Ao criar este blog, gostaria de propor reflexões, mensagens e apontamentos sobre aspectos relevantes a fé e tudo aquilo que ensina a Santa Igreja, através de seu magistério, da Liturgia e dos demais meios que nos são propostos pela mesma Igreja. Espero que todos gostem deste novo blog. Grande abraço a todos, sejam bem vindos!
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
Apontamentos da Escola de Comunidade com Julián Carrón, Milão, 6 de outubro de 2010. " Viver é a memória de Mim"
Carrón: Retomemos nosso caminho depois do verão. Quero apenas dizer uma palavra para
começar. A proposta de fazer esta Escola de Comunidade conectados através de vídeo é apenas para
oferecer uma oportunidade para tentarmos aprender um método de trabalho sobre o texto e sobre a
vida que nos ajude a julgar a experiência que fazemos, porque – como dissemos tantas vezes – não
há experiência sem juízo, e sem experiência nós não aprendemos com as coisas que acontecem, elas
permanecem vãs para a vida, são inúteis, não deixam vestígio. Muitas coisas nos acontecem, mas
não deixam vestígio porque – como Dom Giussani sempre nos ensinou – o eu cresce apenas
vivendo uma experiência, a experiência não é apenas experimentar uma reação, um sentimento,
uma descoberta, mas é um juízo. E isto é decisivo para entender o texto, porque não é possível
entender o texto, como muitas vezes pensamos, apenas associando as palavras; entendemos o texto
comparando-o com uma experiência, porque o texto que Dom Gius propõe é a comunicação de uma
experiência, e só pode entendê-la quem a faz. E é isso que deve vir à tona no trabalho que fazemos
juntos na Escola de Comunidade: não reflexões abstratas, porque todos nós podemos fazer muitas
delas e não servem para nada, mas testemunhos reais daquilo que aprendemos com a experiência
que nos ajudam a entender o texto e daquilo que aprendemos com o texto que nos ajudam a
entender a experiência. Por isso, repito, para que ajudemos a todos, para não perdermos tempo
(porque o tempo é curto), precisamos ser objetivos. Peço a todos que vão se colocar que façam
colocações breves, peço que sejam objetivos – como eu disse – não se alonguem muito, digam o
essencial de modo tal que possam ser compreendidos por todos. Se alguém tiver vontade de se
colocar, prepare-se bem, porque isso faz parte do trabalho: entender a experiência que fazemos e
saber exprimi-la de maneira adequada faz parte deste trabalho. Não venhamos para cá para divagar
sem começo nem fim, porque isso quer dizer que não fizemos o trabalho, que estamos
improvisando. E isso não nos ajuda. Então, vamos começar.
Colocação: Neste verão, fiquei provocada por duas palavras que você disse, que estão no início e
no fim do livreto que estamos trabalhando, e pela proximidade que elas têm: conversão e
contemporaneidade. Parece-me que uma indica a natureza da outra, porque a conversão é um
esforço moralista se não for ceder a uma presença que é contemporânea a mim, a uma presença
agora; e, por outro lado, falamos da contemporaneidade de Cristo apenas de maneira emocional
se não determina em nós um desejo de mudança. Por isso, percebi que eu não posso mais falar de
conversão sem falar de contemporaneidade e vice-versa, tanto que me provocou muito o título do
livreto “Viver é a memória de Mim”, porque muitas vezes falamos de viver a memória como se
fosse uma premissa e não como se fosse tudo. Essa é a primeira coisa. A segunda é que hoje eu me
dou conta de que Cristo é contemporâneo a mim porque eu me torno contemporânea à realidade
que vivo, estou finalmente presente no presente, senão eu me defendo da realidade usando tudo que
sei e que faço, de modo que o Movimento, em vez de se tornar uma introdução à realidade, torna-se
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a minha defesa mais sutil. A última coisa, é que quando você nos falou, no Dia de Início de Ano,
sobre a contemporaneidade de Cristo e do Papa, eu fiquei bastante perplexa, porque quando digo
contemporaneidade de Cristo não consigo separar esta frase de você. Na verdade, talvez essa
tenha sido, para mim, uma das descobertas mais impressionantes dos últimos tempos, quer dizer,
que não é possível a minha conversão sem que eu ceda a Cristo contemporâneo. Cristo
contemporâneo tem a ver com você, senão, eu não me importaria nem mesmo com o Papa, não
teria ido a Roma em maio e muito menos teria entendido aquilo que o Papa disse na Inglaterra. E,
sob este aspecto, preciso entender bem como você percebe esse seguir a você.
Carrón: Deixo a questão em aberto, porque me parece que isso que você disse é fundamental para
todos. Faço uma pergunta: de que maneira mudou em vocês o modo de perceber e ouvir a palavra
conversão? Porque aí está tudo. Se vocês continuarem a ouvir a palavra conversão como algo que
no fundo lhes tira alguma coisa, então estão se defendendo, estamos nos defendendo da palavra
conversão. Significa que ela está desligada da contemporaneidade de Cristo, e este é o sinal. Dou
alguns exemplos. Zaqueu se converteu? Sim, e como! Mas defendeu-se de Jesus? Não, o recebeu
muito contente. João e André, quando estavam ali ouvindo-O falar, se defenderam de Jesus? Não,
seguiram-no. Converteram-se? Sim. Quer dizer que quando nós separamos essas duas palavras –
conversão e contemporaneidade – é inexorável que a conversão seja reduzida a moralismo e a
contemporaneidade a emotividade, sem que provoquem em nós um desejo de mudança. Então, a
questão é partir dessa realidade, dessa experiência que acontece conosco quando nos surpreendemos
com o desejo de mudar, porque a conversão é exatamente isto: nasce em mim o desejo de mudar
para que eu não perca aquilo que está na minha frente. Por que João e André o seguiram? Para
ganhar uma vida eterna alternativa à real ou para não perder, durante a vida, aquela Presença tão
fascinante que tinham diante deles? Isso é decisivo para entender o que é a contemporaneidade de
Cristo: Cristo torna verdadeiramente atraente aquela realidade à qual Ele me introduz, porque me
revela o significado da vida. Seguir-me, se não é isso, se não é para seguir aquilo que eu tento
seguir, aquilo que tento verificar na realidade, que significado teria? O que quer dizer me seguir? Eu
aprendi a seguir com Dom Giussani, porque para ele o cristianismo é algo que está acontecendo
agora, e isso torna o cristianismo apaixonante. Mas para que o cristianismo possa ser concebido
assim e para sair do moralismo não basta dizer que eu desejo não ser moralista e quero seguir a
contemporaneidade de Cristo: é preciso reconhecê-Lo, é preciso não reduzir a realidade, é preciso
ver que em muitos gestos que fazemos – é para isso que serve o Dia de Início de Ano –
frequentemente nós não vemos isso. Então, para nós, muitas vezes a contemporaneidade de Cristo é
abstrata e a conversão é moralista, porque nós não O vemos na realidade (não é que não falemos
sobre os fatos, mas paramos ali, no contragolpe emocional). Por isso perguntamo-nos quantas vezes
falar sobre esses fatos desperta em nós um desejo de mudança, porque este é o teste: que eu não
quero perder aquilo ali. Sobre isso, eu gostaria de dizer algo a vocês, por exemplo, em relação ao
Papa, porque o que me interessou da visita do Papa à Inglaterra foi vê-lo em ação: era impossível
que aquela figura emergisse apenas da energia humana, era o testemunho manifesto da presença de
Cristo. Não é preciso ter visões. Jesus – eu sempre digo isso – não curou todos os doentes da
Palestina de seu tempo, mas mostrou, por meio de alguns milagres, que Ele existe, que não estamos
sozinhos com a nossa impotência e com o nosso nada, que a potência de Deus torna-se presente em
fatos e acontecimentos. A viagem do Papa é um desses fatos, e isso ficou evidente inclusive para os
adversários.
Colocação: Gostaria de fazer uma pergunta sobre o poder dos sem-poder. Normalmente, eu não
seria considerada uma pessoa muito boa, na verdade, até má, porque sou impaciente, pouco
misericordiosa, muito egocêntrica, estou sempre me lamentando, portanto, não seria uma grande
pessoa, mas neste lugar e através dos meus amigos conheci o método e as razões para não ser mais
assim, para mudar. De repente, me vi portadora de uma humanidade inesperada que não nasce das
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minhas capacidades. E quero fazer alguns exemplos rápidos que aconteceram no meu trabalho. O
lema do meu chefe é “divide et impera”. Eu tento testemunhar que, para mim, trabalhar em equipe
é outra coisa; meus colegas têm dificuldade em me cumprimentar de manhã quando chegam e são
sempre muito precisos e corretivos na revelação de alguns erros que eu cometo. Tento estar o mais
aberta possível ao diálogo e realmente me agradaria muito colaborar com eles. Há dois anos, uma
cigana de uns dezesseis anos, grávida, começou a aparecer no corredor em frente ao ambulatório
que trabalho. Meus colegas e meu chefe olhavam para ela com muita hostilidade e a expulsavam
quando se aproximava da sala de espera para pegar um café na máquina. Muitas vezes eu parava
ao seu lado no corredor e perguntava sobre seu bebê, levei-lhe algumas roupas de meus filhos e,
alguns dias antes de voltar para sua cidade, ela me disse: “Você é muito boa comigo, gostaria de
ter uma mãe como você”. Também me aconteceu, uma vez, começar a rezar o Angelus enquanto
retirava do envelope o resultado da tomografia de um paciente para saber como tinha respondido à
quimioterapia e, enquanto eu fazia isso, ele me disse: “Sabe, doutora, mesmo que o resultado não
seja bom, estou tranquilo porque sei que a senhora encontrará uma maneira de me curar”. Poderia
dar muitos outros exemplos. Isso não é “farinha do meu saco”, mas acontece, e eu reconheço a
presença e a obra de Jesus neste “a mais” de humanidade e suplico a Sua presença em cada
momento do meu dia. Isso eu acho que entendi. A questão, então, é esta: a minha fé tem ainda uma
possibilidade de sucesso com um chefe que não usa a sua autoridade, com colegas que me atacam,
com todas essas coisas? Na página 21, está escrito: “Neste clima, podemos nos contentar com o
testemunho ou ainda podemos nos lançar em batalhas?”. Eu gostaria de ser ajudada sobre essa
questão.
Carrón: Segundo a sua experiência, qual é a resposta a essa questão?
Colocação: Parece que eu entendi que...
Carrón: Você entendeu porque nos disse! De onde você tirou essa humanidade inesperada?
Aconteceu em você?
Colocação: Sim.
Carrón: Então a fé é capaz de acontecer? Sim. Porque senão, você não teria nos dito aquilo que
disse. Mas aconteceu segundo um desígnio que não era o seu. O mesmo vai acontecer com seus
colegas, pacientes, etc., porque acontece segundo um desígnio que não é nosso. Qual é o método de
Deus? Ele dá a graça a alguns para chegar a todos, quer dizer, não a dá a todos ao mesmo tempo. Há
a contemporaneidade de Cristo – como dizíamos antes –, mas como Cristo não se impõe, mas se
propõe, depende da liberdade do outro. Como eu disse na homilia do Dia de Início de Ano, não
basta o testemunho, é preciso a abertura do coração do outro porque se Cristo aceitou submeter-se a
ele, curvando-se sobre o nosso nada, imaginem se nós podemos pretender fazer diferente! E Ele faz
assim porque essa é a grandeza do homem, essa é a grandeza dos seus colegas e, paradoxalmente, a
sua. Que essa é a grandeza, quer dizer que o homem não é um mecanismo que você pode dominar, é
algo mais, tem um mistério dentro: o mistério da liberdade. O que nos cabe? O que isso tem a ver
com você e com a sua conversão? Jesus chama você, chama cada um de nós neste salão a dizer:
“Como eu posso contribuir? Que tipo de relacionamento, que tipo de atenção, que tipo de
testemunho devo realizar para poder facilitar, para não obscurecer o rosto de Cristo, como disse o
Papa na Inglaterra, para tornar transparente Cristo através da minha humanidade?”. Essa é a nossa
conversão. Para ajudá-la a entender como muitas vezes nós reduzimos a contemporaneidade, leio a
carta que uma pessoa me escreveu: “Estava no casamento de um grande amigo como padrinho,
sentado ao lado de outros padrinhos perto dos noivos. Durante a cerimônia, observei um fotógrafo
que passava perto dos noivos, dos padrinhos e do altar. Não sei como é aí no norte a vida de um
fotógrafo, mas na Sicília os casamentos são sua principal fonte de renda. Eu o observava e pensava
comigo mesmo que, para ele, quanto mais casamentos fossem realizados em uma semana, em um
mês, em um ano, tanto melhor. Mais casamentos significa mais dinheiro. É estranha a vida! Para
aquele ali, ir à missa, mesmo que todos os dias, seguramente não é um desprazer, passa toda a vida
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andando perto de Jesus que lhe dá o sustento. Mas não O ganha. Ganha tudo, menos Ele. Não falo
especificamente do fotógrafo, mas o uso como metáfora da minha experiência, e de muitos outros,
acho: uma vida inteira com Jesus sem ganhá-Lo. Sempre é para ganhar alguma coisa do mundo e a
noite da Escola de Comunidade também poderia ser uma boa maneira de não ficar sozinho.
Podemos viver toda a vida com Jesus como um fotógrafo que o usa para ganhar um pedaço do
mundo ou do próprio mundo, mas sem ganhá-Lo. Ganhar o intelecto, o poder, a estima de si, o
dinheiro, o sentido de pertencer e de unidade, e a companhia para não estar só, mas não Ele. Sou
médico e tenho Jesus diante de mim todos os dias, mas eu frequentemente também corro o risco de
ter a síndrome do fotógrafo: Jesus como fonte de renda. Todos os dias estou com os doentes, que
me rendem um salário, poder, possibilidade de carreira, visibilidade social, satisfação intelectual e
amigos de classe, todos os dias estou com Jesus. Mas corro o risco de não ganhá-Lo”.
Colocação: Começo com algo que me tocou muito no Dia de Início de Ano: “A Sua presença é
tornada visível, tangível e experimentável pelo fato de que muda a vida das pessoas que estão na
comunidade, na companhia. Por isso, a agudeza com que é percebido o testemunho de um, de
outro, mesmo daqueles que não são chefes –, a perspicácia com que é percebido o testemunho,
mesmo furtivo, mesmo extremamente discreto, presente nas pessoas da comunidade é o mais
grandioso sinal da honestidade de que falávamos antes. Esta é a tentativa extrema de evitar a
conversão: negar a existência dos fatos e dos acontecimentos”. Quinze anos atrás, morreu o
marido de uma amiga minha. Ela tinha trinta e três anos, estava grávida do terceiro filho e tinha
dois filhos pequenos. Eu estava ali por acaso, porque morava na casa vizinha e a conhecia desde
que éramos crianças. Eles estavam diante dos meus olhos e eu fiquei ali, observando, durante os
dias, as semanas, os meses, os anos, ela e seus filhos ficarem em pé nas circunstâncias que
aconteciam em suas vidas, vendo a humanidade deles tornar-se grande, não perfeita, porque são
pobres cristos, mas grande: abraçados à cruz de Cristo. E o que aconteceu, e que me dei conta, é
que a certo ponto aquele mesmo Cristo se virou para mim e disse: “E você, me ama?”, quer dizer,
inacreditavelmente, o acontecimento que revolucionou a vida deles, que a marcou, a transformou e
a tornou dolorosamente grande investiu a minha humanidade, mudou a minha vida, a minha vida e
de meu marido, tranformando-a (no sentido de uma fonte de experiência de bem inexaurível e
inesperada). Sou casada há dezoito anos e não tenho filhos. Casei-me porque queria ter filhos e
pedi por eles. Eu pedi, rezei, pedi para rezarem por isso, fui às peregrinações e fiz um monte de
gente ir às peregrinações, todas as mães do mundo rezaram o terço por mim. Sou médica e quando
me perguntavam “Quanto lhe devo?”, eu respondia “Uma Ave Maria”. Mas os filhos não vieram e
isso nunca gerou em mim nenhum rancor, nenhuma dor, nenhuma raiva, nunca colocou em dúvida
o fato de que minha oração tivesse sido e continuasse sendo ouvida. Disso eu tenho certeza, porque
há uma ternura de Deus pela minha humanidade, e eu a vi em ato exatamente no relacionamento
com os três filhos de minha amiga viúva: a ternura que eles sentiam por mim e por meu marido,
maior ainda do que o afeto profundíssimo que nós tínhamos pela vida deles, fez com que eu e meu
marido experimentássemos uma maternidade e uma paternidade não pedida dessa maneira, porém
verdadeira.
Carrón: Obrigado.
Colocação: Quando saiu o seu artigo sobre a pedofilia, pela primeira vez não fiquei com raiva por
não ter conseguido chegar sozinho a um juízo justo (porque eu sempre dizia: “Fiz Escola de
Comunidade, fiz tudo, mas...”). Pelo contrário, senti-me infinitamente grato pelo fato de ter-me
sido dado alguém que me tomava pela mão e me levava a reconhecê-Lo, fazia-me reconhecer Jesus
presente, também nessa circunstância. Depois, ficou mais claro no verão, quando você começou a
falar sobre conversão, que a conversão coincide com a liberdade, porque quando alguém é
corrigido e é levado pela mão a reconhecer Jesus faz exatamente a experiência da liberdade. Eu
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nunca poderia pensar que a conversão coincidisse com a liberdade, quer dizer, com o estar dentro
das circunstâncias com Ele.
Carrón: Essa é uma maneira de dizer que aquilo que prevalece é a gratidão porque Jesus existe,
porque existe um Outro. O problema não é mais se estive à altura ou não, o que assume o controle é
exatamente o fato de que Ele existe, que Ele está presente entre nós por meio de cada um. A
conversão coincide com essa liberdade, com essa libertação. Sempre dava este exemplo aos jovens:
quando uma pessoa está gravemente doente, ficamos contentes quando existe um médico que
entende da doença. A pessoa fica contente, não fica com raiva porque existe alguém mais
competente. Fica contente, é um bem, é uma graça, um tesouro ter alguém que possa entender a
doença e procurar a cura. Por isso, a conversão é a prevalência deste bem, é não perdermos este
bem último em que a vida consiste.
Colocação: Anteontem estava na escola, onde dou aulas no ensino superior, depois de três anos
afastada fazendo uma reciclagem. Entrei na sala do primeiro ano e já sabia o que devia fazer,
tinha preparado a aula, engatei a quarta marcha e comecei. Eles me olhavam com os olhos
arregalados, nunca tinham ouvido alguém falar assim, me acompanhavam, faziam perguntas,
fiquei toda orgulhosa. Saí da sala e vi que um deles me seguia. Saiu da sala e disse: “Professora,
olha, preciso lhe dizer uma coisa”. “O que é?”. “Professora, olha, a senhora não deve ser tão
maternal na maneira de explicar, a senhora deve nos provocar mais, porque nós já ouvimos essas
coisas que a senhora está explicando, porque no ano passado tivemos um professor de filosofia que
já nos explicou essas coisas”. Então, eu olhei para ele e disse: “Agradeço por ter-me dito isso
porque assim eu posso ir até o fundo e o que você me diz é uma provocação para mim”. Reconheci
verdadeiramente o amor de Jesus por mim, porque não quis que eu parasse na metade, mas
confiou-se a mim dizendo-me: “Eu existo, e é isso que é importante para você e é o que eles
desejam, nada mais”.
Carrón: O que ficou para você, disso?
Colocação: O fato de eu ter um grande desejo...
Carrón: Não parar na metade: o que quer dizer?
Colocação: Quer dizer que eu queria ir até o fundo daquilo que estava me acontecendo, porque o
Senhor tinha me chamado ali.
Carrón: O que quer dizer ir até o fundo?
Colocação: Deixar que Ele...
Carrón: Mas o que isso quer dizer?
Colocação: Levar em conta a minha humanidade, aquilo de que sou feita e também as
circunstâncias porque, neste caso, queria dizer levar em conta um fator imprevisto que era aquele
menino.
Carrón: Exato. E o que este menino lhe fez entender?
Colocação: Que o Senhor usa um método seu.
Carrón: Qual?
Colocação: De vir ao meu encontro e me fazer entender o que é mais verdadeiro.
Carrón: Mas, o que este menino lhe disse? Que faltava você! Porque a educação é a comunicação
de si. Quer dizer, da própria maneira de enfrentar a realidade. Não basta uma boa aula, é preciso que
o eu esteja presente. Porque isso é o que Ele testemunha: depois de Cristo não existe outra
modalidade de comunicar a verdade a não ser o testemunho, onde os conceitos tornam-se carne e
sangue. E esta é a provocação que o menino oferece a você.
Colocação: E isso mudou muita coisa, de fato.
Carrón: Estou lhe dizendo isso porque é realmente um desafio para nós. Recebi muitos e-mails que
falam que alguém pode fazer as coisas e não estar presente. Leio apenas um deles, de uma pessoa
que trabalhou no Meeting de Rímini: “Foi uma semana maravilhosa... Porém há um grande ‘mas’.
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Enquanto aconteciam essas coisas maravilhosas, na minha casa fazia uma semana que não falava
com meu marido depois de uma briga por causa dos filhos. Em suma, uma confusão. No final do
Meeting eu estava esquizofrênica, literalmente dividida em duas, cansada, amargurada, desiludida e,
sobretudo, cínica. Voltar ao cotidiano com toda a sua dramaticidade me dava vontade de fugir, não
queria aquela realidade. Com o Meeting entendi que podemos nos enganar e aos outros. Podemos
fazer tudo muito bem e não estarmos presentes. Podemos fazer belos discursos e não estarmos
presentes. Podemos ter o coração endurecido e falar do desejo do coração (porque todos nós
sabemos fazer discursos). Podemos deixar de acreditar que Jesus responde e dizer aos voluntários
que só Jesus responde. Não contei a ninguém sobre esse sofrimento porque não queria discursos,
queria ficar só, não queria ser ajudada, como se o rancor do ceticismo tivesse escavado uma cratera.
Mas, no desespero escrevi a uma pessoa, vomitando tudo aquilo que estava dentro de mim. Ela não
me abandonou e, uma das vezes, me disse: “Leia o capítulo sobre o sacrifício”, e enquanto o lia
(comecei apenas para agradá-la) dava-me conta, chorando, que eu não poderia fugir para lugar
algum, que só em Jesus tudo ganha sentido. E era ali que Ele me esperava. Fui me confessar, pedi
que Ele me tomasse novamente, mas Ele já estava batendo e eu mantinha a porta fechada enquanto
Ele esperava meu ‘sim’. Quando experimentamos nossa imensa pequenez podemos entrar no
mistério de Sua grandeza e eu não quero viver por nada menos que isso, eu quero um
relacionamento pessoal, vivo, carnal, com Jesus, nada mais me basta. O cinismo, o ceticismo, o
relativismo escavaram um sulco grande também em nós que, sentindo-nos imunes, nos deixamos
enganar”. Podemos não estar presentes, por isso o sinal da contemporaneidade é encontrar um eu
que esteja presente com toda sua pessoa: “A glória de Deus é o homem vivente”, diz Santo Irineu.
O que dá glória, que faz Cristo transparecer, não são as nossas palavras, mas a questão é que
estejamos presentes. Uma outra pessoa me disse a mesma coisa: “Escrevo depois de pouco tempo
de minha última carta por causa da comoção que me invade pelo êxito do trabalho que você nos
propôs [porque o trabalho que estamos fazendo é exatamente para vencer isto, para que possamos
estar cada vez mais no real, assim como vimos que o Papa pode estar diante de pessoas que têm
uma maneira diferente de pensar, mas ele é capaz de ir até lá e testemunhar com todas as razões o
que é Cristo], que para mim coincide com a procura de estar diante daquilo que você nos diz,
portanto diante de Cristo, com o ímpeto de um pedido incansável para que eu viva, porque sozinho,
não consigo. E isso está produzindo frutos realmente evidentes para mim, que partem sempre de um
juízo. Tocou-me muito, por exemplo, a insistência sobre a iniciativa pessoal. Se penso na minha
vida, a partir deste chamado de atenção, de repente me vejo de maneira tão pálida que me percebo
perguntando-me: onde eu estava até agora? Quando Dom Giussani diz que falta o humano [agora
começamos realmente a nos dar conta e começa a aparecer com simplicidade]... Onde estava o meu
eu? A resposta chegou imediatamente: estava na esteira. Uma esteira, me parece, não é apenas
quando, por exemplo, participamos sem consciência de um gesto proposto, mas se joga em cada
instante. A iniciativa pessoal deve estar presente em cada momento”. O sinal d’Ele é exatamente
isto: nos torna presentes no presente.
Colocação: Olha, eu desejaria não existir, simplesmente não existir. A situação de minha avó é um
desastre: hospitais, casas de repouso, assistentes sociais. Você diz: “Cristo ressuscitado”. Onde
está este Cristo ressuscitado? Eu vim aqui e estou com muita raiva, porque ver minha avó assim,
que não ouve mais... Onde está esse Cristo ressuscitado, onde está?
Carrón: Como você pode olhar para sua avó se não existe este Cristo ressuscitado? Você deve
inverter a pergunta para que você, que vê sua avó assim, porque este é um fato...
Colocação: Estes são os fatos.
Carrón: Estes são os fatos, e você deve se perguntar: este é o fim?
Colocação: Para mim, sim, para mim, sim.
Carrón: E você pode colocar a sua mão no fogo na afirmação de que existe apenas o que você tem
na sua cabecinha ou pode existir mais realidade no céu e na terra do que na sua filosofia? Você
pode colocar a sua mão no fogo de que não há nada além daquilo que você vê? Pode colocá-la de
verdade? Ainda não encontrei ninguém que pudesse me dizer que sim. Comece a abrir sua razão,
porque na verdade é a falta dessa abertura que não permite que você veja aquilo que existe.
Colocação: Eu vejo apenas dor em volta de mim, apenas dor.
Carrón: Este é o ponto: que vejamos apenas isso. Para que você veja todo o resto, é preciso que
aconteça outra coisa e que você esteja disponível.
Colocação: Ou seja?
Carrón: Ou seja: vemos acontecer tantos fatos, e você pode estar ali com uma raiva imensa por
causa da sua avó e não se dar conta do que está acontecendo diante dos seus olhos. Se você não vai
a fundo da mudança das pessoas, daquilo que vivem, do testemunho delas de que há algo além
daquilo que você vê, porque você está preso pensando apenas naquela dor, se você não olha em
volta...
Colocação: Para onde devo olhar? Além de alguém querido que está para morrer, o que devo
olhar?
Carrón: Exatamente porque está para morrer é bom que você olhe, alargue a razão, para ver se isto
que você está vendo é tudo. Porque, se é tudo, não há esperança para sua avó, nem para você, nem
para nenhum de nós. Mas, se isso não é tudo e Cristo ressuscitou, então existe esperança para você,
para sua avó e para nós, entende?
Colocação: Se Cristo ressuscitou?
Carrón: Claro! E podemos ver isso nos fatos e nos acontecimentos que documentam a Sua
presença e a Sua obra, aqui e agora. A questão é que não vemos todos esses fatos, conforme eu
disse no Dia de Início de Ano, e ficamos ali, presos, olhando a realidade apenas através do buraco
da fechadura. E isso não é tudo, entende? Não é tudo. É como se você visse a realidade reduzida. E,
por isso, não coloca a mão no fogo que aquilo que você vê seja tudo. Pelo menos essa lealdade
consigo mesmo você deve ter, não pode não se calar. Então, eu digo: comece por aí, porque pode
existir algo além do que aquilo que você vê e que pode lhe dar esperança inclusive para olhar para
sua avó.
Colocação: Desculpe, para o quê devo olhar?
Carrón: Você ouviu, aqui, testemunhos de pessoas cuja vida mudou. Essa mudança é apenas
porque são mais capazes? Se você está presente na vida da comunidade vê os fatos que não são
reduzíveis a uma explicação qualquer, mas testemunham algo de outro, me explico? Você os viu, os
ouviu? Mas, para você, isso é igual a nada, isso não documenta que Cristo tenha ressuscitado.
Assim como não vê, não quer reconhecer, e quando está diante de sua avó que está morrendo não há
nada além daquilo que você vê. Mas há mais realidade no céu e na terra do que na sua cabecinha.
Você está disponível a esta conversão ou não?
Colocação: Não.
Carrón: Este é o ponto. Então, nem a ressurreição de um morto vai convencer você. Esta é uma
documentação daquilo que acontece. Dramática, porque digamos sinceramente – não é que nosso
amigo não seja sincero –. O problema é se é verdade aquilo que dizemos sinceramente! E como
vocês veem, quando chegamos ao ponto nós achamos que há sempre algo mais interessante para
fazer do que aquilo que Dom Giussani nos sugere. E, depois, nos afogamos nas reduções das quais
eu falei no Dia de Início de Ano e, diante da dor, não aguentamos. Podemos começar a entender que
nós nos encontraremos na mesma situação se não fizermos este percurso que Dom Giussani nos
propõe. Cada um deve decidir. Depois, não se lamentem quando tudo se tornar escuro. Mas quando
alguém os desafia sobre o fato de existir apenas isso, permitam-se pelo menos um instante de
lealdade consigo mesmos e parem para pensar. Quer dizer que ainda há alguma fresta, alguma
fenda.
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