quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Deus é misericórdia ( Mons.Luigi Giussani)




A oração de ontem à noite chamava a nossa atenção para os dois resultados da conversão: a paixão pelo conhecimento de Cristo (“conhecimento” no sentido pleno e bíblico da palavra), portanto a paixão por Cristo, o amor a Cristo como desejo de adesão a Ele, e, em segundo lugar, as boas obras. A Quaresma é o instrumento – instrumento sacramental – para incrementar essa conversão. Em outras palavras: quando se põe em prática o sinal quaresmal, quando se “aplicam” as indicações pedagógicas em que a Igreja faz consistir o apelo quaresmal, acontece em nós, pela força do Espírito, algo muito maior do que aquilo que nossos esforços habituais poderiam produzir. É um tempo sacramental, é um tempo que Deus destina a nos dar um ímpeto de transformação maior.

Por isso, as coisas habituais ou as práticas habituais, quando são vividas, por obediência à Igreja, no tempo quaresmal, têm um significado maior, têm uma força transformadora maior. Se assim não fosse, seria tudo nominalismo, tudo isso não passaria de meros nomes para nós, e não existiria diferença, ou seja, a história não existiria: trataríamos a Quaresma como tratamos agosto e setembro, quer dizer, com o mesmo desleixo e a mesma distração. No máximo a pregação ou a meditação litúrgica quaresmal teriam temas talvez – talvez! – diferentes dos de agosto e setembro, mas seria tudo nominalismo. Tudo seria nominalismo, simples nomes, faltaria a história real, faltaria uma história real, ou seja, faltaria o senso do Mistério como Cristo: pois Cristo é o Mistério, Deus revelado na história, Deus que se tornou experiência na história, que é uma história, como voltaremos a ver daqui a pouco. Em si, todos os gestos de Cristo eram uma infinita reparação, cada gesto seu era digno de Deus, podia reconciliar o mundo; mas, tal como a cruz foi importante na sua vida, tal como a via Crucis ou a agonia foram importantes, tal como o dia em que começou sua missão foi importante (pois os gestos todos de Cristo não possuem uma homogeneidade sem sentido, por mais que cada um deles fosse o gesto de Deus, mesmo quando comia e bebia ainda criança), da mesma forma, no nosso ano, na vida do nosso ano, nós devemos recuperar o valor da história. Por isso, justamente, a liturgia dizia que a Quaresma é um “sinal sacramental”, tem um valor sacramental para a conversão que os outros momentos do ano, os outros períodos do ano, não têm. Nesse sentido, é realmente uma espera não formal.

Chegamos a dizer ontem à noite que a “oração do dia” do Terceiro Domingo da Quaresma nos indica também as práticas, ou seja, nos indica o que chamamos o sinal material desse “sacramento” que é a Quaresma. Qual é esse sinal material, tal como o pão e o vinho são sinais materiais para a Eucaristia, e a água, para o Batismo? “Ó Deus, fonte de toda misericórdia e de toda bondade, vós nos indicastes o jejum [a mortificação], a esmola [caridade fraterna] e a oração como remédio contra o pecado [como conversão]. Acolhei [benevolente] esta confissão da nossa fraqueza para que, humilhados pela consciência de nossas faltas [remorso], sejamos confortados pela vossa misericórdia.”2 De fato, nós viveríamos entediados conosco mesmos, ou irrequietos perante nós mesmos, insatisfeitos conosco: “Sejamos confortados pela vossa misericórdia”, ou seja, que a vossa presença misericordiosa, o fato de olharmos para Vós, nos dê conforto e alívio.

Portanto, devemos chamar nossa atenção, solicitar a nossa vida, para a verdade desses três pontos, para o uso desses três pontos. A Quaresma deve ser uma obediência a este convite da Igreja: oração, jejum e obras de caridade fraterna.



1. Oração

Em primeiro lugar, é preciso que neste período respondamos ao convite que nos é feito a recuperarmos mais profundamente o sentido da oração. E o sentido da oração cristã é um só: a espera de Cristo. Como dizíamos na Escola de Comunidade3, o profeta representava o povo diante de Deus. Mas o que é que o profeta pedia a Deus, para o povo? Pedia o próprio Deus. Assim, para aquele pedaço de povo que temos mais próximo de nós, que somos nós mesmos, nós só podemos pedir Deus, a manifestação de Deus, “aguardando a feliz esperança”4, a volta de Cristo ou, o que é a mesma coisa, o cumprimento da Sua ressurreição, pois a manifestação final já começou com a ressurreição de Cristo. E termos sido assumidos dentro da “nova e eterna aliança” por meio do Batismo significa que esse fim já está presente em nós. Esse é o pensamento que exalta, esse é o pensamento da libertação, essa é a libertação. Assim, o único verdadeiro desejo é que essa manifestação se complete, ou seja, que se complete a manifestação do que já temos em nós: Cristo ressuscitado. E isso, olhando o tempo com os olhos do homem, com seu olhar normal, é o mesmo que “espera da Sua volta”.

A oração cristã é a espera da Sua volta, o pedido da Sua volta, esse maranathá, “vem, Senhor”, com o qual se conclui o Apocalipse5. Se qualquer oração nossa, se qualquer pedido nosso, se qualquer olhar dirigido por nós a Deus, se qualquer reflexão nossa não é permeada por esse “vem, Senhor!”, não é oração ou é uma oração ainda pagã. Essa é a essência da oração cristã. Atentem, por favor, para o fato de que se poderia dizer tudo isso de uma outra maneira, como sempre fizemos: a oração é memória de Cristo, é a memória da ressurreição. E a memória da ressurreição, para a nossa situação existencial, coincide com o pedido de que se cumpra em nós essa ressurreição, de que ela se cumpra em nós e no mundo. É a mesma coisa. Por isso, não será memória de Cristo se não for espera da Sua volta. São coisas idênticas. Se um homem estivesse apaixonado, a memória da sua mulher coincidiria com o desejo de revê-la.

Essa essência da oração – nós o lembramos justamente em vista da conversão quaresmal, do aprofundamento como conversão quaresmal – quer sublinhar sobretudo duas implicações.



a) A primeira implicação é a segurança; a segurança de que, tendo-nos chamado a pedi-lo, a fazer memória dEle e a pedi-lo, Ele cumprirá o seu desígnio em nós. Por isso, é a segurança da libertação. Essa expectativa é justamente a garantia da fé, é a garantia de que a fé nos conduzirá até o fim; é garantia, segurança ou penhor. Mas a palavra “penhor” acrescenta alguma coisa, pois o penhor é a garantia, a segurança que é dada por uma experiência já inicial da definitividade. Não é para menos que o penhor, em nós, é do Espírito, ou seja, da força transformadora, da força que realiza a libertação, pois é o Espírito que realiza a libertação. “Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: ‘Abá, ó Pai’”6. Só é possível dizer “pai” a alguém quando se tem absoluta certeza e segurança, como o Senhor já disse no capítulo 11 de São Lucas, versículos 1-13, quando fala do pai que não dá uma pedra ao filho, se este lhe pede um pedaço de pão: “Ora, se vós que sois maus, não podeis negar coisas boas aos vossos filhos quando eles as pedem a vós, quanto mais o vosso Pai não poderá negar a vós o Espírito Santo quando o pedirdes”7. Que significa pedir o Espírito? Significa pedir a volta de Cristo, pedir que aconteça a ressurreição, pedir que aconteça a libertação, nossa e do mundo, que é Cristo – pois a libertação é Cristo, não é outra coisa –, pedir que aconteça a ressurreição de Cristo.

Em primeiro lugar, portanto, o aspecto da segurança, do coração que possui garantias, do penhor que já se experimentou. Sublinho estas duas implicações – a segunda eu direi agora – porque são as mais difíceis; pelo nosso orgulho, pelo nosso amor próprio, pelo nosso racionalismo, pelo nosso naturalismo, pela nossa carnalidade, pela nossa autonomia, pelo nosso apego a nós mesmos, são os dois aspectos mais difíceis da oração. “Difíceis”: são os dois aspectos mais esquecidos da oração, mais deixados de lado. Poderíamos rezar esquivando-nos destes dois aspectos do “sacrificium fidei vestrae”8, do sacrifício da vossa fé.



b) Em segundo lugar – e esta é realmente uma outra coisa totalmente esquecida na nossa oração –, se a oração é a espera da Sua manifestação, é ela que nos dá o “como” verdadeiro do tempo, o “como” do tempo que passa. A oração é o coração do tempo que passa – o coração! –, ou seja, ela nos dá a postura, o “como” do tempo que passa. O tempo que passa: levantar-se de manhã, tomar o café com leite, pegar o ônibus, ir para o trabalho ou enfiar-se na cozinha para pôr ordem em tudo, arrumar as camas, varrer, espanar as teias de aranha, comer, tomar o ônibus de volta, ir para casa, falar com as pessoas. Esse é o tempo que passa. O “como” do tempo que passa, o coração do tempo que passa, portanto o valor, o significado do tempo que passa, é dado pela oração. Pois, se a oração é a espera da Sua volta e a Sua volta é a consistência de tudo, é justamente na oração que acontece o “como” do tempo que passa.

Não me parece indiscreto ler este trecho de uma carta que me mandaram. “Todas as vezes que digo na missa: ‘Enquanto, vivendo a esperança, aguardamos...’, eu me pergunto o porquê dessa esperança [leio esta carta para que vocês possam entender como estes dois aspectos, estas duas implicações da oração aqui sublinhadas, são realmente a dificuldade mais aguda para o homem medida das coisas, para a nossa autonomia]. Todas as vezes que digo: ‘Deixai agora vosso servo ir em paz, [...] pois meus olhos já viram vossa salvação’, eu gostaria que essa oração se cumprisse logo, literalmente. De fato, o que o tempo pode acrescentar a esse “já”? [Se já temos a salvação, a pergunta é: para que existe o tempo?] Isso abriria também questões mais amplas, por exemplo a do significado de uma história da Igreja [é verdade, é a mesma coisa: por que, se Ele já veio, existe toda a história da Igreja?]. Por que esperar, se sabemos que “o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa nEle”? Por que esperar, se sabemos que o tempo – a história – não tem em si a possibilidade da própria salvação, mas a espera apenas da manifestação do juízo de Deus? Por que esperar, se sabemos que nunca poderemos realizar um gesto perfeito neste mundo, que a nossa perfeição não pode ser gerada pelo instrumento que é o tempo? Ou seja, este é um dado – o tempo, a história – que eu não consigo perceber como positivo, do qual eu só consigo ver a característica que tem de algo fragmentário e incompleto”.

Por favor, vocês entendem que somente nesse nível é que a pessoa realmente age como Abraão, sacrificando o filho Isaac? Realmente, a nossa maneira habitual de conceber é destruída. De fato, o único sentido da história – o único –, o único sentido do tempo, é o mistério da vontade de Deus, a absoluta liberdade de Deus. E seria a mesma coisa, ainda que nessa carta não se mencione isso, se perguntássemos: por que Cristo veio há dois mil anos e não há trinta mil, há vinte mil, hoje? Por quê? Essas perguntas não têm resposta na nossa cabeça; a única resposta é a vontade de Deus, o desígnio de Deus, o desígnio misterioso do Pai. Mas, uma vez que isso é aceito e reconhecido, devemos nos abandonar a isso, pois essa é a verdade (a verdade não é uma imagem nossa, nunca) e essa é a bondade (a bondade não é uma imagem nossa de humanidade), e essa é a justiça, pois a justiça é Deus e tão-somente Ele, e é como um abismo sem limites, não existem medidas, não podemos medir, apresentar um critério e uma medida. E a pessoa entende que é aqui que ela “perde a si mesma”, que é aqui que está o abandono total; entende que ela é nada e que tudo é o desígnio e a vontade do Outro, o Absoluto - sem laços, sem medidas – e o inefável – que não se pode descrever, expressar, definir. E a oração, se não é isso – entendam –, é nada, é uma pretensão de adolescente caprichoso, de menino caprichoso, presunçoso e caprichoso. Mas esse abandono evita o intelectualismo ou o esteticismo (“naufragar me é doce neste mar”9) e se torna real de verdade, se torna existencial, somente na experiência cristã. Uma vez que isso é aceito e reconhecido, é aí que a pessoa compreende, que literalmente compreende que é por meio desses caminhos “que não são como os nossos caminhos”10, “essa sabedoria que não é a nossa sabedoria, Deus seja louvado”11, como dizia Miguel Mañara no final daquele trechinho que lemos na Escola de Comunidade, que Deus realiza o seu desígnio. Ou seja, uma vez que isso é entendido e aceito, compreendemos como esse desígnio é assim por amor à nossa liberdade, por misericórdia para com a nossa fragilidade. O tempo nos é dado como amor à nossa liberdade e misericórdia para com a nossa fragilidade.

Diz a Segunda Carta de Pedro, capítulo 3, versículos 8 e seguintes: “Uma coisa vós não podeis desconhecer, caríssimos: para o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos como um dia [de vinte e quatro horas]. O Senhor não tarda a cumprir sua promessa, como pensam alguns, achando que demora. Ele está usando de paciência para convosco. Pois não deseja que alguém se perca. Ao contrário, quer que todos venham a converter-se [liberdade e paciência, liberdade e misericórdia]. O dia do Senhor chegará como um ladrão, e então os céus acabarão com barulho espantoso; os elementos, devorados pelas chamas, se dissolverão, e a terra será consumida com tudo o que nela se fez. Se desse modo tudo se vai desintegrar, [em outras palavras, a medida de vocês deverá ser transfigurada, deverá ser contrita e superada de todos os lados], qual não deve ser o vosso empenho numa vida santa [o que é a santidade da vida? O “como” do tempo, que vem da oração] e piedosa, enquanto esperais com anseio a vinda do Dia de Deus [...]? [Por isso] o que nós esperamos, de acordo com a sua promessa, são novos céus e nova terra, onde habitará a justiça”12. Mas a piedade é “esperar com anseio a vinda do Dia de Deus”. Que expressão fantástica! Deveria ser essa a descrição fenomênica, a descrição psicológica perfeita do nosso estado de espírito cotidiano: “Esperar com anseio a vinda do Dia do Senhor”. A oração é isto: pedir a Sua volta.

Mas a carta citada antes prosseguia (foi ela que me sugeriu sublinhar estas duas implicações; a primeira é a da certeza, que retomarei daqui a pouco, pois é a mais aguda de todas; mas é à segunda implicação que estou respondendo: o valor do tempo): “E, se não conheço o porquê da espera, conseqüentemente também não sei como vivê-la. Eu me pego desejando viver, se isto fosse possível, tão-somente em silêncio, em oração, em contemplação, pois tenho a impressão de que em tudo isso a experiência da definitividade se antecipa de maneira mais evidente. E isso apesar de a oração, mesmo quando se liberta do peso e da obtusidade do coração, fazer sempre perceber, mais que a proximidade, a distância abismal entre nós e Deus, aumentando, assim, o sentimento de desproporção e a nostalgia. Mas eu me pego procurando o trabalho, os relacionamentos, para, com isso, experimentar de forma menos aguda essa distância. Eu me pego desejando menos uma verdadeira moralidade da minha vida, porque tenho a impressão de que, seja lá como for, nenhum empenho meu me aproxima da meta [é a lógica: o tempo não tem sentido, a história não tem sentido]. Assim, acabo por me repreender, a cada vez por um motivo: ou porque sou impaciente ou porque, por comodidade, fujo do esforço de uma ascese e da missão que me é pedida. Mas não me tranqüilizo fazendo a mim mesma essa repreensão que nunca se transforma em verdadeira contrição”. Portanto, de um lado, a pessoa tende a fugir do empenho (porque: “Que sentido tem?”, é melhor a oração, a contemplação; mas esta também faz com que se veja ainda mais longe); ou, de outro lado, a pessoa se lança nas coisas para não sentir esse mal-estar.

Ora, se o porquê da espera, se o valor da espera está no fato de que ela é a maneira pela qual Deus liberta a nossa vida e usa de misericórdia para com a nossa fragilidade, tudo o que existe no tempo – tudo! – é esse querer de Deus: tudo, tudo! “Tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus”13, daqueles que reconhecem a aliança. A aliança, precisamente, é Deus que se envolveu com o tempo e com a história, que se tornou tempo conosco. Por isso, desde quando nos levantamos de manhã, nos vestimos, vamos tomar o café com leite, pegamos o ônibus ou arrumamos as coisas, até quando voltamos para casa e vamos dormir, o que esclarece o “como” de todas essas coisas, portanto o “como” do viver a espera, ou seja, o “como” viver o tempo, é a oração, pois tudo o que fazemos deve se tornar oração. Se a oração é espera da volta de Cristo, essa espera é o próprio tempo que vivemos, o próprio tempo com seus conteúdos: pois levantar ou comer ou ir trabalhar é oração, deve se tornar oração, deve se tornar pedido. Este é o significado da palavra mais completa e verdadeira, mais definitiva, que é a palavra “oferta”, como tantas vezes dissemos e não é tedioso para mim repetir, e, a vocês, é uma necessidade ouvir.



***



“É motivo de inquietação para mim [dizia a carta no início] ouvir que não tenho nem nunca terei a garantia de perseverar na minha fé [eu poderia dizer vocação, dá na mesma]; é motivo de inquietação o fato de que a minha liberdade tem e terá sempre a possibilidade de recusar Deus. Às vezes eu me repreendo por ter nisso um resíduo de racionalismo” Exatamente! É esse mesmo o motivo. “Racionalismo” significa o homem que pretende julgar a própria vida e as coisas a partir do seu ponto de vista, ou seja, o homem que pretende ser medida de todas as coisas. É o acontecimento de Cristo que determina a nossa vida, é o acontecimento da aliança que dá o significado da nossa vida: é o que nos aconteceu que determina a segurança, a certeza, na nossa vida. “Sim, mas eu posso sempre recusar o que aconteceu.” Compreendam, por favor, o equívoco dessa objeção: pois seria necessário que a pessoa realmente recuse, mas essa só é uma possibilidade se a pessoa não recorda, se ela não faz memória!

Enfim, se, abstratamente falando, do nosso ponto de vista, essas frases, esses medos, essas inquietações são verdadeiras, isso é conseqüência tão-somente do fato de que o tempo, a história, a existência vocacional e a história, como disse São Pedro, nos são dados para favorecer a nossa liberdade, para afirmar a nossa liberdade, para que a nossa adesão ao mistério de Cristo, à volta de Cristo, seja “nossa”. É o tempo que faz com que ela se torne nossa, é com o tempo que se torna nossa, pois esse é o método que Deus estabeleceu em seu desígnio. Não é mecânico, não é imediatista, não é instintivo, não é mágico. Acontece no tempo. Esse é um dado contra o qual não é possível fazer nenhuma objeção, não é possível dizer “mas”, “se”, “porém”, pois nós somos feitos assim; qualquer “mas”, “se”, “porém” é mero fruto da imaginação, como um asno com realejo e duas asas que voa no céu entre as estrelas. É mero fruto da imaginação, não existe nenhuma outra criatura feita por Deus, a não ser esta. É no tempo, ou seja, no tempo vocacional, na existência, portanto, e na história, que se torna nossa a ressurreição de Cristo. E é no tempo e na história que a nossa desproporção, a nossa distância, na misericórdia, é lentamente perdoada, ou seja, totalmente vencida.

Então, sendo que é no tempo que a nossa liberdade e a nossa fragilidade são, respectivamente, afirmada e salva – afirmada a primeira e salva a segunda –, o nosso conceito, a maneira como nós experimentamos a liberdade e a maneira como percebemos a nossa fragilidade é algo em si perenemente inseguro, continua inseguro. Mas isso se dá porque olhamos para a nossa liberdade e a nossa fragilidade, porque as alçamos diante dos nossos olhos como se fossem coisas nossas, em vez de as olharmos do ponto de vista de Deus. O primeiro objeto é Deus, é o mistério de Deus, é Deus que se nos doou, é a misericórdia, é a aliança. Fora desse objeto, todo o resto perde a orientação, não é mais acertado.

A segurança, portanto, e a eliminação da inquietação, a garantia, como dissemos no início, a segurança na fé, o coração que tem garantias, é a presença da aliança. Esse é o primeiro objeto, é o objeto próprio da nossa consciência, dentro do qual tudo se vê. Então se entende muito bem que a existência e a história, sejam quais forem as circunstâncias que as preencham, transcorrem na certeza e na paz. Esse é o dom de Cristo, a paz, se olhamos todas as coisas em Cristo. O problema, portanto, não é a nossa liberdade ou a nossa fragilidade – “Será que vou aderir ou não?” –, o problema é que aumente em nós a memória de Cristo, e ponto final.

Seja como for, eu disse essas duas coisas porque realmente a nossa oração carece – primeira observação – dessa segurança, justamente porque não é verdadeiro pedido, não é pedir Deus, não é afirmar que Deus é tudo, mas é um pedir Deus que sirva à preocupação que temos de nós mesmos, e então ...acabou. Em segundo lugar, a oração é separada do trabalho que fazemos. E esse é um sintoma ruim tanto para a oração quanto para o trabalho. A nossa oração não é uma postura que tende a invadir o trabalho que fazemos. “Senhor, eu não sou digno” deve ser a consciência com a qual a pessoa vai trabalhar no hospital ou vai trabalhar na redação cultural ou tem de trabalhar em casa ou tem de trabalhar na universidade, etc. Isso falta completamente à nossa oração. No máximo, é acrescentado de fora à nossa oração. Também o conceito de oferta fica como que na soleira: “Eu te ofereço esta ação”, mas depois a ação não tem nada a ver com aquela oferta. Então, comecemos a entender bem o valor do tempo: o tempo é aquilo que faz penetrar, por osmose, lentamente, essa oferta dentro da alma, como alma da ação, que invade lentamente também o corpo da ação, se torna uma postura e um estado de espírito dentro da ação, graças ao que, lenta e realmente, a ação fica sendo moldada novamente.

Nós também, enfim, pagamos o pedágio aos “cristãos pelo socialismo”, para os quais de um lado está a oração e do outro aquilo que fazemos. Se teoricamente nós não somos assim, se, enquanto desejo, nós não somos assim, na prática, porém, é assim que nós somos; e esse é o crime, que furta a Deus o que lhe é devido. É disso que falava a oração que lemos há pouco: “Acolhei [benevolente] esta confissão da nossa fraqueza [esta é a nossa miséria] para que, humilhados pela consciência de nossas faltas [remorso], sejamos confortados pela vossa misericórdia”. Mas que significa “sejamos confortados pela vossa misericórdia”? Significa que Deus, tendo misericórdia de nós (o seu amor “vale mais do que a vida”14, dissemos no salmo esta manhã), lentamente amadurece a nossa consciência, amadurece todas as nossas ações como oração. Mas este é o tempo, esta é a existência, esta é a história. Pois o significado da história e do tempo é a misericórdia, como disse São Pedro, é essa misericórdia que afirma, na nossa miséria, a verdade.

De resto, o Salmo 62, que lemos esta manhã e que devemos reler pessoalmente, diz exatamente tudo isso, comunica essa experiência de segurança total, que não tem nada de presunçoso e respeita perfeitamente toda a liberdade deste mundo, mas uma liberdade vista na realidade da aliança, não vista de maneira abstrata, filosófica ou naturalista, pois se assim fosse não haveria como ficar tranqüilos de uma ora para outra. É Deus que é fiel a si mesmo, não nós fiéis a Deus. Mas isso deve se tornar princípio do nosso sentimento e deve se tornar princípio do nosso agir: essa é a conversão. E é para isso que a Quaresma solicita, como nenhum outro tempo, essa é a obra que a Quaresma (“sinal sacramental da conversão”) deve fazer em nós. “Penso em vós no meu leito, de noite, nas vigílias suspiro por vós [é o símbolo da inquietação do homem, porque comeu demais ou porque teve uma desilusão amorosa ou porque foi à falência de maneira fraudulenta]! Para mim fostes sempre um socorro [memória]; de vossas asas à sombra eu exulto!”15 Essas coisas, quando nós as lemos, nos comovem, mas não se tornam critério da nossa oração, portanto não se tornam critério da nossa vida, e o “como” da espera acaba numa confusão.



2. Jejum

O segundo tema, a segunda indicação que a oração da liturgia dava como fator do sinal da Quaresma, da realidade física, visível, que contém a ação sacramental, é a palavra “jejum”. Não podiam usar a palavra “sacrifício”, pois essa palavra tinha um sentido por demais propriamente religioso e cultual. Para nós, “sacrifício” é mais genérico, por isso nós certamente podemos usar a palavra “sacrifício” no lugar de “jejum”, ou “mortificação”, exatamente no sentido restrito do termo. Estamos falando no sentido restrito do termo: fazer sacrifícios ou fazer mortificações ou fazer jejum. De imediato, isso significa uma temperança no ímpeto, no instinto, uma temperança no uso do instinto. Temperare, em latim, significa governar de acordo com a finalidade, em vista da finalidade, portanto manter na ordem. A ordem é a relação da coisa com a sua finalidade, tanto como direção quanto como tempo. Temperar, governar a coisa em vista da finalidade é portanto manter a coisa em sua ordem dinâmica voltada à finalidade que tem.

Poderíamos então traduzir o convite ao sacrifício, o convite à mortificação e ao jejum, como fidelidade ao que é “mais significativo” na coisa. Na coisa em que nos devemos temperar, na coisa em que nos devemos mortificar e sacrificar, a norma é a fidelidade ao que é significativo, ao significado da coisa. Dizemos: o sacrifício é a fidelidade ao “mais significativo”. De fato, há um significado imediato da coisa: a pessoa tem fome, se joga de cabeça na comida; a pessoa sente afeição, vapt, “pula no pescoço”. Haveria também um terceiro campo, citemo-lo por amor a sermos completos, que é a vanglória, o orgulho, ou melhor, a sede de posse, mas de posse econômico-política. São João indica isso na sua primeira carta: “Concupiscentia carnis, concupiscentia oculorum, superbia vitae”16. Uma avidez no instinto, uma intemperança no instinto.

Mas eu quero que nos detenhamos mais na definição que dei do sacrifício como fidelidade ao que é mais significativo na coisa. Quando se come e se bebe, o que é mais significativo é que comer e beber são instrumentos para o nosso caminho, não empanturrarmo-nos ou sentirmos todo o nosso paladar reagir suave e vibrante ao contato com as moléculas do vinho. Por isso, eu chamo a nossa própria atenção para essa mortificação como expressão concreta da busca do mais significativo, também quando comemos e bebemos. De fato, a palavra jejum, na história litúrgica, indicava isso de maneira imediata (já para quem normalmente é “chato” para comer, o mais significativo é o inverso).

Mas, sobretudo, devemos centralizar a nossa atenção na afetividade (a terceira coisa, a afirmação ávida de si, poderá ser recuperada na outra indicação litúrgica, que fala da caridade fraterna): é na afetividade, justamente, que esse sacrifício, essa mortificação, como fidelidade ao mais significativo, deve agir, e deve agir ficando bem alerta, deve agir sem descanso, sem cochilar, sem parênteses de esquecimento. Fidelidade ao mais significativo: na afeição, o mais significativo não é aderir ao reflexo imediato que a afeição tem (em qualquer nível e seja lá qual for o caráter ou o nome que possa ter). Por isso, existe uma harmonia entre pessoas que, expressa de determinada maneira, divide, e existe uma inclinação que, se não é temperada, altera, faz sair do caminho. Seja como for, é suficiente que vocês reflitam sobre a fórmula “fidelidade ao mais significativo”.

De resto, a palavra mortificação não nos deve amedrontar, pois a morte já está presente na separação que faz com que, mesmo vivendo a maior intimidade, a pessoa não possa se identificar realmente com a outra. O que faz com que nos identifiquemos realmente com a outra pessoa é justamente a busca do mais significativo, é a fidelidade ao mais significativo, pois a identificação total se dá “em Cristo”17, como dizia São Paulo. A fórmula de São Paulo – “em Cristo”, “fazei tudo em Cristo”, “o mundo em Cristo” – indica a unidade profunda e final entre todas as coisas, como aquilo a que somos destinados. E, se nós dizemos sempre que a libertação é a unidade e que a escravidão é a divisão, devemos sentir essa solicitação, não como inimiga, mas como amiga.

Há um reflexo dessa “fidelidade ao mais significativo” – que deve levar a atitudes de real mortificação, que deve instaurar componentes de real mortificação –, há um teste, uma conseqüência: a liberdade, a liberdade na coisa. Esse é realmente um teste. É a partir disso que se percebe fisicamente a fidelidade ao mais significativo, e é isso que a mortificação realiza, é isso que a mortificação exalta, edifica: a liberdade. Liberdade perante o resultado, que faz com que a pessoa finalmente seja capaz de querer bem ao outro, de ser livre perante a resposta do outro, perante a maneira como o outro corresponde: é realmente a liberdade, é amar de verdade e ponto final, o amor finalmente sem a mentira. E, em segundo lugar, a liberdade perante nós mesmos, ou seja, perante o gosto. A liberdade perante o resultado, perante o outro, e a liberdade perante o gosto (mesmo perante a montanha, por exemplo, perante a neve, perante a rocha e perante a geleira; do contrário, se não é a busca do mais significativo, ir à montanha se transforma numa atividade do Clube de Alpinismo).



3. Caridade fraterna

A terceira coisa que a oração litúrgica nos indicava é a esmola (caridade fraterna). Aqui também, indico aquilo em que a conversão deve acontecer, os aspectos mais crus em que a conversão deve acontecer, deixando para entrar em detalhes a respeito da vida da casa numa outra ocasião. Em primeiro lugar, faço algumas indicações gerais, que se devem tornar concretas na reflexão.

Normalmente, nós nos relacionamos com os outros mutilando a sua história, como observaram com razão numa reunião. Que significa mutilar a história do outro ou mutilar a pessoa, reduzir o outro e reduzir a história do outro? Tendemos a reduzir a história do outro aos nossos critérios e às nossas medidas, portanto ao nosso estado de espírito, à nossa conveniência, à nossa avaliação das coisas. Tendemos a reduzir a história do outro a isso e tendemos a mutilar a personalidade do outro, pois sublinhamos o que nos interessa, o que nos corresponde, e não olhamos para o que não nos corresponde e não nos interessa, ou então temos raiva disso. Em outras palavras, é a instrumentalização do outro. Esse é o primeiro colossal e permanente pecado nos nossos relacionamentos: a instrumentalização do outro.

O segundo aspecto que sublinho, entre todos aqueles que podem ser mencionados, é uma variação dessa mutilação do outro e dessa redução da história do outro, dessa instrumentalização; essa variação se chama indiferença perante o outro. Por favor, tenham o cuidado de sublinhar isso, pois, quando vou às suas casas ou olho para o Grupo Adulto, dá para notar isso a olho nu, é uma coisa que fere o olhar: a indiferença perante o outro. Em períodos alternados, é claro. Pois existe o momento em que o outro lhe interessa; mas, fora desse momento, você fica indiferente.

O terceiro aspecto é o que a liturgia ontem à noite chamava “os hábitos autoritários e a linguagem maldosa”18, ou seja, a ira, como ressentimento interior ou como ressentimento que explode ou como ressentimento disfarçado (lamento e murmúrio).

O que origina esses graves erros na caridade fraterna, nos quais a Quaresma nos convida a ficar de olho – ficar de olho significa que todos os dias vocês devem fazer o exame de consciência sobre esses pontos; fazer o exame de consciência significa pedir a Cristo que essas coisas sejam perdoadas pela Sua misericórdia, portanto recuperadas, eliminadas na nossa história; sem essa paciência, o que fazemos não é pedir –, o que origina esses erros na caridade fraterna é a falta da “simplicidade de coração”, que é o aspecto psicológico da “pobreza em espírito”.

Insistimos na palavra “simplicidade”, a simplicidade de coração. A simplicidade de coração vive a memória no relacionamento. É a simplicidade que não julga o outro, pois, como dizia São Paulo na Carta aos Romanos, “é para seu próprio Senhor que o homem fica de pé ou cai”19 (“Domino suo stat aut cadit”, diante do seu Senhor fica de pé ou cai). A simplicidade de coração não julga o outro, mas, sim, diante do outro, procura apenas responder ao apelo de Deus pela própria maturidade que está presente na atitude do outro: a atitude do outro é a maneira como Deus me chama para o meu amadurecimento, quer tal atitude sirva de exemplo, quer sirva de mau exemplo. Sendo assim, falta caridade fraterna no relacionamento porque falta simplicidade de coração no juízo, falta a simplicidade da fé, pois a presença do outro é a maneira existencial, histórica, com a qual Deus me chama – chama a mim! – ao meu amadurecimento, me solicita para a minha maturidade.

Estes são os pontos da prática ascética que é o sinal sacramental da Quaresma, que é o sinal dentro do mistério transformador da Quaresma. O semblante da Quaresma deve ser essa prática, não tendo uma presunção a partir dessa prática, mas porque essa prática ascética constitui o instrumento expressivo (como a palavra, na afeição), a nossa palavra balbuciante, infantil, caótica, impotente, de resposta ao amor de Cristo. Essa prática ascética é justamente aquilo que tenta exprimir, durante a Quaresma, a fé graça à qual Cristo é tudo para nós e para o mundo.

Uma prática ascética, atenção, é feita sempre de duas raízes; para viver essas coisas, são necessárias duas raízes. A primeira é o juízo de valor, que se chama fé, uma vez que a fé é um juízo de valor. O que é você, para mim, agora? O que é você, que está à minha frente? Esse é o ponto. É um juízo de valor que responde a essa pergunta, e é esse juízo de valor que, respondendo a essa pergunta, estabelece a forma do meu relacionamento, mesmo que depois eu não saiba mantê-lo.

A segunda raiz é a dificuldade pessoal. Por isso, deveríamos realmente eliminar, enquanto fórmula, a frase: “Não é fácil, que dificuldade!”. “Que dificuldade!” ainda pode ser dito como exclamação. Mas “não é fácil!”, como início de um diálogo, como questão que submetemos ao juízo da autoridade ou ao juízo fraterno, “não é fácil” como problema que apresentamos,esse “não é fácil” nós realmente deveríamos eliminar; seria melhor. Porque ele é óbvio. Ao passo que, quando a pessoa diz: “Como esta comida está boa!”, aí, sim, pode dizer: “Nossa, não é fácil, que dor de barriga”. Mas o “não é fácil” apresentado como um problema é perfeitamente inútil, é realmente perder tempo, é agir como uma pessoa evasiva.

O evangelho de hoje20, que é o da tentação de Cristo, é uma página de extrema lucidez como ensinamento para nós. Em que ponto se fundamenta toda a tentação? Num juízo de valor. Primeiro, o instinto: você tem fome, então come. Depois, o tentador fica esperto, pois vê que Jesus responde: “Não só de pão vive o homem” (existe uma medida). Então, justamente em cima dos valores é que ele constrói a tentação. O que ele diz depois são valores e, de fato, são ditos por meio da palavra de Deus; o que ele diz são valores, mas valores arrancados do contexto da aliança, ou seja, da história de Deus, arrancados da sua verdade, tal como o conceito de liberdade ou como o conceito de fragilidade e de pecado, da maneira como os usamos normalmente: são arrancados da sua verdade, que é o contexto da aliança, da história.

A nós, porém, foi dito: “Bem-aventurados, bem-aventurados sois vós, pois a vós foi dado conhecer o Mistério”21.

Ter certeza de algumas coisas (Dom Giussani)




É exatamente o empenho extremamente belo vivido pela maioria de nós - pela maioria das pessoas aqui presentes, com suas comunidades (nem todas as comunidades universitárias viveram assim, mas a maior parte delas certamente viveu este último mês e meio de uma maneira bela e viva) -, esse empenho é justamente o que torna relevante a observação feita há pouco: o que nos torna inquietos é o fato de todos nos sentirmos ameaçados pelo perigo de morrer na praia, nessa suspence entre os compromissos que assumimos com a Cusl ou com o CLU1 e uma vida, uma vida cotidiana, uma vida pessoal, que é toda dificultada pela ausência de motivos que tornem condignos, prazerosos e humanos os afazeres, as empreitadas em que nos lançamos todos os dias, os interesses de todos os dias.

O depoimento que citei respondeu a isso usando uma palavra belíssima: “É preciso que nos tornemos mais pobres”. E a pessoa usou essa palavra de uma maneira realmente cristã, acertou em cheio o seu valor. Mais pobres: que significa “mais pobres”? Vocês se lembram do que essa pessoa disse? “Ter certeza de algumas grandes coisas.” O pobre é aquele que tem certeza de algumas grandes coisas, graças às quais - tendo a certeza de algumas grandes coisas - ele constrói uma catedral e vive num casebre, cem mil vezes mais homem do que aqueles que têm como horizonte último um apartamento confortável em todos os sentidos e, quando podem, até dão uma esmola para a Igreja. Pobres: certos de algumas grandes coisas. Por que ser pobre é ter certeza? Porque a certeza significa um abandono de si, significa superação de si, significa que eu sou pequenininho, não sou nada, e uma outra coisa é que é verdadeira e grande: isso é a pobreza. É essa pobreza que nos torna plenos e livres, que nos torna ativos, vivos, porque a lei do homem, ou seja, o dinamismo estável do mecanismo natural que se chama homem, é precisamente o amor, e o amor é a afirmação de algo que não sou eu como significado de mim mesmo. Por isso, se não é fácil encontrar entre nós pessoas com essa certeza, é porque ainda não existe pobreza entre nós. Realmente, a pobreza é uma conquista muito adulta. [...]


Nós vivemos uma responsabilidade mais crítica que criativa, quer dizer, só respondemos às coisas quando elas se tornam uma objeção relevante. Quando as coisas se tornam uma objeção relevante à nossa posição enquanto membros de CL, aí é que nós nos tornamos críticos. Mas não somos criativos, pois a criatividade é a fé que se arrisca na circunstância e a transforma, a muda, ou seja, cria alguma coisa diferente. Assim, por exemplo, na relação entre um rapaz e uma garota, a postura crítica se chama moralismo, enquanto a postura criativa é algo que faz a relação se tornar diferente. O moralismo deixa você - cada vez menos, mas deixa - um tanto preocupado com ultrapassar certos limites, ao passo que uma posição criativa é outra coisa: a relação se transforma em outra coisa, a maneira de olhar e de pensar se transforma em outra coisa, e isso é um pedaço de humanidade diferente. A postura crítica não faz a humanidade se tornar diferente; eventualmente, gera um mal-estar (aí, o único gosto que se pode ter é em brigar).

O “problema” é justamente a fé que se arrisca nas circunstâncias, que me mobiliza contra a circunstância quando esta me faz uma objeção e gostaria que eu deixasse de estar certo das poucas grandes coisas. O que o ideal tem a ver com o estudo, com o dinheiro, com a família que você vai formar ou que você já tem? O que tem a ver? Aí está, isso é um “problema”, impõe um problema, pois essas situações gostariam que eu deixasse de ter certeza e adotasse uma postura de reatividade mais banal. Então eu sou mobilizado e luto contra essa objeção, contra esse ataque: eu contra-ataco e, contra-atacando, a fé faz conceber e mobiliza de maneira diferente a minha relação com as coisas que me interessam, e se cria assim uma experiência de humanidade diferente, que é a verificação da fé: a fé se torna grande.

O que é que permite que um verdadeiro dinamismo problemático não se torne problematicismo? O que é que impede de descambar no problematicismo, ou no ceticismo, que é a mesma coisa, quando tudo se torna objeção e a pessoa fica ali parada, como se tivesse uma deficiência física, não sabendo como mexer as mãos, e depois cresce nela um ar de ceticismo e de “desencanto”? O que é que impede de cair no problematicismo e matar a charada, portanto viver de um modo vivo (pois a vida é uma problemática, é uma trama de problemas na qual o ideal que está em nós age, luta e vence ou, o que é a mesma coisa, faz o humano reaparecer)? O que é que impede de cair no problematicismo e permite continuar no nível sadio de uma problemática vivida? O que elimina o problematicismo é “estar dentro da forma histórica na qual é possível para mim a relação com Cristo”, como nos foi dito. O que elimina o problematicismo é estar dentro, estar dentro da forma histórica na qual é possível para mim a relação com Cristo.

Se um feto pudesse pensar, como poderia evitar o problematicismo (“Ai, meu Deus, e agora? Como é que eu vou respirar, como é que eu vou me alimentar, como é que as minhas células vão realizar o metabolismo?”)? O problematicismo, que se torna objeção, faria o feto ficar ali parado, frio e ansioso, e depois cético: “Viver é impossível!”. Pelo contrário, o que é que tornaria o pequeno feto “agressivo”, ou seja, capaz de enfrentar a problemática do viver? Estar dentro da forma histórica na qual é possível para ele a relação com a vida, que é aquele ventre, que é a sua mãe, que é aquela matriz. Ele poderia ter tido bilhões de outras matrizes em qualquer ponto da história! Mas isso é abstrato: para ele, a matriz é aquela, não existe outra (e eu não creio que num caso como este se possa simplesmente fazer um transplante!).


A quinta passagem nos leva de volta à segunda, ou seja, nos obriga a encarar a palavra “fé”. “Estar dentro da forma histórica que lhe tornou possível a relação com Cristo” é uma formulação sintética e definitiva.

A fé. O que são aquelas “poucas grandes coisas”?

Em primeiro lugar, a presença entre nós do Mistério que faz todas as coisas, sob forma humana: Ele se tornou homem, e essa realidade está entre nós (“Estarei convosco até o fim”2), e nada jamais poderá extirpar essa Presença da carne da história, da carne do tempo e do espaço, nem mesmo a traição ou a obliteração que nós todos pudermos praticar.

Eu dizia há algum tempo, depois das notícias do Referendo3: “Aí está, este é um momento em que seria bonito sermos só doze no mundo inteiro”. Em outras palavras, é um momento em que nós voltamos exatamente ao ponto de partida, pois nunca se demonstrou tanto que a mentalidade não é mais cristã. O cristianismo como presença estável, consistente, e por isso capaz de tradere, de tradição, de comunicação, de criar tradição, hoje não existe mais: precisa renascer. Precisa renascer como solicitação à problemática cotidiana, ou seja, à vida cotidiana, à vida. Eu gostaria de insistir nisso, pois a palavra “vida” é equívoca, pode ser entendida em sentido vitalista, e viver a vida, então, seria uma reatividade, o que é infra-humano. A vida humana é feita de inteligência e liberdade, ou seja, é feita de juízos, de escolhas e de energia afetiva: essa é a vida como problematicidade, a vida como problema. O que é que define a passagem da infância, da pré-adolescência para o início de uma consciência pessoal? A idade fica entre os doze e os quinze anos; mas deixemos para lá o momento, que não pode ser fixado matematicamente: o que caracteriza o início de uma consciência pessoal, e portanto de um sentido da própria identidade, é a passagem do ter porque se recebe, ou seja, do dado tradicional, tradito, para a problematicidade, ou seja, a criticidade e a escolha; diante do que lhe foi dado, a pessoa diz: “Por quê?”, e “retém o que tem valor”4, como dizia São Paulo à comunidade de Tessalônica.

Ora, a solicitação a tornar a vida “problema”, ou seja, “guerra”, a viver a vida como guerra, é uma só: Cristo, essa presença no mundo. Este é o ponto: a fé é o reconhecimento dessa Presença, e tão-somente isso. Aqui temos “aquelas poucas grandes coisas” de que é rica a nossa pobreza, ou seja, a nossa verdade. A fé é reconhecer Cristo.

Mas qual é o ponto? O ponto, o nó da questão está no fato de que todos dizemos “Cristo”, mas é como se esse Cristo não existisse; pois Cristo é a resposta, é o sentido, Cristo é a forma, é o significado do viver, portanto o significado e a forma da relação afetiva ou do uso das coisas ou da maneira de olhar para a natureza, para o tempo, para o espaço, para o nosso projeto para o futuro ou para o nosso passado: Cristo deve se tornar a forma de tudo isso, a inspiração ativa e operante de tudo isso, o critério de tudo isso. Como dizia Romano Guardini, que já citei tantas vezes, naquela frase belíssima (é a frase mais bonita que eu já ouvi neste sentido, e a mais sintética): “Na experiência de um grande amor, todas as coisas se tornam um acontecimento em seu âmbito”5. A grande coisa graças à qual tudo se torna um acontecimento em seu âmbito (ou seja, é determinado por ela) é a fé. A justiça é a fé. “O meu justo vive por sua fé.”6 Qual é a justiça na relação com seu pai e sua mãe? A fé. E qual é a justiça na relação com sua mulher? A fé. E qual é a justiça na sua maneira de estudar? A fé. E qual é a justiça na sua maneira de trabalhar? A fé. E qual é a justiça na sua maneira de se relacionar com todas as formas de solidariedade entre os trabalhadores, a que damos o nome de sindicato? A fé. E de que forma você olha para a sociedade, qual é a sua maneira de enfrentar a sociedade e a realidade? A fé. A justiça é a fé, e a fé é reconhecer essa Presença: Cristo é o conteúdo da fé.

Aqui, devemos ter atenção a duas coisas, que foram sublinhadas muito oportunamente hoje de manhã.


1) Em primeiro lugar, uma negativa: se o ideal é a pessoa de Cristo, hoje de manhã se apontava a distância que existe entre o que nós vemos em nós e fora de nós e o ideal: “Eu não o sinto”, “É estranho para mim”, ou: “Eu sou diferente de como deveria ser, tenho vergonha, as palavras d’Ele estão bem longe do que eu faço”. A distância. Esta é a primeira coisa terrível, que é preciso que aconteça; melhor ainda: antes de qualquer tentativa de coerência, essa é a suprema coerência. Qual é a suprema coerência com Cristo, ao reconhecer Cristo? É que, mesmo que você seja um monte de estrume, Cristo é maior do que o seu monte de estrume, é mais capaz, é mais forte do que todo o poço da sua miséria. Por isso, a fé é uma certeza em que nunca pode faltar a letícia, pois o motivo da letícia é uma certeza maior que qualquer consideração que eu faço de mim mesmo. Isso é o amor, essa é a afirmação de algo além de mim mesmo. Eu sempre dou o exemplo da criança, pois é o mais perfeito; eu poderia usar como exemplo uma pessoa que ame de verdade, que esteja profundamente apaixonada por outra, mas é raríssimo que isso aconteça, e não acontece sem vir misturado com muitos erros (como dizia Santo Tomás de Aquino7, falando do homem que alcança a idéia da existência de Deus); na criança, a natureza consegue isso de repente. A criança, por sua natureza, fica contente - fica contente por sua natureza! - quando se encontra em sua condição natural: sua condição natural são seu pai e sua mãe. Ela pode ter feito travessuras, pode ter aprontado o que vocês quiserem um instante antes, mas, se sua mãe a toma entre os braços, ela fica contente, para ela não existe mais nada, pois sua consistência é a afirmação daquela mulher que tem à sua frente. E o rosto da criança diz isso de uma maneira inconfundível e espetacular, para quem olha com um olhar inteligente.

Por isso, a distância de qualquer natureza (“não sinto”, “é abstrato”, “é uma palavra”), qualquer tipo de distância não é objeção à certeza que se chama “fé” e à energia - que essa certeza faz empregar - da liberdade. Esse é o ponto de partida que concede uma capacidade de letícia característica, absolutamente inconcebível fora da experiência da fé cristã: de fato, não existe nada mais estranho que uma alegria real dentro de um indivíduo que tem consciência daquilo que ele é, da sua miséria. Essa é realmente uma coisa do outro mundo: é uma coisa do outro mundo e ao mesmo tempo é uma coisa que a pessoa vive, e que não é possível fora dos termos da nossa fé.


2) A segunda coisa sublinhada é positiva. A distância, qualquer distância, não é objeção: a objeção é quando você cede ao problematicismo ou acolhe a objeção que se faz à sua identidade. A fé, ou seja, reconhecer-te presente, ó Cristo (“Eu te reconheço presente”), traz consigo uma tarefa tão grande quanto o mundo e a história; a fé - reconhecer Cristo como a coisa grande que é a riqueza da minha pobreza - constitui a semente de um povo novo. É a mesma coisa. “Traz uma tarefa tão grande quanto o mundo e a história” ou “é a semente de um povo novo” são a mesma coisa: são a abolição do privado; a categoria do privado desaparece.

Na concepção cristã, a categoria do privado não existe, tanto assim que o conceito de mérito, ou seja, o valor da ação, o valor moral da ação - que se chama “mérito” -, é a proporção que a ação tem com o desígnio de Deus. A ação é justa quando é “função de”, ou seja, quando dilata o Reino de Deus, é para o mundo: uma ação é moral quando ajuda o mundo a se realizar. Pensem que essa ação não é apenas a luta pelo Referendo: essa ação pode ser lavar os pratos. A categoria do privado é inexistente, não existe mais, da mesma forma como não pode existir nem um fio de cabelo da cabeça que seja autônomo, pois “até os cabelos da vossa cabeça estão contados”8, da mesma forma como a pessoa não pode dizer nem uma palavra por brincadeira que não tenha um peso eterno (“De toda palavra inútil que os homens disserem darão contas”9). Por isso, mais uma vez no cotidiano, essa grandeza dilata a percepção da nossa humanidade e, portanto, a percepção da nossa relação com tudo.

Mas, se a fé é reconhecer Cristo, o grande desconhecido entre nós, o grande escondido, realmente o Deus escondido entre nós, a grande censura, em razão da qual nós somos coniventes com “o mundo que está todo na mentira”10, a mentira é não reconhecer Cristo, o mentiroso é aquele que não reconhece Cristo.

Portanto, a outra das “poucas grandes coisas” de que se falava é a nossa companhia, como foi sublinhado depois. Se o ideal é Cristo, é preciso que não seja psicologismo. Psicologismo é tudo o que é moldado e reduzido a pensamentos nossos ou a sentimentos nossos; tudo o que é apenas pensamento ou sentimento, imagem, pertence a uma realidade puramente psicologista.

Se o ideal é Cristo, é preciso que não seja psicologismo. Disseram hoje de manhã: “Esta ‘idéia’ eu posso ver”. A tragédia para nós é que Cristo continue a ser uma idéia, quando na verdade é uma presença e eu a posso ver, ou seja, tenho de reconhecê-la na nossa companhia, neste fato vivo que é a nossa companhia, mesmo que restássemos apenas doze no mundo inteiro: a nossa companhia, este fato vivo, cujo significado vai além da sua forma e da sua consistência. O significado da nossa companhia vai além do que nós somos e da soma do que nós somos, como eu já disse da última vez. Mesmo que fôssemos mil vezes mais mesquinhos do que somos, a nossa companhia é uma coisa sagrada, grande, pois ela é de certa forma o invólucro, o sinal da coisa grande que é a riqueza da nossa pobreza.

Assim, a nossa consciência dispara, a nossa vida dispara quando o primeiro dado, ou seja, o primeiro objeto que nos interessa é aquilo com que nos deparamos no encontro que fizemos. O que encontramos é o conteúdo da fé: uma companhia, cujo significado, cuja consistência é uma coisa maior do que aqueles que a compõem, ou seja, é Cristo. Portanto, dar crédito a essa companhia, dar crédito, “credere se alicui”, como estudamos na gramática latina, “confiar-se a”, “dar-se a”, ou seja, “pertencer”, é isso que nos define: somos definidos por um pertencer, o pertencer a Cristo, que é idéia abstrata se não está dentro da forma histórica em que o encontramos. A forma histórica é ridícula, mas sem ela não pertencemos a Ele. É uma companhia entre nós, portanto, “não como escudo contra os golpes”, como disseram esta manhã com muita perspicácia, não quando compensa, como também disseram com igual perspicácia, mas como sustento da minha posição pessoal, como chamado de atenção, alimento e correção da minha posição pessoal, ou seja, da minha fé, do meu reconhecer Cristo.

Esta, portanto, talvez seja a fórmula que devemos buscar viver nesta primeira etapa de caminho que temos de percorrer depois destes meses novos: “A vida não é mais do que o ideal, a vida não pode ser mais do que o ideal, mas o ideal é mais do que a vida”, de acordo com o que foi dito esta manhã. A vida é mais do que o ideal quando as circunstâncias, as tantas circunstâncias, as que talvez mais importam individualmente se esquivam do juízo e da carga, do ataque, do ideal: recusam o problema, a luta e o problema; a vida então se torna mais do que o ideal e o ideal se encolhe num canto, como um nicho ao qual até tributamos incenso em determinados momentos. Mas o ideal é mais do que a vida: “Vosso amor vale mais do que a vida”11, como diz um salmo que já repetimos tantas vezes. Ou seja: “A Tua presença vale mais do que a vida”.

Até logo, e boa sorte!

Da fé, o metódo (Mons.Luigi Giussani)




UMA QUESTÃO DE MÉTODO. A nossa companhia é definida por um método. Podemos afirmar que a “genialidade” do nosso movimento está toda no seu método. Por isso, é antes de mais nada uma “genialidade” de tipo educativo, uma vez que o método é o caminho por meio do qual o homem chega a ter consciência da experiência que lhe é proposta. É justamente preservando a autenticidade do método que o conteúdo da nossa experiência pode ser transmitido.



A ORIGEM DO MÉTODO CRISTÃO É A FÉ

O método se origina na fé, que é o reconhecimento, na própria vida, de uma presença excepcional ligada ao destino. A fé chega a invadir todo o horizonte da vida por meio da relação com uma presença que corresponde ao coração. Deveria ser normal a correspondência de tudo o que acontece com o coração; no entanto, não é assim. Fora do encontro com uma presença excepcional, é impossível fugir da trágica constatação: “Nada de novo sob o sol”.

O método tem como sua fonte o “choque” com uma presença imprevisível e grande, que a razão reconhece como literalmente “sobre-humana”.

A essência do método, portanto, é seguir a realidade pessoal que introduz ao acontecimento de uma presença excepcional. O seguimento é a atitude mais razoável diante do acontecimento cristão. A cultura de hoje considera impossível conhecer, mudar a si mesmo e à realidade “apenas” seguindo uma pessoa. A pessoa, em nossa época, não é contemplada como instrumento de conhecimento e de mudança, já que estes são entendidos de maneira redutiva, o primeiro como reflexão analítica e teórica, e a segunda como práxis e aplicação de regras. Em vez disso, João e André, os dois primeiros que se depararam com Jesus, justamente seguindo essa pessoa excepcional aprenderam a conhecer de um modo diferente e a mudar a si mesmos e à realidade. A partir do instante daquele primeiro encontro, o método começou a se desenvolver no tempo.



A EVIDÊNCIA E A LIBERDADE

A evidência da excepcionalidade da Presença, encontrada por João e André, manifesta-se no instante e cativa para a eternidade. A convicção, por sua vez, amadurece com o tempo. Jesus aparecia às pessoas com o “maldito”, segundo os doutores da Lei, o proscrito, segundo os escribas e fariseus, o indivíduo “equívoco” de que todos falavam mal. No entanto, para aquelas mesmas pessoas, ficava evidente que Ele correspondia ao coração mais que aqueles que o denegriam. Trata-se de uma evidência, de uma evidente correspondência com o coração que não pode ser objeto de outras “argumentações”.

Portanto, a evidência se dá no instante – para João e André, que o viam falar, era evidente que aquele homem correspondia de um modo imprevisível (de um modo excepcional) ao seu coração -, ao passo que a convicção é fruto do tempo, quer dizer, literalmente, de uma repetição, ou seja, de um pedido contínuo (ri-petere). Trata-se de uma repetição que “persuade”. Vale a pena sublinhar que a liberdade aplica sua adesão ou se retrai no momento da evidência. Com o passar do tempo, depois, será revelada que posição a liberdade assumiu diante da evidência: de fechamento ou de abertura. Tudo depende da posição original diante das coisas: se o homem está com os olhos arregalados ou se é como uma criança que cobre, por capricho, o rosto com o braço. O que acontece na vida traz inevitavelmente à tona a posição escolhida e assumida no princípio. “A vida do homem”, dizia Santo Tomás, “consiste no afeto que principalmente o sustenta e no qual encontra a sua maior satisfação”. E Romano Guardini acrescentava: “No âmbito da experiência de um grande amor, todas as coisas se tornam um acontecimento”.



UMA IMITAÇÃO, NO TEMPO

Um termo que contribui para precisar a natureza do método é a palavra “imitação”. Ela descreve a grande lei da natureza, em todos os níveis. Deus, em primeiro lugar, ao criar o homem, disse: “Façamos o homem à nossa imagem e segundo a nossa semelhança” (Gn 1,26). E Jesus introduzia a mesma dinâmica ao se dirigir a seus discípulos com estas palavras: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48). Isso é humanamente impossível, e mesmo assim nessa tendência à imitação está a síntese de toda a lei moral evangélica.

Seguir é seguir, não é alcançar. Imitar é imitar, não é realizar. No método do seguimento e da imitação está implicada a noção de “porvir”. Por isso, o método implica o tempo.

A imitação se realiza por meio da comparação, que não é um duelo entre duas lógicas, nem é a busca de uma aprovação, mas o pedido contínuo de uma correção.



N.B.: Por conseguinte, vale a pena sublinhar a importância de que se revestem estas notas para compreender o próprio conceito de “educação”, qualquer que seja o âmbito em que seja aplicado. Misericórdia e perdão são as bordas extremas de um relacionamento educativo novo. A genialidade do cristianismo consiste no anúncio de que Deus se tornou fator imanente a toda a experiência do homem, até à experiência do pecado. Misericórdia e perdão são como a semente divina que, a partir do erro humano, pode voltar a gerar a vida.



UMA TENTAÇÃO IRRACIONAL

Aquilo que faz surgir a evidência inicial, o acontecimento, não pertence apenas ao momento inicial, não se esgota ali, mas está presente em cada momento do desenvolvimento. Por isso, seguir implica uma repetitividade. Não se trata de um automatismo, uma vez que a vida assim concebida se compõe de atos que com o tempo se tornam mais conscientes, mais carregados de consciência da fé e, portanto, de humanidade. A tentação é “afastar-se” desse seguir, pela presunção de já saber o que é pedido para seguir. Desse modo, a pessoa cai na parcialidade, na recusa da correção, na suspensão da tendência à realização.

O grave erro é suspender o método, pensando substituí-lo pela própria capacidade. A bem ver, é um ato irracional: se, de fato, a razão é consciência da realidade segundo a totalidade de seus fatores, qualquer parcialidade destrói a razão e o método.



A VIRTUS: A OBEDIÊNCIA

A virtus, a atitude moral, no caminho da fé é a obediência. Ela se exprime como seguimento de uma presença excepcional encontrada, tendo como conotação duas características:

a) a presença excepcional se comunica a nós por meio de uma realidade humana, a Igreja, por meio de uma companhia gerada pela fé de um homem;

b) justamente porque a presença que seguimos é humana, ela exprime inevitavelmente pontos de vista e temperamentos próprios e diversos daqueles expressos por outros. Nessa “variedade de encarnação” compreende-se e se exprime aquilo a que chamamos carisma: o “terminal” do grande mistério da Encarnação. O acontecimento cristão, o fato de que Deus se encarnou, implica e estabelece uma realidade humana com determinadas características, estabelece um lugar por meio do qual Ele me alcança pela ação do Espírito.

A obediência constitui, portanto, a virtude própria do seguir, e ela é posta à prova quando temos de seguir determinado homem, determinada companhia. Não é obediência, se a pessoa não segue a Presença excepcional no terminal concreto (carisma) em que esta se torna presente. Nessa prova, compreendemos o significado da expressão: “Não há sacrifício maior que dar a vida pela obra de um Outro”. Obediência: não há palavra que exprima mais claramente o mérito do homem-Cristo, feito obediente até a incongruência suprema. Cristo, de fato, fez-se “obediente até a morte” (Fl 2,8).

A possibilidade de que a nossa companhia traga benefício à Igreja e à sociedade não depende daquilo que cada um consegue fazer segundo sua genialidade, mas da disponibilidade a realizar “a Obra” do Espírito. Obedecer ao Espírito significa, em última instância, obedecer a um homem, a uma realidade humana – frágil e incoerente o quanto quiserem – que foi escolhida por Deus como terminal da Encarnação, como carisma que existe para a totalidade da Igreja.

Da fé e da obediência, assim concebidas e vividas, nasce um povo novo. A obediência, de fato, assegura a unidade esponsal que gera os filhos. A estéril que obedeceu tornou-se geradora de filhos.



Dom Giussani




O Meeting de Rimini é a maior manifestação que fizemos em 30 anos. A maior não apenas em quantidade mas também em relaçao a sua incidência na opinião publica. Quais os fatores determinantes?

De uma parte, pessoas apaixonadas pela vida do movimento. O que quer dizer apaixonado pela vida? Um adulto não pode não ser apaixonado por uma vida, ou então um velho por uma criança. O adulto é serio na vida. A seriedade na vida é a paixão pelo significado.

Segundo ponto: amigos entre eles pelas circunstancias que os permitiram. Uma paixao pela vida que os fazem capazes da amizade, e a amizade è vivida quando estes enfrentam juntos as necessidades.
Qual é o ponto diferencial que nos faz entender a maturidade destas pessoas? é que vivendo numa determinada situação: A Rimini no Verao, por exemplo, perceberam a absoluta e total falta dos cristãos. Há quantos anos que Rimini é centro balneário deste tipo? É bonito e trágico que algumas pessoas se tenham perguntado repentinamente ou finalmente: “Não existe presença crista aqui dentro”. Assim o evento novo começa. A geração do adulto começa. O adulta gera. Criaram o lugar onde se encontravam um sujeito e a presença é esta, um lugar onde se encontra um sujeito, um sujeito, uma pessoa, uma humanidade que tinha algo a dizer, uma humanidade com uma menage e este é o verdadeiro filho.

sábado, 21 de agosto de 2010

Amo porque amo, amo para amar.


Segunda leitura
Dos sermões de sobre o Cântico dos Cânticos, de São Bernardo de Claraval, abade

O amor basta-se a si mesmo, em si e por sua causa encontra satisfação. É seu mérito, seu próprio prêmio. Além de si mesmo, o amor não exige motivo nem fruto. Seu fruto é o próprio ato de amar. Amo porque amo, amo para amar. Grande coisa é o amor, contanto que vá a seu princípio, volte á sua origem, mergulhe em sua fonte, sempre beba donde corre sem cessar. De todos os movimentos da alma, sentidos e afeiçoes, o amor é o único com que pode a criatura, embora não condignamente, responder ao Criador e, por sua vez, dar-lhe outro tanto. Pois quando Deus ama não quer outra coisa senão ser amado já que ama para ser amado; porque bem sabe que serão felizes pelo amor aqueles que o amarem.
O amor do Esposo, ou melhor, o Esposo-Amor somente procura a resposta do amor e a fidelidade. Seja permitido á amada corresponder ao amor! Por que a esposa e esposa do Amor não deveria amar? Por que não seria amado o Amor?
É justo que, renunciando a todos os outros sentimentos, única e totalmente se entregue ao amor, aquela que há de corresponder a ele, pagando amor com amor. Pois mesmo que se esgote toda no amor, que é isto diante da perene corrente do amor do outro? Certamente não ocorre com igual abundância o caudal do amante e do Amor, da alma e do Verbo, da esposa e do Esposo, do Criador e da criatura; há entre eles a mesma diferença que entre o sedento e a fonte.
E então? Desaparecerá por isto e se esvaziará de toda a promessa da desposada, o desejo que suspira, o ardor da que a ama, a confiança da que ousa, já que não pode de igual para igual correr com o gigante, rivalizar a doçura com o mel, a brandura com o cordeiro, a alvura com o lírio, a claridade com o sol, a caridade com aquele que é a caridade? Não. Mesmo menos amado, por ser menor, se a criatura amar com tudo o que é, haverá de dar tudo. Por esta razão, amar assim é unir-se em matrimônio, porque não pode amar deste modo e ser menos amada, de sorte que no consenso dos dois haja integro e perfeito casamento. A não ser que alguém duvide ser amado primeiro e muito mais pelo Verbo.

Preparada pelo Altíssimo, prometida pelos Patriarcas.



Segunda leitura
Das homilias em louvor da Virgem-Mãe, de São Bernardo de Claraval, abade (sec. XII) São Bernardo de Claraval

A Deus competia nascer de uma virgem unicamente; e era claro que do parto da Virgem somente viesse Deus á luz. Por este motivo, o Criador dos homens, para se fazer homem nascido de ser humano, devia dentre todas escolher, ou melhor, criar para si a mãe tal, como sabia convir a si e ser-lhe agradável em tudo.
Quis então que fosse uma virgem. Da imaculada nascendo o imaculado, aquele que purificaria as máculas de todos.
Ele a quis também humilde, donde proviesse o manso e humilde de coração, que iria mostrar a todos o necessário e salubérrimo exemplo das virtudes. Concedeu, pois, á Virgem a fecundidade, a ela a quem já antes inspirava o voto de virgindade e lhe antecipara o mérito da humildade.
A não ser assim, como poderia o anjo dizê-la cheia de graça, se algo, por mínimo que fosse, faltasse á graça? Assim, aquela que iria conceber e dar á luz o Santo dos santos, recebeu o dom da virgindade para que fosse santa no corpo, e, para ser santa no espírito, recebeu o dom da humildade.
Esta Virgem régia, ornada com ás jóias das virtudes, refulgente pela dupla majestade da alma e do corpo, por sua beleza e formosura conhecida nos céus, atraiu sobre si o olhar dos anjos. Até atraiu sobre si a atenção do Rei, que a desejou e arrebatou das alturas até si o mensageiro celeste.
O anjo foi enviado á Virgem (Lc 1, 26-27). Virgem na alma, virgem na carne, virgem pelo propósito, virgem enfim tal como descreve o Apóstolo, santa de espírito e de corpo. Não pouco antes, nem por acaso encontrada, mas eleita desde o princípio dos séculos, conhecida pelo Altíssimo e, preparada para ele, guardada pelos anjos, prefigurada pelos patriarcas, prometida pelos profetas.