etc. (cf. 3, 1-5). A conclusão do Apóstolo é reconfortante: os homens que fazem o mal - escreve - "não irão longe, porque será manifesta a todos a sua insensatez" (3, 9). Existe, portanto, uma garantia de liberdade assegurada por Deus à Igreja, liberdade seja dos laços materiais que procuram impedir ou coagir a missão, seja dos males espirituais e morais, que podem afetar a autenticidade e credibilidade.O tema da liberdade da Igreja, garantida por Cristo a Pedro, tem também uma relevância específica para o rito da imposição do pálio, que hoje renovamos para trinta e oito Arcebispos Metropolitanos, aos quais dirijo a minha mais cordial saudação, estendendo-a com afeto àqueles que quiseram acompanhá-los nesta peregrinação. A comunhão com Pedro e seus sucessores, de fato, é garantia de liberdade para os pastores da Igreja e para a própria Comunidade a eles confiada. E isso em ambos os planos destacados nas reflexões precedentes. No plano histórico, a união com a Sé Apostólica assegura às Igrejas particulares e às Conferências Episcopais a liberdade com relação aos poderes locais, nacionais ou supranacionais, que podem, em certos casos, obstaculizar a missão da Igreja. Além disso, e mais essencialmente, o ministério petrino é garantia de liberdade no sentido da plena adesão à verdade, à autêntica tradição, de tal forma que o Povo de Deus seja preservado de erros concernentes à fé e à moral. Daí que o fato de, todo o ano, os novos Metropolitanos virem a Roma para receber o Pálio das mãos do Papa deva ser compreendido no seu significado próprio, como gesto de comunhão, e o tema da liberdade da Igreja nos oferece uma chave de leitura particularmente importante. Isso aparece de modo evidente no caso das Igrejas marcadas pela perseguição, ou sujeitas a interferências políticas ou outras duras provações. Mas isso não é menos relevante no caso de Comunidades que padecem a influência de doutrinas enganadoras, ou de tendências ideológicas e práticas contrárias ao Evangelho. O pálio, assim, torna-se, neste sentido, um compromisso de liberdade, analogamente ao "jugo" de Jesus, que Ele convida a tomar, cada um sobre seus próprios ombros (cf. Mt 11, 29-30). Como o mandamento de Cristo - embora exigente - é "doce e leve" e, ao invés de pesar sobre quem o leva, o levanta, assim o vínculo com a Sé Apostólica - embora desafiador - sustenta o Pastor e a porção da Igreja confiada aos seus cuidados, tornando-lhes mais livres e mais fortes.

Uma última indicação gostaria de trazer da Palavra de Deus, em particular da promessa de Cristo de que os poderes do inferno não prevalecerão sobre sua Igreja. Essas palavras podem ter também um significativo valor ecumênico, a partir do momento que, como citei há pouco, um dos efeitos típicos da ação do Maligno é exatamente a divisão no interior da comunidade eclesial. As divisões, de fato, são sintomas da força do pecado, que continua a agir nos membros da Igreja mesmo após a redenção. Mas a palavra de Cristo é clara: "Non praevalebunt - não prevalecerão" (Mt 16, 18). A unidade da Igreja está enraizada na sua união com Cristo, e a causa da plena unidade dos cristãos - sempre a se buscar e renovar, de geração em geração - é, então, sustentada pela sua oração e sua promessa. Na luta contra o espírito do mal, Deus nos doou em Jesus o "advogado" defensor, e, depois da sua Páscoa, "um outro Paráclito" (cf. Jo 14, 16), o Espírito Santo, que permanece conosco para sempre e conduz a Igreja rumo à plenitude da verdade (cf. Jo 14,16; 16, 13), que é também a plenitude da caridade e da unidade. Com esses sentimentos de confiante esperança, tenho o prazer de saudar a Delegação do Patriarcado de Constantinopla, que, segundo o belo costume das visitas recíprocas, participa nas celebrações dos Santos Patronos de Roma. Juntos, rendamos graças a Deus pelos progressos nas relações ecumênicas entre católicos e ortodoxos, e renovemos o compromisso de corresponder generosamente à graça de Deus, que nos conduz à plena comunhão.

Queridos amigos, saúdo cordialmente a cada um de vós: Senhores Cardeais, Irmãos nos Episcopado, Senhores Embaixadores e Autoridades civis, em particular o Prefeito de Roma, sacerdotes, religiosos e fiéis leigos. Obrigado pela vossa presença. Os santos Apóstolos Pedro e Paulo alcancem para vós um amar sempre mais e mais a Santa Igreja, corpo místico de Cristo o Senhor e mensageira de unidade e de paz para todos os homens. Vos alcancem também o oferecer com alegria para a própria santidade e missão as fadigas e sofrimentos suportados pela fidelidade ao Evangelho. A Virgem Maria, Rainha dos Apóstolos e Mãe da Igreja, assista sempre a vós, em particular sobre o ministério dos Arcebispos Metropolitanos. Com o seu celeste auxílio, possais sempre viver e agir naquela liberdade que Cristo nos conquistou. Amém.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

A familiaridade com Cristo (Mons. Luigi Giussani)




Eu me sinto um pouco embaraçado e confuso ao iniciar, porque me vêm à mente com insistência os nomes dos meus primeiros alunos, que o Senhor fez chegar até aqui; e, depois deles, vêm-me à mente todos os outros que eu conheci e os que estão aqui e que eu não conheço pessoalmente – com os quais, entretanto, o relacionamento é muito mais significativo do que o que vivo com tantas pessoas que conheço e com as quais não caminho, por isso é como se os conhecesse –. Essa lembrança dos primeiros meninos que eu encontrei e que agora estão aqui, gloriosos pais e mães de família, com filhos com mais de onze, doze anos, etc., realizados na sua profissão, talvez “nobres” professores universitários, me faz tremer realmente. E me faz tremer – perdoem – não tanto pela maravilha de uma história acontecida; não me faz tremer por aquilo que me aproxima deles, por aquilo, então, que me aproxima de vocês e que é o que de mais firme e de mais importante existe na minha e na vida de vocês. João Paulo II disse: “Não haverá fidelidade [...] se não se encontrar no coração do homem uma pergunta, para a qual somente Deus oferece resposta, melhor, para a qual somente Deus é a resposta”1. “Uma pergunta, para a qual somente Deus oferece a resposta”. Dos bancos da escola, onde nos encontramos, até a companhia de hoje – como eu já tinha acenado ontem à noite impelido pela liturgia –, é a seriedade dessa pergunta humana que eu me surpreendo nesta manhã a sentir em toda a sua exigência, em toda a sua força e em toda a precariedade de consistência que ela tem na vida de um homem. De fato, mesmo quando essa pergunta é intencionalmente viva, como ela é esquecida no acúmulo dos minutos e das horas do dia! Em suma, como nós nos afastamos de nós mesmos durante o curso do caminho do nosso tempo!Aquilo que me faz tremer, nesta manhã, é realmente a surpresa de que é possível uma distância de mim mesmo, porque a minha pessoa é o que deve vir a ser: o homem é um projeto, a sua definição advém da realização desse projeto. O pensamento desta manhã faz com que eu me surpreenda normalmente tão distante daquilo que, mesmo intencionalmente, de forma tão insistente retomo, medito de novo e relanço aos outros para meditarem. Quer dizer: como é urgente que a humanidade com a qual nos encontramos há tantos anos – pois aquilo que fez nos encontrarmos foi uma humanidade –, como é urgente que essa humanidade que fez nos encontrarmos há tantos anos, que vibrava dentro de vocês e que obtinha apaixonada resposta em mim, como é importante que essa humanidade seja reencontrada juntos, que nos ajudemos oportunamente a não esquecê-la! E para não “se esquecer”, é necessário que a resposta seja presente.

“Para que o homem possa acreditar em si mesmo, precisa acreditar em Deus – diz Karol Wojtyla em outra ocasião – sendo que o homem é criado à imagem e semelhança de Deus. Quando se tira Deus do homem, este não é devolvido a si mesmo, mas tirado de si mesmo!”2.

Quem sabe se nos comovemos ainda, como nos comovíamos em Varigotti, lendo os trechos impressos nas pequenas antologias preparadas para os três dias de Páscoa ou para os três dias de setembro, quem sabe se nos comovemos ainda como naquela época! Aos nossos amigos universitários, neste ano, recordei várias vezes – repeti também aos adultos de Milão durante a assembléia de início de ano – esta poesia do autor de Barrabás, Pär Lagerkvist, que me agrada tanto por ser como o resumo de todo o impulso humano ao qual nos apoiamos nos primeiros dez anos da nossa história: “É meu amigo um desconhecido, alguém que não conheço./ Um desconhecido distante, distante./ Por ele o meu coração está cheio de saudades. Porque ele não está junto a mim./ [...] Quem és tu que preenches o meu coração com tua ausência? Que preenches toda a terra com a tua ausência?”3. Hoje de manhã eu pensava: será que essa pergunta é verdadeira – é verdadeira –? Se para um homem ateu à procura foi possível uma expressão desse gênero, que deveria ser de mim? Como em mim deveria repetir, deveria ecoar, o pedido que Moisés fez a Deus depois do encontro, quando Deus estava indo embora: “Deixa-me ver o Teu rosto”4?

Então, eu gostaria antes de mais nada de dizer que é muito provável que a situação na qual nos encontramos torne intelectuais ou intencionais as nossas “crenças”, torne intelectuais e intencionais as nossas palavras, as palavras dos nossos discursos. Não que o coração esteja distante delas, mas com certeza é como se aquilo que essas palavras dizem fosse distante do coração, isto é, não fosse presença. Vocês cresceram: na medida em que garantiram para si mesmos uma capacidade humana na própria profissão, existe, como que possível, uma distância de Cristo (comparando à emoção de alguns anos atrás, especialmente de certas circunstâncias de alguns anos atrás). Existe como que uma distância de Cristo, exceto em determinados momentos. Quero dizer: existe uma distância de Cristo, exceto quando vocês se põem a rezar; existe uma distância de Cristo, exceto quando se põem, vamos supor, a cumprir algumas ações em Seu nome, em nome da Igreja ou em nome do Movimento. É como se Cristo estivesse distante do coração. Com o velho poeta do Ressurgimento italiano se diria: “Ocupado com tantos outros afazeres”5, o nosso coração está como que isolado, melhor, Cristo fica como que isolado do coração, exceto nos momentos de certas ações (um momento de oração, ou um momento de compromisso, quando acontece uma reunião geral, quando precisa puxar uma Escola de Comunidade, etc.).

Esse distanciamento de Cristo do coração, exceto quando a Sua presença pareça agir em certos momentos, gera também uma outra distância, que se revela num ulterior e definitivo embaraço entre nós – falo também de maridos e esposas – num ulterior e definitivo embaraço recíproco. A falta do conhecimento de Cristo (conhecimento como entende a Santa Bíblia: conhecimento como familiaridade, como harmonia, como identificação, como presença para o coração), a distância de Cristo do coração torna distante o aspecto definitivo do coração de um do aspecto definitivo do coração do outro, exceto nas ações comuns (sustentar a casa, cuidar dos filhos, etc.). Existe um relacionamento, indubitavelmente existe um relacionamento recíproco, mas é só nas operações, nas obras, nos gestos comuns nos quais as pessoas se encontrem ou vocês se encontrem. Mas quando vocês se encontram na ação comum, esta, levemente – muito ou pouco – torna obtuso o horizonte do seu olhar ou do seu sentir.

É verdade que tudo o que recebemos na vida, ficando adultos, sedimentou-se e opera; opera, não fica sem fruto. Estou falando deste modo, partindo da impressão que causo em mim mesmo, recordando que aquilo pelo que estou aqui é antes de mais nada aquilo pelo que os meus antigos alunos estão aqui, buscando eu aquilo que eles buscam; e é esse também o sentido, ao qual acenei ontem à noite, da presença de tantos sacerdotes (é um aspecto comovente ou o aspecto talvez mais comovente da nossa reunião, porque jamais estiveram conosco com a verdade simples com a qual estão aqui agora). Em suma, somos todos realmente homens em busca do seu destino e homens que foram avisados, tocados, encontrados pelo seu destino. Isto nos define, isto nos dá consistência.

De qualquer forma, eu parti fazendo uma consideração sobre mim mesmo e sobre o tremor, o embaraço que sinto com esta nossa conversa de hoje, porque é como se eu me sentisse despojado de tudo o que cotidianamente devo fazer, e devo fazer entre vocês, e percebesse em mim mesmo, depois de tanto tempo, mais do que em tantos outros tempos, essa equivocidade do “tornar-se adulto”. Com efeito, aquilo que nós recebemos se sedimenta de tal forma que dá também os seus frutos, mas o coração, justamente o coração, no sentido literal da palavra, é como se participasse do meu embaraço desta manhã, é como se estivesse sem jeito com Cristo, é como se não desse continuidade a uma familiaridade pressentida num certo momento da nossa existência, mesmo com toda a sentimentalidade característica da idade. Existe um embaraço que é distanciamento dEle, que é como uma não presença Sua, um ser que não determina o coração. Não nas ações, nelas pode ser determinante (vamos à igreja, “fazemos” o Movimento, talvez até rezemos Completas, fazemos Escola de Comunidade, nos comprometemos com a caritativa, fazemos um grupo aqui, um grupo ali e nos lançamos, nos projetamos também na política). Não falta nas ações: nas ações, em tantas ações, pode ser determinante, mas e no coração? No coração, não! O coração é a forma como a pessoa olha para os seus filhos, para a sua mulher ou o marido, como olha para alguém que passa, como olha as pessoas da comunidade ou os colegas de trabalho, ou então – principalmente – como se levanta de manhã. E essa distância explica também uma outra distância, que se revela inclusive num ulterior e definitivo embaraço nas relações entre nós, no olhar entre nós, pois é somente Cristo nosso irmão que pode nos tornar realmente irmãos – irmãos!

Se pensamos que o valor, a consistência e o valor da nossa vida estão na responsabilidade dessa proximidade de Cristo e portanto dessa proximidade entre homens, dessa proximidade entre nós, devemos então entender que a amizade e a companhia que pretendemos viver são para não deixar que suspendamos ou deixemos suspensa a nossa iniciativa nesse sentido. O meu relacionamento com Deus: isto pode sustentar a vida como obra que constrói o mundo, como coisa verdadeira. Mas o primeiro fruto que esse relacionamento pode dar é criar uma companhia, uma companhia entre quem pretende viver e realizar aquela obra. A nossa companhia quer não mais permitir que o tempo passe sem que a nossa existência peça, persiga, queira o relacionamento com Deus presente e sem que a nossa existência queira ou aceite aquela companhia, sem a qual sequer seria verdadeira a imagem da Sua presença.

Não sei se consegui dizer bem a impressão que me dominava, inquieta, ainda que confusa, nesta manhã: aquilo que eu chamei de “a equivocidade do tornar-se adulto” é realmente uma tomada de consciência da qual devemos partir. Eu não acho, de fato, que seja uma característica, estatisticamente normal, que tornar-se adulto tenha tornado Cristo mais familiar a nós, nos tenha tornado mais presença aquela “grande ausência”, nos tenha tornado mais familiar a resposta à pergunta com a qual percebemos a proposta vinte e cinco anos atrás. Não acredito. Paradoxalmente – insisto – Cristo é mesmo o motivo pelo qual fazemos um tipo de vida que não teríamos feito: e mesmo assim está longe do coração! Sendo assim, estamos “enredados” ou envolvidos numa companhia que não teríamos com certeza escolhido ou não teríamos tido assim, igual à que temos agora: e ainda assim tornar-se adulto nos introduz num embaraço e numa distância, no fundo, entre nós.

Direi que – e assim me direciono para a única coisa sobre a qual gostaria de insistir nesta manhã –, exceto por uma certa distração, que pode muito bem ofuscar como cortina de fumaça o fundo da questão, o tornar-se adulto é muito, muito difícil que possa evitar uma “desmoralização”. Não digo nas obras: estou falando do coração, não das obras. Certamente veremos que depois também as obras sofrem as conseqüências disso: não conseguem se tornar obras que desafiam realmente o tempo, não podem ter uma vigorosa tenacidade perante o tempo, aquela tenacidade vigorosa com a qual a liturgia define Deus, com a qual portanto a liturgia define a verdadeira duração, a verdadeira consistência das coisas. Essa dignidade cultural, essa vigorosa tenacidade perante o tempo depende do coração. Portanto, o problema é realmente do nosso coração: a fonte dos sentimentos, dos pensamentos, das imagens e, em última instância, dos juízos, das decisões e da energia ativa.

Não nas obras, mas como coração, em última instância, existe uma desmoralização. “Des-moralização”. Na Escola de Comunidade deste ano o significado dessa palavra se mostra bastante interessante: se a moralidade é tender a algo maior do que nós, a desmoralização significa a falta dessa tensão6. Insisto que, como discursos e também como obras – não com mentira, mas de verdade –, essa tensão ressurge, mas não está, em última instância, no coração. Porque aquilo que está, em última instância, no coração não há horas e não há condições que o impeçam ou que o suspendam; também ele pode viver o esquecimento de si, mas é um esquecimento de si que porém lhe permite igualmente viver. Como o eu não pode suspender o seu viver, do mesmo modo, quando o coração é moral, quando o coração não está desmoralizado, então aquela tensão para o “mais”, para algo mais, é como se nunca faltasse. Como é para as crianças a presença materna e paterna de vocês: enquanto o seu filho brinca, é como se não pensasse nisso, mas se vocês vão embora ele percebe e pára de brincar.

Então, quero dizer que existe uma desmoralização em nós, uma desmoralização que caracteriza o tornar-se adulto. A nossa companhia deve antes de mais nada nos fazer lutar contra essa desmoralização, quer ser o instrumento principal contra essa desmoralização. Não como é a nossa situação no Movimento (pois a nossa participação no Movimento não nos dá trégua quanto a coisas para fazer ou a compromissos a assumir e quanto a momentos e perspectivas a considerar): essa nossa companhia deve descer mais fundo, mais no fundo, e deve concernir a nós mesmos, concernir ao nosso coração. Esta é uma responsabilidade, paradoxalmente, que não se pode descarregar na companhia. O coração é a única coisa na qual é como se não houvesse parceiros, por isso não há uma organicidade dentro da qual haja várias pessoas, cada uma das quais tenha um papel. Quando se está numa equipe cada um tem um papel, um ajuda o ouro, e assim é no Movimento, nas atividades do Movimento. Aqui não! Portanto, a nossa deverá ser uma estranha companhia: é como uma companhia sobre a qual não se pode descarregar nada.

Deram-me esta poesia de Alain Bosquet que diz: “Sendo que eu era dois antes de ser um:/ ser um significa sofrer por isso [era dois, pai e mãe, antes de ser um]./ Sendo que eu era três antes de ser um:/ ser um significa morrer por isso [pai, mãe e filho; mas quando o filho se torna pessoa, se torna maduro, adulto, isto é, se torna só ele mesmo, deve decidir o seu destino e o seu caminho]./ Sendo que eu era mil antes de ser um:/ ser um, depois de morto, quer / dizer ser Deus./ Sendo que – esquecia – eu era zero,/ feliz e livre, antes de ser um./ Sendo que – esquecia – antes de ser / um, eu era aveia, rio, / dividido, muito múltiplo, / pássaro/ nuvem [antes de ser um eu era nada, isto é, era todo o acúmulo de coisas que biologicamente teriam suscitado o meu grumo]:/ ser um [agora] quer dizer sentir-se / insuportavelmente responsável”7. Quer dizer: antes havia o pai e a mãe, antes havia o padre e a diaconia, antes estávamos juntos na comunidade ou na diaconia, e esse ser eu mesmo, ali dentro, era exatamente “morrer por isso”. Antes éramos nada e tudo: mas, a um certo ponto, ser um, ser eu mesmo, deve se tornar “insuportavelmente responsável”. Eu li essa poesia porque me parecia significativa nesse sentido. Nesta nossa companhia deve acontecer exatamente assim: é uma estranha companhia, na qual um sujeito não pode descarregar nada sobre ela, porque cabe a ele. Mas o que é que lhe cabe? Qual é o contrário da desmoralização? O contrário da desmoralização, para dizer com uma palavra breve e veloz, é a esperança.

A esperança é, de forma imediata, a esperança a respeito de si mesmo, a esperança no próprio destino, a esperança no próprio fim. E não existe no mundo, não existe; esta esperança existe somente onde Deus falou ao homem. É por isso que Péguy faz Deus dizer em O pórtico do mistério da segunda virtude: “A fé que eu prefiro, diz Deus, é a esperança”8. Muito bem, a palavra que define o conteúdo dessa esperança é a que disse o anjo a Nossa Senhora: “Para Deus nada é impossível”9. Eu acredito que isto seja tudo. O homem novo que Cristo veio suscitar no mundo é o homem para o qual essa afirmação é o coração da vida: “Para Deus nada é impossível”; em que Deus não é o “Deus” dos nossos pensamentos, mas é o Deus verdadeiro, aquele vivo, vivo, ou seja, aquele que se tornou homem, isto é, Cristo.

“Para Deus nada é impossível”. É isto que nós podemos encontrar como a alma da grandeza do Antigo Testamento. Releiamos o belíssimo capítulo 18, versículo 14, do Gênesis: “Existe alguma coisa impossível para o Senhor?”. Que maravilha quando se imagina que, dizendo isto a Abraão, Deus tinha em mente aquilo que depois de tantos séculos teria dito a Nossa Senhora por meio do anjo: “Para Deus nada é impossível”! Esta frase está justamente no início da verdadeira história da humanidade, está nas origens da grande profecia do povo de Israel, está nas origens da história do povo novo, do mundo novo, no anúncio do anjo a Nossa Senhora, e está no início da ascese do homem novo, está no início da perspectiva e do movimento do homem novo, no capítulo 19 de Mateus. Depois que o jovem rico, perante o convite de Cristo (“Vende tudo o que tens e vem e segue-me”), “foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico”10 – era apegado ao que possuía – , Cristo se pôs a gritar contra os ricos. Mas não era um problema de dinheiro, no final das contas, tanto é verdade que os Apóstolos, diante da Sua frase: “É mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus”, disseram: “Então quem poderá entrar no Reino de Deus? Quem pode ser salvo?”. E eles eram paupérrimos, as quatro coisas que possuíam eles as tinham deixado. Jesus respondeu: “Para vós isso é impossível, mas para Deus tudo é possível”11. Como se faz para viver a realidade da nossa existência e o mundo com esse desapego – pois este é o pobre – que caracteriza o juízo e o manuseio das coisas à luz da sua função última? Vale dizer, como se faz para viver em função do reino de Deus? Jesus tinha explicado pouco antes falando do matrimônio. Como se faz para viver o matrimônio em função do reino de Deus? Ele, como resposta sem rodeios, agravou a questão falando da virgindade. Como se faz para viver no mundo sem a mulher, em função do reino de Deus? É a mesma coisa, são dois problemas iguais. Como se faz para viver em função do reino de Deus? “Para vocês é impossível, mas nada é impossível para Deus”. Para Deus nada é impossível. Por isso Péguy, nas primeiras páginas do seu drama, identifica a esperança com a figura da criança, ou seja, identifica o pobre em espírito – assim como o fez o Senhor – com a figura do homem que espera12. Para esperar é necessário ter pobreza de espírito, é necessário ser criança, porque a esperança tem como total motivo o apoio em outra coisa, o apoio no Deus vivo feito presença, feito nosso coração.

A essa desmoralização do tornar-se adulto, que é impossível não acontecer, por pouca sensibilidade que permaneça – por isso, se não acontece, a meu ver, é sinal de obtusidade da sensibilidade moral – a essa desmoralização que acontece ao tornar-se adulto, não no sentido banal do termo, mas em relação àquela familiaridade com Deus na qual está a essência da vida do homem, a essência da vocação humana (“Deus enviou aos nossos corações o Espírito, que clama ‘Abbá’, ó Pai”13), a essa desmoralização a nossa companhia deve substituir uma ajuda para que a nossa vida leve, no tempo e no espaço, a esperança, para que a nossa vida seja definida pela esperança. A esperança é uma idéia dominante, um sentimento – se vocês quiserem – mais dominante do que todos os outros, que atravessa todos os outros, que qualifica todos os outros: “Para Deus nada é impossível”; não para o Deus dos nossos pensamentos, repito, mas para o Deus que se tornou homem, o Deus vivo que se fez presença entre nós. Por isto será necessário ler seja a apologia de Abraão que São Paulo faz na Carta aos Romanos, capítulo 4, do versículo 18 ao 25 (aquela é a nossa figura, a figura que cada um de nós deverá assimilar), seja a Carta aos Hebreus, todo o capítulo 11.

Como é criança, pobre de espírito, esse grande mestre do espírito, a grande figura da história cristã dos primeiríssimos séculos que é Efrém, o Sírio! Que espírito de criança tem quando escreve essa oração, a oração do adulto, do velho: “Eis que a minha vida declina dia após dia e aumentam os meus pecados. Ó Senhor, Deus das almas e dos corpos, Tu conheces a minha fraqueza. Concede-me, Senhor, a Tua força, sustenta-me na minha miséria [...]. Ó Senhor, não desprezes a minha oração [...] e conserva-me a Tua benevolência até o fim”14!

“Dia após dia aumentam os meus pecados”: é esta a origem óbvia, justa – justa, no sentido que explica –, que justifica a desmoralização. Mas é como se algo absolutamente diferente de uma “razoabilidade humana” deva acontecer em nós, algo pelo qual a pessoa não conta mais consigo mesma, pelo qual não é naquilo que faz que põe a sua confiança, pelo qual o juízo sobre o valor da vida não é deduzido de nenhum dos seus programas. Ora, é exatamente essa estranha raiz que eu chamei “coração”: e a proximidade de Cristo com o nosso coração, essa presença de Cristo ao nosso coração é o que deve produzir a mudança profunda do nosso sujeito; e, estranho de se dizer, aí então programas, operações nossas, empenhos nossos, adquirirão uma energia, uma capacidade de consistência, uma utilidade que nós jamais teríamos esperado.

Quando um nosso caríssimo amigo, monge da Cascinazza, entregou-nos aquela oração medieval, que depois se difundiu (muitos, pelo menos em Milão, a receberam) talvez não soubesse que estava fazendo uma coisa tão útil para muitos. Mas por que útil para muitos? Porque é tão impossível ou tão raro para nós podermos encontrar o exemplo de um coração assim e portanto encontrarmo-nos com uma expressão desse homem novo ao qual todos aspiramos, ao qual estamos todos voltados! Nós temos necessidade dessa pobreza do coração ou dessa novidade do coração mais do que de qualquer outra coisa. A distância da qual eu falei antes, com efeito, não é somente de Cristo, mas também da mulher, no fundo, porque a distância de Cristo é o embaraço perante qualquer homem e também perante si mesmo. A pessoa volta a ser “dois”. Sem viver essa responsabilidade, como dizia Bosquet, volta-se a ser dois, três, mil, volta-se a ser zero. Diz a oração: “Meu Pai, eu te peço: faz de mim o que queres. Sou miserável, Senhor, tu sabes: salva-me como queres. Ninguém me prejudica quando do profundo do coração eu creio em ti. Toda a minha energia parece fugir de mim, a minha salvação és tu. Sou cego e te procuro. Estou caído, levanta-me. A tua mão me fez. Eu não peço a outros senão a ti. Meu Pai, eu te peço: como tu queres, faze de mim. Eu sou nada sem ti: o que queres faze de mim”15. O exemplo que o enclausurado ou o monge eram para a vida do povo cristão estava no nível dessa simplicidade. Mas quero dizer também que não é de jeito nenhum um discurso sentimental ou de caráter, de temperamento: é a indicação de uma direção sem a qual a pessoa não encontra jamais a si mesma e não pode contribuir realmente para construir um mundo novo.

Talvez se entenda bem com esse trecho que me escreveu uma universitária: “Às vezes é como se ninguém reconhecesse o Senhor, porque todas as cabeças estão dobradas sobre os próprios erros e os dos outros, sobre os próprios problemas e projetos. Parece que seja insustentável a fadiga de erguer o olhar de si para aquela Presença. Assim Cristo não consegue movimentar nada de verdade em nós, não lhe damos glória. Pensa-se em Cristo e age-se em nome de Cristo, mas não se reconhece o Senhor ressuscitado, vitorioso e presente”. Jamais encontrei, até agora, em sessenta anos, uma expressão mais sintética e mais precisa da doença mortal que está no povo cristão e, mais particularmente, que está nas pessoas que queiram viver o cristianismo, como as pessoas do Movimento. E digo que é uma expressão sintética também no sentido de que é simplicíssima. Por isso vou relê-la, porque eu gostaria nesta manhã de ter de dizer somente isto, para proclamar que a Fraternidade de Comunhão e Libertação não quer outra coisa senão gerar consciências assim, e basta, pois aí então estaríamos certos de que algo de novo acontece no mundo. “Às vezes é como se ninguém reconhecesse o Senhor, porque todas as cabeças estão dobradas sobre os próprios erros e os dos outros, sobre os próprios problemas e projetos. Parece que seja insustentável a fadiga de erguer o olhar de si para aquela Presença. Assim Cristo não consegue movimentar nada de verdade em nós, não lhe damos glória. Pensa-se em Cristo e age-se em nome de Cristo, mas não se reconhece o Senhor ressuscitado, vitorioso e presente”.

Há alguns anos, sempre venho fazendo uma comparação que, como imagem, repropõe essa consciência. Acredito que devemos realmente tomar ao pé da letra aquilo que Cristo diz: “Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus”16. Em que lugar a criança expressa totalmente a si mesma? Quando ela é de verdade e totalmente ela mesma senão no instante em que, dentro de uma circunstância tranqüila, dentro de uma circunstância alegre, dentro de uma circunstância adversa e dolorosa, olha para sua mãe e existe como que uma fração de tempo no qual é como se esquecesse tudo, em que aquilo que preenche o seu rosto, aquilo que preenche a sua pessoa, isto é, a sua consistência, é a presença daquela mulher ou daquele homem, o pai? O que caracteriza a criança é que a sua consistência é a presença de um outro, de um adulto, de uma mulher ou de um homem: essa é toda a sua consistência.

Na oração medieval ou na oração do grande Efrém, o Sírio, tudo se reconduz a ter um coração de criança. E ter um coração de criança quer dizer afastar o rosto dos próprios problemas, dos projetos, dos próprios defeitos, dos defeitos dos outros, para olhar Cristo ressuscitado. “Tirar o olhar de si mesmo e dirigi-lo para aquela Presença”. É como se tivesse de passar um vento para levar embora tudo o que somos; então o coração volta de novo a ficar livre, melhor, fica livre: continua a viver na carne, isto é, erra como antes (“Os pecados se acumulam dia após dia”, dizia o grande Santo Efrém), mas é como se uma outra coisa tivesse entrado no mundo. Um novo homem entrou o mundo e, com ele, um novo caminho. “Eis que abri uma estrada no deserto: acaso não vêem?”17. No deserto do mundo abre-se uma estrada, abre-se a possibilidade de obras, mas principalmente de uma obra. “Obras” são a expressão do humano; “obra” é um humano novo, uma companhia humana nova.

Sem essa simplicidade, sem essa pobreza, sem que tenhamos a capacidade de erguer o olhar de nós mesmos para aquela Presença, é impossível uma companhia que tire de si aquele embaraço de fundo, e que se torne assim realmente caminho. É impossível. Quer dizer, é impossível uma companhia que se torne realmente ajuda no caminho ao destino, se para as pessoas daquela companhia o destino não é tudo. Mas o destino se tornou uma pessoa, um homem como eu, que morreu e ressuscitou, e o acontecimento dessa ressurreição continua no mundo e vibra em mim. É preciso tirar o olhar de mim mesmo para olhar aquela Presença, a presença de Cristo ressuscitado.

Agora quero recordar-lhes o discurso de João Paulo II por ocasião da Páscoa – quero reler dois ou três trechos – e depois deixar que vocês meditem alguns trechos da Bíblia. Diz o Papa: “[Primeiro:] entre a vida e a morte trava-se uma luta desde o início. Trava-se no mundo a batalha entre o bem e o mal. Hoje a balança sobe de um lado: a Vida leva a melhor; o Bem leva a melhor. Cristo crucificado ressuscitou do túmulo; fez correr a balança em favor da Vida. Enxertou de novo a vida no terreno das almas humanas. A morte tem [agora] os seus limites. Cristo abriu uma grande esperança [...]. [Este é o anúncio. Mas em que situação vivemos?] Passam os anos, passam os séculos. É o ano de 1982. A Vítima pascal continua a ser como a videira enxertada no terreno da humanidade. No mundo, o bem e o mal continuam a lutar. Lutam a vida e a morte; lutam o pecado e a graça. É o ano de 1982. Devemos pensar com inquietação rumo a que o mundo contemporâneo está se dirigindo. Tendo colocado profundamente as raízes na humanidade dos nossos tempos, as estruturas do pecado como uma larga ramificação de mal – parecem ofuscar [todo] o horizonte do Bem. [...] Parecem ameaçar com a destruição o homem e a terra. [...] [Mas] ainda que na história dos homens, dos indivíduos, das famílias, da sociedade, enfim, da humanidade inteira o mal tivesse se desenvolvido desproporcionalmente, ofuscando o horizonte do bem, ele todavia não te superará! Cristo ressuscitado já não morre. Ainda que na história do homem [...] o mal se tornasse poderoso; ainda que humanamente não se visse o retorno ao mundo no qual o homem vive na paz e na justiça, ao mundo do amor social, ainda que humanamente não se visse a passagem, ainda que se enfurecessem as potências das trevas e as forças do mal, tu, Vítima pascal! Cordeiro sem mancha! Redentor! Já obtiveste a vitória! A tua Páscoa é [esta] passagem! Tu fizeste [...] dela a nossa vitória! [...] Permanece [isto é] o mistério da Ressurreição no próprio coração de cada morte humana. Permanece o mistério da Ressurreição no coração das multidões: no próprio coração das inúmeras multidões [...]. O mistério Pascal da Reconciliação permanece na profundidade do mundo humano. E daí ninguém o arrancará!”18

Devemos aplicar literalmente a nós mesmos, pois aquilo que o mundo é não é senão uma projeção ampliada – portanto nós a olhamos com olhos muito mais amedrontados – daquilo que está em nós. Mas o mistério pascal da reconciliação permanece no mundo humano, também na profundidade do nosso mal, e daí ninguém o arrancará.

“Elevar o olhar para aquela Presença”. Com outras palavras, liturgicamente, poderíamos dizer: “Viver a Sua memória”. Eu queria apenas recordar que a questão de toda a nossa vida, a nossa história cristã, a nossa história de Movimento, é como se tivesse chegado ao cume, onde é obrigada a simplificar-se totalmente. O Senhor nos colocou juntos e nós aceitamos nos juntar exatamente para que essa simplicidade aconteça, para que essa simplificação suprema aconteça, para que essa realização aconteça. Nós nos juntamos para que essa simplicidade aconteça em nós: de um lado deve ser incrementada uma consciência vívida do nosso pecado, o qual, como “estruturas de mal” diz o Papa, se ramifica em nós (é essa mesquinhez incomparável que define, no sentido de que “põe fim” a todos os nossos dias, “acaba” com eles); de outro lado, deve ser incrementada a certeza, a segurança, a certeza e a segurança de que todo esse mal que está em mim é vencido – vencido! – por uma presença. Como para a criança: seja qual for a condição em que esteja, a presença da mãe ou do pai é a segurança de que tudo está no lugar, de que tudo é bem.

Gostaria que esta manhã, no tempo da meditação, vocês relessem a bela profecia do homem que Cristo veio encontrar, ou seja, a profecia de cada um de nós. Gostaria que vocês relessem no velho Isaías, capítulo 38, o Cântico de Isaías19, todo o capítulo 41 e depois o capítulo 55, porque eu acredito que aí esteja expresso o espírito e o sentimento de si que nós somos chamados a “restituir” de forma madura agora (“restituir” porque é o espírito de quando éramos crianças; “de forma madura” porque somos adultos): somos chamados a “restituí-lo” em vida, para que uma nova vida aconteça em nós e seja fonte de uma presença diferente de humanidade, fonte de uma companhia diferente e fonte de obras diferentes. A leitura desses três trechos de Isaías, que estão entre as mais belas páginas de toda a Bíblia, é para que entendamos e sintamos mais facilmente (a profecia foi feita para nos tornarmos mais capazes de entender o que Cristo nos trouxe), justo de forma psicológica, a postura nova que deve acontecer em nós, de sensibilidade para com o nosso mal, mas de uma sensibilidade e uma dor imediatamente assumidos e derrotados pela certeza – cheia de gratidão, cheia de letícia e cheia de perspectiva, portanto toda fecunda como ímpeto – e pelo pensamento da presença de Cristo.

Que Cristo se torne presença para o nosso coração, na raiz de tudo o que expressa a nossa pessoa e o nosso ser: eu acredito que a mudança a que devemos aspirar seja esta. É uma mudança não das coisas que fazemos, não das coisas que não devemos fazer, mas do coração. A nossa companhia existirá somente para isso, terá na mira somente isso. É também verdade que não é possível ficar numa companhia que ajude nisso sem que já se queira isso, isto é, sem que de algum modo essa simplicidade não seja já preferida, sem que essa pobreza do coração ou essa presença de Cristo como a coisa sumamente desejada já não esteja presente. Se ainda não está presente e dominante, se outra coisa domina o nosso coração, é impossível que nos coloquemos numa companhia desse tipo: retorna-se a uma companhia como sempre a tivemos. Ao contrário, não devemos perder essa oportunidade, esse cume, essa oportunidade vertiginosa que o Senhor nos deu.

Dom Cox, que é Secretário do Pontifício Conselho para a Família criado por João Paulo II, foi a Turim falar numa reunião proposta pelas nossas famílias. Alguns dos participantes me escreveram dizendo que, quando um de nós lhe perguntou sobre suas impressões acerca dos nossos Centros Culturais, aos quais ele tinha ido, Dom Cox respondeu que indo à Itália encontrou uma Igreja muito individualista e formal, com muitos pastores separados das pessoas e alheios à sua experiência, e isto o desagradou muito. Quando encontrou a realidade de CL ficou muito contente porque viu pessoas abertas, que vivem com alegria a fé dentro do mundo, em meio às várias situações. Para ele, CL tem um método muito interessante e original porque, vivendo a comunidade cristã, é capaz de gerar instrumentos e estruturas de presença na sociedade que não se identificam com a comunidade ou com o Movimento, e portanto são para todos, mas, ao mesmo tempo não têm o medo de declarar a própria origem e a própria identidade, e isto, segundo ele, é muito original e muito importante. Esta observação de Dom Cox sobre a natureza do Movimento, muito justa e centrada, junto à importância histórica que a nossa experiência possui, assim como a Igreja reconheceu, revela mais uma vez e num modo agora imprescindível que o problema são as pessoas. O problema é que as pessoas que vivem essa experiência a vivam até o fundo. Vivê-la até o fundo não quer dizer deixar de ser pecadores, mas ser verdadeiros: essa verdade é na fé, e a fé é reconhecer que Deus tornou-se homem e que ressuscitou para nós, já venceu para nós, e que esse homem que venceu está presente. Mas não está presente se não penetra o coração. Se penetra o coração, é o conteúdo mais imediato do nosso olhar, o nosso olhar não é mais prisioneiro daquilo que somos ou daquilo que os outros são ou das circunstâncias. É como uma criança que olha para sua mãe. Assim deve ser o nosso coração. Pedindo a vocês que leiam na Bíblia o Salmo 13020, gostaria que aprendêssemos esse pequenino salmo de cor, porque deveria se tornar o programa da caminhada pessoal de cada um que seja parte da Fraternidade.

Sinto muito não ter dito o que eu teria gostado de dizer de forma mais breve e simples. Eu queria comunicar – encontrando-me nesta manhã, como disse no início, tão improvisamente no mesmo nível daqueles que estavam nos bancos de escola quando eu estava na cátedra há tantos anos – uma única coisa: a palavra que mais a exprime é a palavra “esperança”. Mas “a esperança é a fé que mais agrada a Deus”21, dizia Péguy, porque a esperança é a letícia ao olhar para a vida, que a criança carrega quando percebe que ali está sua mãe e no primeiro instante a olha, é a letícia com a qual cada um de nós foi chamado a olhar e a enfrentar o mundo na certeza simples de que tudo já está realizado, porque Cristo ressuscitou e Cristo ressuscitado está nele. É “esta” companhia que pode permitir a “nossa” companhia, assim como, ao contrário, a distância de Cristo, na nossa vida de adultos, é a raiz última do embaraço que existe também nas nossas agremiações, até nas realidades de família, entre homem e mulher.

Eu lhes pediria para ficarem em silêncio, agora; enquanto isso, cada um reze o Ângelus por conta própria, porque esta é uma prática que não se pode esquecer: é a prática que obriga a começar sempre, a colocar a nossa memória sempre no início.

Hoje de manhã eu quis simplesmente dizer onde está o coração da questão. Até porque, repito, sem este coração será difícil que as fraternidades vivam, ou seja, fiquem juntas, mantenham-se unidas. Vocês sabem por que o Movimento teve início? O Movimento teve início porque eram “meninos”: é preciso voltar a ser meninos para fazer a Fraternidade, caso contrário é impossível que aconteça. E esse “voltar a ser meninos”, aos quarenta anos, aos cinqüenta anos ou aos sessenta anos, é realmente o cume da vida e a fonte daquela juventude, daquele jovialidade, que permite agir, isto é, criar: é a fonte da fecundidade.

Chamados à santidade (Dom Orani João Tempesta, Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro)




Chamados à santidade
24/06/2010

Dias atrás encerramos o Ano Sacerdotal, que foi marcado por muitas celebrações, missas, adorações, palestras, conferências, seminários, peregrinações, horas santas. O Papa Bento XVI foi muito feliz e inspirado ao dedicar o tema do sacerdócio neste último ano, por ocasião dos 150 anos de falecimento de São João Maria Vianney. Tudo o que foi celebrado e meditado levou os Sacerdotes a refletirem ainda mais sobre a beleza do que é ser consagrado e o valor da sua missão. O Padre possui uma grande missão em meio aos desafios dos tempos atuais: “Ser outro Cristo”. Foi também uma ótima ocasião para o nosso povo valorizar ainda mais o presbítero e rezar pelo clero e pelas vocações de especial consagração.

Assim como todo cristão é chamado a ser “outro Cristo”, muito mais ainda o Sacerdote! Essa intuição não é apenas uma metáfora, mas uma maravilhosa, surpreendente e consoladora realidade. Pelo Sacramento da Ordem, o Sacerdote age in persona Christi emprestando a Jesus Nosso Senhor a voz, as mãos e todo o seu ser, pois é Jesus quem na Santa Missa, com as palavras da consagração, muda a substância do pão e do vinho na do seu Corpo e do seu Sangue. É também o próprio Jesus quem, no Sacramento da Reconciliação, pronuncia a palavra autorizada e paterna: “Os teus pecados te são perdoados” (Mt 9, 2; Lc 5,20; 7,48; Jo 20,23). É Cristo quem fala quando o Sacerdote, exercendo seu ministério em nome e no espírito da Igreja, anuncia a palavra de Deus. É também o próprio Cristo quem tem cuidado com os enfermos, com as crianças e com os pecadores quando os envolve com o amor e a solicitude pastoral dos ministros sagrados.

O Sacerdote atua “na pessoa de Cristo”! Esta identificação irrepetível entre Cristo e o sacerdote, delimitando a sua identidade, fica claramente desenhada na “Pastores dabo vobis” – “o Senhor estabelece uma estreita conexão entre o ministério confiado aos Apóstolos e a sua própria missão – ‘quem vos acolhe, acolhe-me a mim, e quem me acolhe, acolhe aquele que me enviou’ (Mt 10, 40)”(cf. PDV 14). Os sacerdotes são chamados a prolongar a presença de Cristo, o único e Sumo Pastor.

O Padre é chamado a assumir sua identidade de tal maneira que, além da missão e do serviço, sua vida seja também o sinal de quem se consagrou a Deus com todo o seu ser, ou seja, o esforço da sua luta consiste em ir conseguindo, pouco a pouco, fazer transparecer o rosto de Jesus no seu semblante. A vida espiritual do Padre também deve estar dirigida, toda ela, para conseguir na tela de sua existência o perfil extraordinariamente atrativo do Bom Pastor. Essa tomada de consciência e a caminhada de aprofundamento para se configurar ao Cristo Pastor trarão um júbilo inigualável, do qual emanam os dons da paz e da alegria.

Outro dado completamente associado a esta configuração a Cristo é a santidade. A santidade é o resultado do crescimento pleno da graça batismal. A santidade é a consequência ordinária do amadurecimento da vida espiritual com as consequências existenciais na vida da pessoa. A exortação apostólica Pastores dabo vobis nos fala que essa vocação universal para a santidade “encontra particular aplicação no caso dos presbíteros – estes são chamados não só enquanto batizados, mas também e especialmente enquanto presbíteros, ou seja, por um título novo e de modo original, derivado do Sacramento da Ordem” (Pastores dabo vobis,19). Para o Sacerdote, “uma vocação específica à santidade, mais precisamente uma vocação que se fundamenta no Sacramento da Ordem. Temos alguns elementos que definem o conteúdo da especificidade da vida espiritual dos presbíteros: a sua consagração, que os configura a Jesus Cristo, cabeça e pastor da Igreja; a sua missão, típica dos presbíteros, que os compromete a serem “instrumentos vivos de Cristo, eterno Sacerdote” e a agirem “em nome e na pessoa do próprio Cristo”; enfim, a sua vida inteira vocacionada para testemunhar de modo original a radicalidade evangélica. Portanto, o padre está chamado de uma maneira especial à santidade pessoal para contribuir com o incremento da santidade da comunidade eclesial que lhe foi confiada. O Capítulo V da constituição conciliar Lumen Gentium nos fala sobre esta responsabilidade de levar a cabo a vocação universal à santidade.

Vigilia do Papa com os sacerdotes do mundo inteiro






CONCLUSÃO DO ANO SACERDOTAL
VIGÍLIA POR OCASIÃO DO ENCONTRO
INTERNACIONAL DE SACERDOTES
DIÁLOGO DO PAPA BENTO XVI
COM OS SACERDOTES
Praça de São Pedro
Quinta feira, 10 de Junho de 2010


Perguntas dos sacerdotes ao Papa Bento XVI
América:
P. – Beatíssimo Padre, sou Pe. José Eduardo Oliveira e Silva e venho da América, exatamente do Brasil. A maior parte de nós aqui presentes está comprometida na pastoral direta, na paróquia, e não só com uma comunidade, mas por vezes já somos párocos de várias paróquias, ou de comunidades particularmente vastas. Com toda a boa vontade procuramos enfrentar as necessidades de uma sociedade muito mudada, já não totalmente cristã, mas damo-nos conta de que o nosso "fazer" não é suficiente. Para onde ir, Santidade? Em que direção?
R. – Queridos amigos, antes de tudo gostaria de expressar a minha grande alegria porque estão reunidos aqui sacerdotes de todas as partes do mundo, na alegria da nossa vocação e na disponibilidade para servir o Senhor com todas as nossas forças, neste nosso tempo. Em relação à pergunta: estou deveras consciente de que hoje é muito difícil ser pároco, também e, sobretudo nos países de antiga cristandade; as paróquias tornam-se cada vez mais vastas, unidades pastorais... é impossível conhecer todos, é impossível fazer todos os trabalhos que se esperam de um pároco. E assim, realmente, perguntamo-nos para onde ir, como o senhor disse. Mas em primeiro lugar gostaria de dizer: sei que existem tantos párocos no mundo que dedicam realmente toda a sua força pela evangelização, pela presença do Senhor e dos seus Sacramentos, e a estes fiéis párocos, que trabalham com todas as forças da sua vida, do nosso ser apaixonados por Cristo, gostaria de dizer um grande "obrigado", neste momento. Disse que não é possível fazer tudo o que se deseja, tudo o que talvez se deva fazer, porque as nossas forças são limitadas e as situações são difíceis numa sociedade cada vez mais diversificada, mais complicada. Penso que, sobretudo, é importante que os fiéis possam ver que este sacerdote não faz apenas um "job", horas de trabalho, e depois está livre e vive só para si mesmo, mas é um homem apaixonado de Cristo, que traz em si o fogo do amor de Cristo. Se os fiéis vêem que ele está cheio da alegria do Senhor, compreendem também que não pode fazer tudo, aceitam os limites e ajudam o pároco. Este parece-me o aspecto mais importante: que se possa ver e sentir que o pároco realmente se considera chamado pelo Senhor; que está cheio de amor ao Senhor e aos seus. Se isto existe, compreende-se e pode-se ver também a impossibilidade de fazer tudo. Por conseguinte, estar cheios da alegria do Evangelho com todo o nosso ser é a primeira condição. Depois devem fazer-se opções, ter a prioridade, ver quanto é possível e quanto é impossível. Diria que conhecemos as três prioridades fundamentais: são as três colunas do nosso ser sacerdotes. Primeiro, a Eucaristia, os Sacramentos: tornar possível e presente a Eucaristia, sobretudo dominical, na medida do possível, para todos, e celebrá-la de modo que se torne realmente o visível acto de amor do Senhor por nós. Depois, o anúncio da Palavra em todas as dimensões: do diálogo pessoal à homilia. O terceiro aspecto é a "caritas", o amor de Cristo: estar presentes para quem sofre, para os pequeninos, para as crianças, para as pessoas em dificuldade, para os marginalizados; tornar realmente presente o amor do Bom Pastor. E depois, uma prioridade muito importante é também a relação pessoal com Cristo. No breviário, a 4 de Novembro, lemos um bonito texto de São Carlos Borromeu, grande pastor, que se entregou verdadeiramente a si mesmo, e que nos diz a nós, a todos os sacerdotes: "não descuides a tua alma: se a tua própria alma for descuidada, também não podes dar aos outros quanto deverias. Por conseguinte, também deves ter tempo para ti mesmo, para a tua alma", ou, por outras palavras, a relação com Cristo, o diálogo pessoal com Cristo é uma prioridade pastoral fundamental, é condição para o nosso trabalho para os outros! E a oração não é algo marginal: a "profissão" do sacerdote é precisamente rezar, também como representante do povo que não sabe rezar ou não encontra tempo para o fazer. A oração pessoal, sobretudo a Oração das Horas, é alimento fundamental para a nossa alma, para toda a nossa acção. E, por fim, reconhecer os nossos limites, abrir-nos também a esta humildade. Recordemos uma narração de Marcos, no capítulo6, onde os discípulos estão "stressados", querem fazer tudo, e o Senhor diz: "Vamos embora, repousai um pouco" (cf. Mc 6, 31). Também isto é trabalho – diria – pastoral: encontrar e ter a humildade, a coragem de repousar. Portanto, penso que a paixão pelo Senhor, o amor do Senhor, nos mostra as prioridades, as escolhas, nos ajuda a encontrar o caminho. O Senhor ajudar-nos-á. Obrigado a todos vós!
África
P. – Santidade, sou Mathias Agnero e venho da África, exactamente da Costa do Marfim. Vossa Santidade é um Papa-teólogo, enquanto nós, quando conseguimos, lemos apenas alguns livros de teologia para a formação. Contudo, parece-nos que se criou uma ruptura entre teologia e doutrina e, ainda mais, entre teologia e espiritualidade. Sente-se a necessidade de que o estudo não seja só académico mas alimente a nossa espiritualidade. Sentimos a necessidade disto no próprio ministério pastoral. Por vezes a teologia não parece ter Deus no centro e Jesus Cristo como primeiro "lugar teológico", mas tem ao contrário os gostos e as tendências difundidas; e a consequência é o proliferar de opiniões subjectivas que permitem o introduzir-se, também na Igreja, de um pensamento não católico. Como podemos não nos desorientar na nossa vida e no nosso ministério, quando é o mundo que julga a fé e não o contrário? Sentimo-nos "descentrados"!
R. – Obrigado. O senhor focou um problema muito difícil e doloroso. Há realmente uma teologia que quer ser académica sobretudo, parecer científica e esquece a realidade vital, a presença de Deus, a sua presença entre nós, o seu falar hoje, não só no passado. Já São Boaventura, no seu tempo, distinguiu duas formas de teologia; disse: "há uma teologia que provém da arrogância da razão, que quer dominar tudo, que faz passar Deus de sujeito para objecto que nós estudamos, enquanto deveria ser sujeito que nos fala e nos guia". Há realmente este abuso da teologia, que é arrogância da razão e não alimenta a fé, mas obscurece a presença de Deus no mundo. Depois, há uma teologia que quer conhecer mais por amor ao amado, é estimulada pelo amor e guiada pelo amor, quer conhecer mais o amado. Esta é a verdadeira teologia, que vem do amor de Deus, de Cristo e quer entrar mais profundamente em comunhão com Cristo. Na realidade, as tentações, hoje, são grandes; sobretudo, impõe-se a chamada "visão moderna do mundo" (Bultmann, "modernes Weltbild"), que se torna o critério de quanto seria possível ou impossível. E assim, precisamente com este critério que tudo é como sempre, que todos os acontecimentos históricos são do mesmo género, excluiu-se precisamente a novidade do Evangelho, excluiu-se a irrupção de Deus, a verdadeira novidade que é a alegria da nossa fé. O que fazer? Aos teólogos eu diria antes de mais: tende coragem. E gostaria de manifestar o meu grande obrigado também aos numerosos teólogos que fazem um bom trabalho. Existem os abusos, sabemo-lo, mas em todas as partes do mundo existem muitos teólogos que vivem verdadeiramente da Palavra de Deus, se alimentam da meditação, vivem a fé da Igreja e querem ajudar para que a fé esteja presente no nosso hoje. A estes teólogos gostaria de dizer um grande "obrigado". E diria aos teólogos em geral: "não tenhais medo deste fantasma da cientificidade!". Eu sigo a teologia desde 1946: comecei a estudá-la em Janeiro desse ano e portanto vi quase três gerações de teólogos, e posso dizer: as hipóteses que naquele tempo, e depois nos anos 60 e 80 eram as mais novas, absolutamente científicas, quase dogmáticas, entretanto envelheceram e já não são válidas! Muitas delas parecem quase ridículas. Portanto, ter a coragem de resistir à aparente cientificidade, de não se submeter a todas as hipóteses do momento, mas pensar realmente a partir da grande fé da Igreja, que está presente em todos os tempos e nos dá o acesso à verdade. Sobretudo, também, não pensar que a razão positivista, que exclui o transcendente – que não pode ser acessível – é a verdadeira razão! Esta razão frágil, que só apresenta as realidades experimentáveis, é realmente uma razão insuficiente. Nós teólogos devemos usar a razão grande, que está aberta à grandeza de Deus. Devemos ter a coragem de ir além do positivismo à questão das raízes do ser. Isto parece-me de grande importância. Portanto, é preciso ter a coragem da grande, ampla razão, ter a humildade de não se submeter a todas as hipóteses do momento, viver da grande fé da Igreja de todos os tempos. Não há uma maioria contra a maioria dos Santos: a verdadeira maioria são os Santos na Igreja e devemos orientar-nos por eles! Depois, digo o mesmo aos seminaristas e aos sacerdotes: Pensai que a Sagrada Escritura não é um livro isolado: é vivo na comunidade viva da Igreja, que é o mesmo sujeito em todos os séculos e garante a presença da Palavra de Deus. O Senhor deu-nos a Igreja como sujeito vivo, com a estrutura dos Bispos em comunhão com o Papa, e esta grande realidade dos Bispos do mundo em comunhão com o Papa garante-nos o testemunho da verdade permanente. Tenhamos confiança neste Magistério permanente da comunhão dos Bispos com o Papa, que nos representa a presença da Palavra. E depois, tenhamos confiança também na vida da Igreja e, sobretudo, devemos ser críticos. Certamente a formação teológica – gostaria de dizer isto aos seminaristas – é muito importante. No nosso tempo devemos conhecer bem a Sagrada Escritura, também precisamente contra os ataques das seitas; devemos ser realmente amigos da Palavra. Devemos conhecer também as correntes do nosso tempo para poder responder razoavelmente, para poder – como diz São Pedro – "explicar a razão faz nossa fé". A formação é muito importante. Mas devemos ser também críticos: o critério da fé é o critério com o qual ver também os teólogos e as teologias. O Papa João Paulo II deixou-nos um critério absolutamente seguro no Catecismo da Igreja Católica: vemos nele a síntese da nossa fé, e este Catecismo é verdadeiramente o critério para ver para onde se orienta uma teologia aceitável ou inaceitável. Portanto, recomendo a leitura, o estudo deste texto, e assim podemos ir em frente com uma teologia crítica no sentido positivo, ou seja, contra as tendências da moda e aberta às verdadeiras novidades, à profundidade inexaurível da Palavra de Deus, que se revela nova em todos os tempos, também no nosso.
Europa
P. – Santo Padre, sou Pe. Karol Miklosko e venho da Europa, exactamente da Eslováquia, e sou missionário na Rússia. Quando celebro a Santa Missa encontro-me a mim mesmo e compreendo que ali encontro a minha identidade, a raiz e a energia do meu ministério. O sacrifício da Cruz revela-me o Bom Pastor que dá tudo pelo rebanho, por cada ovelha, e quando digo: "Isto é o meu corpo... isto é o meu sangue" oferecido e derramado em sacrifício por vós, então compreendo a beleza do celibato e da obediência, que livremente prometi no momento da ordenação. Mesmo com as dificuldades naturais, o celibato parece-me óbvio, olhando para Cristo, mas sinto-me transtornado ao ler tantas críticas mundanas a este dom. Peço-lhe humildemente, Padre Santo, que nos ilumine sobre a profundeza e o sentido autêntico do celibato eclesiástico.
R. – Obrigado pelas duas partes da sua pergunta. A primeira, onde mostra o fundamento permanente e vital do nosso celibato; a segunda, que mostra todas as dificuldades nas quais nos encontramos no nosso tempo. A primeira é importante, isto é: o centro da nossa vida deve ser realmente a celebração quotidiana da Sagrada Eucaristia; e aqui são centrais as palavras da consagração: "Isto é o meu Corpo, isto é o meu Sangue", ou seja: falamos "in persona Christi". Cristo permite que usemos o seu "eu", que falemos no "eu" de Cristo, Cristo "atrai-nos para si" e permite que nos unamos, une-nos com o seu "eu". E assim, através desta acção, este facto que Ele nos "atrai" para si mesmo, de modo que o nosso "eu" se torna um só com o seu, realiza a permanência, a unicidade do seu Sacerdócio; assim Ele é sempre realmente o único Sacerdote, e contudo muito presente no mundo, porque nos "atrai" para si mesmo e deste modo torna presente a sua missão sacerdotal. Isto significa que somos "atraídos" para o Deus de Cristo: é esta união com o seu "eu" que se realiza nas palavras da consagração. Também no "estás perdoado" – porque nenhum de nós poderia perdoar os pecados – é o "eu" de Cristo, de Deus, o único que pode perdoar. Esta unificação do seu "eu" com o nosso implica que somos "atraídos" também para a sua realidade de Ressuscitado, que prosseguimos rumo à vida plena da ressurreição, da qual Jesus fala aos Saduceus em Mateus, capítulo 22: é uma vida "nova", na qual já estamos além do matrimónio (cf. Mt 22, 23-32). É importante que nos deixemos sempre de novo embeber por esta identificação do "eu" de Cristo connosco, por este ser "lançados" para o mundo da ressurreição. Neste sentido, o celibato é uma antecipação. Transcendamos este tempo e caminhemos em frente, e assim "atrairemos" para nós próprios e o nosso tempo rumo ao mundo da ressurreição, à novidade de Cristo, à vida nova e verdadeira. Por conseguinte, o celibato é uma antecipação tornada possível pela graça do Senhor que nos "atrai" para si rumo ao mundo da ressurreição; convida-nos sempre de novo a transcender-nos a nós mesmos, este presente, rumo ao verdadeiro presente do futuro, que hoje se torna presente. E chegamos a um ponto muito importante. Um grande problema da cristandade do mundo de hoje é que já não se pensa no futuro de Deus: só o presente deste mundo parece suficiente. Queremos ter só este mundo, viver só neste mundo. Assim fechamos as portas à verdadeira grandeza da nossa existência. O sentido do celibato como antecipação do futuro é precisamente abrir estas portas, tornar o mundo maior, mostrar a realidade do futuro que deve ser vivido por nós como presente. Por conseguinte, viver assim num testemunho da fé: cremos realmente que Deus existe, que Deus tem a ver com a minha vida, que posso fundar a minha vida em Jesus, na vida futura. E conhecemos agora as críticas mundanas das quais o senhor falou. É verdade que para o mundo agnóstico, o mundo no qual Deus não tem lugar, o celibato é um grande escândalo, porque mostra precisamente que Deus é considerado e vivido como realidade. Com a vida escatológica do celibato, o mundo futuro de Deus entra nas realidades do nosso tempo. E isto deveria desaparecer! Num certo sentido, esta crítica permanente contra o celibato pode surpreender, num tempo em que está cada vez mais na moda não casar. Mas este não-casar é uma coisa total, fundamentalmente diversa do celibato, porque o não-casar se baseia na vontade de viver só para si mesmo, de não aceitar qualquer vínculo definitivo, de ter a vida em todos os momentos em plena autonomia, decidir em qualquer momento como fazer, o que tirar da vida; e portanto um "não" ao vínculo, um "não" à definitividade, um ter a vida só para si mesmos. Enquanto o celibato é precisamente o contrário: é um "sim" definitivo, é um deixar-se guiar pela mão de Deus, entregar-se nas mãos do Senhor, no seu "eu", e portanto é um acto de fidelidade e de confiança, um acto que supõe também a fidelidade do matrimónio; é precisamente o contrário deste "não", desta autonomia que não se quer comprometer, que não quer entrar num vínculo; é precisamente o "sim" definitivo que supõe, confirma o "sim" definitivo do matrimónio. E este matrimónio é a forma bíblica, a forma natural do ser homem e mulher, fundamento da grande cultura cristã, das grandes culturas do mundo. E se isto desaparecer, será destruída a raiz da nossa cultura. Por isso, o celibato confirma o "sim" do matrimónio com o seu "sim" ao mundo futuro, e assim queremos ir em frente e tornar presente este escândalo de uma fé que baseia toda a existência em Deus. Sabemos que ao lado deste grande escândalo, que o mundo não quer ver, existem também os escândalos secundários das nossas insuficiências, dos nossos pecados, que obscurecem o verdadeiro e grande escândalo, e fazem pensar: "Mas, não vivem realmente no fundamento de Deus!". Mas há tanta fidelidade! O celibato, mostram-no precisamente as críticas, é um grande sinal de fé, da presença de Deus no mundo. Rezemos ao Senhor para que nos ajude a tornar-nos livres dos escândalos secundários, para que torne presente o grande escândalo da nossa fé: a confiança, a força da nossa vida, que se funda em Deus e em Jesus Cristo!
Ásia
P. – Santo Padre, sou Pe. Atsushi Yamashita e venho da Ásia, precisamente do Japão. O modelo sacerdotal que Vossa Santidade nos propôs neste Ano, o Cura d'Ars, vê no centro da existência e do ministério a Eucaristia, a Penitência sacramental e pessoal e o amor ao culto, dignamente celebrado. Tenho diante dos olhos os sinais da pobreza austera de São João Maria Vianney e ao mesmo tempo da sua paixão pelas coisas preciosas para o culto. Como viver estas dimensões fundamentais da nossa existência sacerdotal, sem cair no clericalismo ou numa estraneidade à realidade, que o mundo hoje não nos permite?
R. – Obrigado. Portanto, a pergunta é como viver a centralidade da Eucaristia sem se perder numa vida meramente cultual, alheios à vida de todos os dias das outras pessoas. Sabemos que o clericalismo é uma tentação dos sacerdotes em todos os séculos, também hoje. Muito mais importante é encontrar o modo verdadeiro de viver a Eucaristia, que não é um fechamento ao mundo, mas precisamente abertura às necessidades do mundo. Devemos ter presente que na Eucaristia se realiza este grande drama de Deus que sai de si mesmo, deixa – como diz a Carta aos Filipenses – a sua própria glória, sai e desce até ser um de nós e desce até à morte na Cruz (cf. Fl 2). A aventura do amor de Deus, que deixa, se abandona a si mesmo para estar connosco – e isto torna-se presente na Eucaristia; o grande acto, a grande aventura do amor de Deus é a humildade de Deus que se doa a nós. Neste sentido a Eucaristia deve ser considerada como o entrar neste caminho de Deus. Santo Agostinho diz, no De Civitate Dei, livro X: "Hoc est sacrificium Christianorum: multi unum corpus in Christo", isto é: o sacrifício dos cristãos é estar congregados pelo amor de Cristo na unidade do único corpo de Cristo. O sacrifício consiste precisamente em sair de nós, em deixar-nos atrair pela comunhão do único pão, do único Corpo, e deste modo entrar na grande aventura do amor de Deus. Assim devemos celebrar, viver, meditar sempre a Eucaristia, como uma escola da libertação do meu "eu": entrar no único pão, que é pão de todos, que nos une no único Corpo de Cristo. E por conseguinte, a Eucaristia é, em si, um acto de amor, obriga-nos a esta realidade do amor pelos outros: que o sacrifício de Cristo é a comunhão de todos no seu Corpo. E por conseguinte, deste modo devemos aprender a Eucaristia, que de resto é precisamente o contrário do clericalismo, do fechamento em si mesmo. Pensemos também em Madre Teresa, deveras o exemplo grande neste século, neste tempo, de um amor que se deixa a si mesmo, que deixa qualquer tipo de clericalismo, de estraneidade ao mundo, que vai ao encontro dos mais marginalizados, dos mais pobres, das pessoas que estão próximas da morte e se entrega totalmente ao amor pelos pobres, pelos marginalizados. Mas Madre Teresa, que nos ofereceu este exemplo, a comunidade que segue os seus passos supunha sempre como primeira condição de uma sua fundação a presença de um tabernáculo. Sem a presença do amor de Deus que se doa não teria sido possível realizar aquele apostolado, não teria sido possível viver naquele abandono de si mesmos; só inserindo-se neste abandono de si em Deus, nesta aventura de Deus, nesta humildade de Deus, podiam e podem realizar hoje este grande acto de amor, esta abertura a todos. Neste sentido, diria: viver a Eucaristia no seu sentido originário, na sua verdadeira profundidade, é uma escola de vida, é a protecção mais segura contra qualquer tentação de clericalismo.
Oceânia
P. – Beatíssimo Padre, sou Pe. Anthony Denton e venho da Oceânia, da Austrália. Esta noite, aqui, somos numerosíssimos sacerdotes. Mas sabemos que os nossos seminários não estão cheios e que, no futuro, em várias partes do mundo, esperamos uma diminuição, até brusca. O que fazer de verdadeiramente eficaz pelas vocações? Como propor a nossa vida, no que nela existe de grande e de belo, a um jovem do nosso tempo?
R. – Obrigado. Realmente o senhor refere-se de novo a um problema grande e doloroso do nosso tempo: a falta de vocações, devido à qual as Igrejas locais correm o risco de se tornar áridas, porque falta a Palavra de vida, falta a presença do sacramento da Eucaristia e dos outros Sacramentos. Que fazer? A tentação é grande: tomar nós próprios as rédeas do problema, transformar o sacerdócio o sacramento de Cristo, o ser eleito por Ele numa profissão normal, num "job" que ocupa as suas horas, e o resto do dia pertencer só a si mesmo; e deste modo tornando-o como qualquer outra vocação: torná-lo acessível e fácil. Mas esta é uma tentação que não resolve o problema. Faz-me pensar na história de Saul, rei de Israel, que antes da batalha contra os Filisteus espera Samuel para o necessário sacrifício a Deus. E quando Samuel, no momento esperado, não vem, ele mesmo realiza o sacrifício, mesmo não sendo sacerdote (cf. 1 Sm 13); pensa que assim resolve o problema, que naturalmente não resolve, porque assume ele mesmo aquilo que não pode fazer, torna-se ele mesmo Deus, ou quase, e não pode esperar que as coisas procedam realmente à maneira de Deus. Assim, também nós, se desempenhássemos só uma profissão como outros, renunciando à sacralidade, à novidade, à diversidade do sacramento que só Deus dá, que só pode vir da sua vocação e não do nosso "fazer", nada resolveríamos. Por isso devemos como nos convida o Senhor rezar a Deus, bater à porta do coração de Deus, para que nos conceda as vocações; rezar com grande insistência, com grande determinação, com grande convicção, porque Deus não se fecha a uma oração insistente, permanente, confiante, mesmo se deixa fazer, esperar, como Saul, além dos tempos que nós previmos. Este parece-me o primeiro ponto: encorajar os fiéis a ter esta humildade, esta confiança, esta coragem de rezar com insistência pelas vocações, de bater à porta do coração de Deus para que nos conceda sacerdotes. Além disto, acrescentaria talvez três aspectos: o primeiro: cada um de nós deveria fazer o possível para viver o próprio sacerdócio de tal modo que seja convincente, de maneira que os jovens possam dizer: esta é uma verdadeira vocação, assim pode-se viver, assim faz-se uma coisa essencial para o mundo. Penso que nenhum de nós se teria tornado sacerdote, se não tivesse conhecido sacerdotes convincentes nos quais ardia o fogo do amor de Cristo. Portanto, este é o primeiro aspecto: procuremos ser nós mesmos sacerdotes convincentes. O segundo, é que devemos convidar, como já disse, para a iniciativa da oração, para ter esta humildade, esta confiança de falar com Deus, com força, com decisão. O terceiro aspecto: ter a coragem de falar com os jovens, se podem pensar que Deus os chame, porque muitas vezes é necessária uma palavra humana para predispor para a escuta à vocação divina; falar com os jovens e sobretudo ajudá-los a encontrar um contexto vital no qual possam viver. O mundo de hoje é tal que parece quase excluída a maturação de uma vocação sacerdotal; os jovens precisam de ambientes nos quais se viva a fé, nos quais sobressaia a beleza da fé, nos quais sobressaia que este é um modelo de vida, "o" modelo de vida, e portanto ajudá-los a encontrar movimentos, ou a paróquia – a comunidade na paróquia – ou outros contextos nos quais estejam realmente circundados pela fé, pelo amor de Deus, e possam portanto abrir-se para que a vocação de Deus os alcance e ajude. De resto, demos graças ao Senhor por todos os seminaristas do nosso tempo, pelos jovens sacerdotes, e rezemos. O Senhor ajudar-nos-á! Obrigado a todos vós!





Ser cristão no hoje da história
Vivemos nossa vocação, rodeados pelo campo de batalha que nos apresenta a sociedade moderna, uma sociedade secularizada, carente da identidade cristã na sua completude.
A sociedade foge de Deus; a Igreja procura aqueles que fogem; Deus se inclina em misericórdia e não desiste de procurar a ovelha perdida. Se grande é o pecado humano, bem maior é a misericórdia divina que vem em auxilio dos pecadores. Vence a vida, morre a morte. Nasce a dinâmica do amor que atinge fortemente o povo. Recria a aliança perdida. Encontra, indica, caminha. Em vez da indiferença do homem moderno, o Absoluto perpassa a história humana e deixa seu rastro de bondade no coração do crente. Fulgura a certeza do combate no campo da vida. Resplandece a certeza da vitória, em Cristo, das ideologias, sistemas injustos, filosofias afastadas da verdade. A derrota para quem a merece é certa. O mundo incrédulo constata o absurdo: o simplório Nazareno venceu. Alguém pergunta como? E segue-se a resposta: venceu porque ama e quem ama verdadeiramente sempre vence. E o sinal? São as testemunhas. Os homens e mulheres, que no hoje da historia confirmam: Ele venceu! Ele vence! Ele sempre vencerá! Não esta morto aquEle que por amor entregou sua vida, e como nos diz Bento XVI “Naquele "tempo-além-do-tempo" Jesus Cristo "desceu à mansão dos mortos". O que significa esta expressão? Quer dizer que Deus, feito homem, chegou até ao ponto de entrar na solidão extrema e absoluta do homem, onde não chega raio de amor algum, onde reina o abandono total sem palavra de conforto alguma: "mansão dos mortos". Jesus Cristo, permanecendo na morte, ultrapassou a porta desta solidão última para nos guiar também a nós a ultrapassá-la com Ele. Todos nós sentimos algumas vezes uma sensação assustadora de abandono, e o que mais nos assusta é precisamente isto, como quando somos crianças, temos medo de estar sozinhos no escuro e só a presença de uma pessoa que nos ama pode dar-nos segurança. Aconteceu exatamente isto no Sábado Santo: no reino da morte ressoou a voz de Deus.” Sim, verdadeiramente aconteceu esta maravilhosa realidade: Cristo fez com que a voz de Deus ressoasse nos abismos da morte, local da ausência de luz e de amor, dissipando as trevas que nos envolvia e nos ajudando com sua mão poderosa a passarmos por este caminho inevitável ao homem, que é a morte.
Acreditas nisto? Então és feliz. Estais apto para lutar. Estais apto para vencer.

Sem. Rafael Viana Lima
II ano de Filosofia do Seminário Arquidiocesano de São José - RJ

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Zaqueu, desce depressa!



“Zaqueu, desce depressa, pois hoje preciso ficar em tua casa. Ele desceu depressa e recebeu-o com alegria” (Lc 19, 5-6)
A passagem que lemos acima é admirável e cheia de ricos significados que queremos, neste dia, refletir com alegria.
Jesus estava passando por Jericó, tomando o caminho para a sua viagem definitiva a Jerusalém. Sabendo que Jesus estava por aquelas redondezas, certo homem, chamado Zaqueu, cobrador de impostos, homem rico e de vida aparentemente feliz, procura uma forma, um jeito de ver quem era esse tal Jesus, famoso entre todos que puderam constatar os seus milagres e prodígios pelas cidades onde este homem passava. Mas algo lhe impedia. Zaqueu era pequenino e no meio da multidão, não conseguia espaço para ver Jesus, sua deficiência o impedia de encontrar-se com aquele homem que poderia mudar sua vida. Também nós meus irmãos, todos nós, experimentamos a mesma realidade de Zaqueu. Diante de Deus somos pequenos, sua grandeza nos ultrapassa por inteiro e, diante de tal deficiência, o homem de todos os tempos, se depara com aquilo que existe de mais impressionante na terra: a sua insuficiência, a sua debilidade diante de um Deus que como diz o salmo 113 “«Quem se compara ao Senhor, nosso Deus, que tem o seu trono nas alturas e Se inclina lá do alto a olhar os céus e a terra?”. Diante dEle nosso orgulho se frustra e, se somos verdadeiros conosco mesmos, chegaremos a incrível descoberta: eu não me basto a mim mesmo, preciso de alguém que me indique o caminho a seguir; de alguém que seja maior que o meu egoísmo e a minha falsa independência; preciso de alguém que na sua Grandeza me “engole” por inteiro e me conduz ao reconhecimento de que, não sou eu, a medida de todas as coisas, mas sou sim, alguém que no meio da multidão pode fazer a diferença e ter a surpreendente atitude do deixar-se apaixonar por um Verdade que dá sentido a vida. Preciso ser “criança” novamente. Preciso voltar às origens e colocar minha confiança nas mãos do Único que pode transforma-me por inteiro.
Zaqueu na ânsia por encontrar o sentido para sua existência voltou às origens e se permitiu ser criança novamente, subiu na árvore para ver o objeto de seu procura. Quando criança, ele deveria por muitas e muitas vezes ter experimentado a atitude de “subir na árvore” devido a sua condição de pequenino que era; talvez os meninos mais altos que ele, na implicância que é próprio de criança, tentaram diversas vezes impor a lei do mais forte sobre o fato dele ser mais frágil, mais novo, mais indefeso... e Zaqueu como toda criança carente de proteção, procurou abrigo para se sentir seguro, longe da bruteza dos meninos de seu tempo, naquele sicomôro que se tornava cada vez mais o local de seu refúgio mais que certo. Novamente ali se encontra ele diante do sicomôro que tantas vezes serviu-lhe de abrigo, agora não mais como criança de idade, mas sim, como criança nos sentimentos mais puros e impulsivos. Zaqueu sobe naquela árvore decidido em ver Jesus. Espera ansioso pelo encontro. Aguarda, se angustia, o coração se comprime no peito e eis que é chegada à hora; ele vê Jesus que se aproxima e num momento oportuno, o Senhor volta seu olhar para aquele publicano, que durante a vida roubou, enganou, e que realizou diversos crimes, mas que ao encontrar aquele homem sentiu-se incomodado por sua Presença excepcional e naquele instante o publicano fez experiência verdadeira de Deus em sua vida. Jesus olha, e o olhar amoroso do Senhor transpassa a alma de Zaqueu. Quem na vida tinha olhado para Zaqueu daquela maneira? Quem se importaria com um miserável de um cobrador de impostos? Quem se daria ao luxo de dar atenção a um homem que se vendeu para os romanos? Quem? Onde? Como? Jesus, em Jericó, impelido por sua infinita caridade proclama a palavra de libertação para Zaqueu: “Zaqueu, desde depressa, pois hoje preciso ficar em tua casa.” (Lc 19, 5) Analisemos essas duas palavras do Senhor: ‘depressa’, e ‘preciso’.
“Desce depressa Zaqueu, pois hoje preciso ficar em tua casa”. “Na linguagem do Evangelho, “depressa” significa ‘ realizar algo com solicitude’. Encontramos esta expressão no inicio do Evangelho de São Lucas, especificamente na Encarnação do Verbo, quando o anjo anuncia a Maria que sua prima Isabel estava grávida e que já era o sexto mês de gravidez. O evangelista nos diz:” Naqueles dias, Maria pôs-se à caminho para a região montanhosa, dirigindo-se apressadamente a uma cidade de Judá.” (Lc 1, 39) Encontraremos novamente a mesma expressão no Evangelho de São João, quando Maria Madalena, a grande testemunha do Ressuscitado, foi dar a noticia da Ressurreição do Senhor aos Apóstolos. São João nos relata desta maneira: “ No primeiro dia da semana, Maria Madalena vai ao sepulcro, de madrugada, quando ainda estava escuro e, vê que a pedra fora retirada do sepulcro. Corre, e então vai até Simão Pedro e ao outro discípulo que Jesus amava, e lhe diz: ‘ Retiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde colocaram’.
Pedro saiu, então, com o outro discípulo e se dirigiram ao sepulcro. “Os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro.” (Jo 20,-1,2,3,4)
Tanto no primeiro, como no segundo caso, encontramos a mesma realidade. Em Maria vemos a solicitude para com sua idosa prima Isabel. Em São João encontramos a solicitude para com o Senhor. Ao se dirigirem apressadamente, os dois (Maria Santíssima e João) demonstraram aquilo que impulsiona o desejo de ser solicito: o amor. Quem ama se apressa. Quem ama corre ao encontro do amado e, sem reservas, não encontra barreiras que possam afastar a pessoa amada. A medida do amor é amar sem limites, como nos diria um pouco mais tarde Madre Tereza de Calcutá. Quem ama de verdade vai além e se apressa para usufruir da companhia do ser amado. Zaqueu desce depressa, em outras palavras, “Zaqueu desce com solicitude, desce com amor. Permita-me que o meu amor seja o impulso para o teu amar. Deixa-me encontrar-te na confusão do teu dia agitado. Deixa que a minha paz preencha a tua vida de sentido.”
“Zaqueu preciso, hoje, estar em tua casa”
Deus que não precisa do homem para nada, se rebaixa até a infimidade do homem e se faz precisar dele. Deus que é três vezes santo se inclina até o homem pecador e conta com o homem para ser o grande cooperador de sua missão salvifica. “Deus habita nas alturas, mas inclina-Se para baixo… Deus é imensamente grande e está incomparavelmente acima de nós. Esta é a primeira experiência do homem. A distância parece infinita. O Criador do universo, Aquele que tudo guia, está muito longe de nós: assim parece ao início. Mas depois vem a experiência surpreendente: Aquele que não é comparável a ninguém, que «está sentado nas alturas», Ele olha para baixo. Inclina-se para baixo. Ele vê-nos a nós, e vê-me a mim. Este olhar de Deus para baixo é mais do que um olhar lá das alturas. O olhar de Deus é um agir. O fato de Ele me ver, me olhar, transforma-me a mim e o mundo ao meu redor.” (Papa Bento XVI) Sim, o Santo Padre tem razão quando diz que o agir de Deus muda a nossa vida. Deus se faz precisar de nós a cada dia, como fez com Zaqueu. E hoje nos diz: “Rafael, Adriano, Vitor, Thiago, Leonardo, Samuel, Andréia, Cris, Ana... preciso estar em tua casa!” Qual será a nossa resposta? Deixemos que Zaqueu nos ensine: “Ele desceu depressa e recebeu-o com alegria” (Lc, 19, 6) Zaqueu nos ensina que é preciso descer com amor, e o fruto do amor é a alegria. Dar com alegria é que alegra a Deus, vai dizer São Paulo e dando com alegria o nosso amor, o nosso tempo, a nossa disponibilidade, experimentaremos a grande transformação que isso causará em nossa vida. Como Zaqueu ficaremos felizes por receber o Senhor em nossa casa. Como Zaqueu nos converteremos por inteiro, e como Zaqueu aprenderemos a sermos humildes, a tal ponto de ter que se expropriar para dar lugar ao grande fruto do encontro do Senhor em nossas vidas, que é a paz que dá sentido a vida e nos impulsiona a sermos felizes de verdade.

Sem. Rafael Viana Lima
II ano de Filosofia do Seminário Arquidiocesano de São José - RJ