sexta-feira, 30 de julho de 2010

O amor de Deus para conosco (Dom Eusébio Cardeal Sheidt, Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro



Esta semana, reflito sobre o tema fundamental da revelação divina, cuja profundidade jamais atingiremos plenamente: o amor de Deus para conosco. São João Evangelista foi o Apóstolo que melhor compreendeu esse amor. Conheceu a interioridade de Jesus, tendo-o acompanhado durante três anos, conviveu com Nossa Senhora, depois da morte do Filho e participou do nascimento das comunidades primitivas.

Assim, é dele a melhor definição de Deus: “Deus é amor” (1Jo 4,8.16). Amor no sentido mais perfeito do termo, pois tal é a essência de Deus. Ele não tem amor, Ele é Amor, por constituição do seu próprio ser. Nesse mistério divino mais íntimo, indescritível para nós, o Pai e o Filho se doam mutuamente, na eterna doação que é o próprio Espírito Santo. Sendo o amor auto-difusivo, quis derramar-se do seio da Trindade sobre a humanidade. E o Amor veio até nós, na pessoa do Verbo eterno encarnado: Jesus Cristo. Este é o grande mistério que nos foi revelado como causa da nossa alegria e base da nossa fé.

A doação divina para conosco se manifesta, em primeiro lugar, na grandiosidade da criação. Tudo decorre do modo de ser de Deus que, num ato de amor gratuito, criou todos os seres visíveis e os entregou ao homem. A nós, ainda, Ele presenteou com o que há de mais precioso: a participação na sua própria vida divina. Incomensuravelmente acima de nossa limitação como criaturas humanas, Deus nos concedeu a graça sobrenatural de sermos seus filhos.

Para nós, seu amor se desdobra em ato afetuoso de Pai, que nos faz filhos no próprio Filho, nosso Irmão. A este somos configurados pelo Espírito de amor, que impregna em nós a sua imagem mais perfeita. O próprio Jesus afirmou: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e nele faremos nossa morada” (Jo 14,23). Quanto mais nos abrimos ao amor, mais traduzimos essa linda imagem em nós, pela pureza, pela alegria, enfim, por tudo aquilo que temos de mais nobre e sublime.

Portanto, com sua vida, Deus nos dá “graça sobre graça”. Esta se mostra, por exemplo, na bondade. Só Deus é bom. Se nós somos bons, é porque herdamos dele uma parcela, uma participação dessa bondade, sem que diminua em Deus, que é infinito. Recebemos, também, os dons para compreendermos sua Palavra. Quando Ele nos abre os tesouros da Revelação, infunde-nos sua inteligência, sua sabedoria e sua ciência. Somente assim podemos entender as Escrituras, da maneira mais profunda. Deus nos dá sua beleza. Podemos contemplar o encanto do ser humano, principalmente, numa criancinha inocente, ainda não afeada pelos defeitos da vida de pecado. É lindo contemplar a beleza do homem e da mulher, que refletem a face divina, através da busca constante da perfeição.

O Papa João Paulo II dizia: “É preciso procurar a face de Deus”. Santa Teresinha o traduz, numa linda expressão: “O amor de Deus consiste em descobri-lo nas pessoas que nos cercam”. A pessoa que está na graça é santa, alguém privilegiado, que se encontra cumulado dos dons divinos e os faz transparecer, como reflexo da própria santidade de Deus. Como disse o pregador Lacordaire, a respeito do Cura d’Ars, o grande pároco: “Hoje eu vi Deus numa pessoa humana”.

Deus nos cria por amor gratuito, amor que brota das suas Pessoas, de sua própria essência. Ele nos ama como nós somos, sem jamais ofender a liberdade que nos concedeu, mesmo quando o ser humano engendra a tragédia do pecado. O Livro das Origens descreve a aversão a Deus, pela qual o homem se fechou na própria egolatria e no mais tremendo egoísmo, seduzido pela tentação enganosa: “Vós sereis como deuses” (Gn 3,5). “Eu serei Deus para mim mesmo”, pensava Adão...

Quando o homem fecha o horizonte para Deus, concentra-se em si mesmo, e nas demais criaturas, e se torna materialista. O pecado nos enfraqueceu no corpo, na mente e nos afetos. Fez de nós seres incoerentes com nosso destino sobrenatural, vítimas de uma profunda fratura interior, que desintegrou nosso equilíbrio físico, psíquico e espiritual. Por isso, tornou-se-nos difícil corresponder ao amor de Deus, como deveríamos.

Porém, mesmo depois do pecado, Deus continua a nos amar, com o mesmo amor infinito. Esse amor, criador por excelência, manifesta, a partir de então, uma outra tonalidade: é transformante e salvífico. Nós somos envolvidos pelo amor de Deus, mesmo como pecadores. “Viremos e faremos nele a nossa morada”. O problema é que o pecado grave impede esse amor divino de chegar até nós, de realizar seu objetivo. O pecado, como fechamento a Deus, tem essa característica, que poderíamos dizer demoníaca: o amor se torna ineficaz em nós, mesmo que Deus no-lo dedique sempre.

Encontramos um dos mais conhecidos exemplos disto na história do filho pródigo (cf. Lc 15,11ss). Afastando-se do Pai, o amor dele o acompanhou, mas o filho interpôs uma barreira trágica, como que impermeável à ação daquele amor para com ele. Assim, a conversão se mostra difícil e dolorosa. O filho pródigo despertou para a realidade do afastamento, somente quando esteve entre os animais irracionais. E a Bíblia usa o termo “guardava os porcos”. Esta é a triste figura de quem está imerso num ambiente de pecado, de perversão.

Desmoronadas as paredes do orgulho e da auto-suficiência, ele se deu conta da miséria de sua condição, e o amor de Deus pôde projetar-se novamente sobre ele. Então, empreendeu o caminho de volta à casa paterna. E foi-lhe restituído até mais do que tivera antes, pois o amor de Deus se torna, além de tudo, salvador e redentor.

Não nos esqueçamos de que a maior doação do Pai foi nos enviar seu próprio Filho: “De tal modo Deus amou o mundo que lhe deu seu Filho único” (Jo 3,16). Esse “dar” refere-se tanto à entrega na Encarnação, como à entrega dolorosa no sacrifício da Cruz. “Ele não poupou seu próprio Filho, mas por todos nós o entregou” (Rm 8,32). Assim, para irmos ao Pai, passamos sempre pela mediação de Jesus, no Amor Pessoal que Ele tem ao Pai, que é o Espírito Santo. Somos conduzidos pelas mãos do próprio Cristo à casa e ao amor do Pai.

Reconhecer esta verdade do amor de Deus para conosco é essencial à nossa caminhada de fé. É um amor pessoal, que nos transforma. Nunca muda nem arrefece. Nós é que, muitas vezes, hesitamos em nos entregar a ele, incondicionalmente. Por isso é que o Senhor nos lembra: “Eu conheço a tua miséria, tuas lutas, os apertos, as fraquezas do teu corpo. Eu estou ciente da tua covardia, dos teus pecados. Apesar disso, eu te digo: “Dá-me o teu coração. Ama-me assim como tu és!” (Trecho de uma oração de autor desconhecido).

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