quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A noite silenciosa, a noite absurda, a noite esplêndida




Atualizamos hoje o Mistério da Noite Santa de Natal, noite em que o silêncio do mundo se fez porta voz do evento acontecido em Belém. Parece que esta noite fala por si mesma. Na região do grande evento de salvação, o silêncio imperava. A humanidade silenciosa, ou melhor, barulhenta por cauisa da indiferença e do distanciamento de Deus, não acolhe o Salvador "pois não havia lugar para eles na hospedaria." (LC 2, 6)O silêncio desta noite revela para nós o modo, o jeito, a maneira que Deus aparece á humanidade: ele vem no silêncio da noite. Deus desce até nós e nos oferece a sua Presença silenciosa, dando-nos a oportunidade de podermos falar.
Esta noite está envolta no drama do Deus que quis participar da nossa vida e assumiu para Si as nossas misérias. Noite dramática que une céu e terra, a família humana e a família divina. Noite esplendorosa qe dissipa as trevas do mal e decreta a vitória de uma Menino sobre Satánas e o mal. A eterna luz dos homens fez-se acessível. Esta Boa-Nova de Salvação beira ao absurdo, pois o Criador de toda a humanidade decide sair da nuvem de glória, que despertava no homem certo pavor e medo, para vir morar em nosso meio. A glória de Deus que rasgava o céu agora tem um novo endereço: Deus está no curral de Belém. Não tem um berço digno de Si, tem apenas um local preparado ás pressas por José e Maria que O reclinam nas palhas de um manjedorura.O Menino-Deus experimenta a trágica realidade de tantos e tantas que vivem na miséria e não tem moradia digna. O Absoluto rompe o silêncio desta noite e como qualquer recém - nascido, chora. O grito que brada aos céus é a realidade profunda que os seres humanos experimentam na hora decisiva do nascimento. O medo nos acompanha desde o inicio. Medo de que? Medo de sair da segurança do ventre materno. Medo de enfrentar as dificuldades da vida. Medo de ser um para o outro. O Menino chora! Mais porque chora? Chora pelos pecados dos homens que á partir daquele momento Ele assume para Si. Chora pela miséria humana, pela indiferença dos homens, pela falta de sensibilidade dos corações que aguardavam o Messias, mas que o perderam vendo-O escapar na multidão e não perceberam que ali, na barriga da Virgem, o Salvador da humanidade passava e esperava por eles.
A cena que vemos no presépio de Belém é a cena da fragilidade por exelência. Uma mulher grávida de Deus, gemendo de dores de parto, sofre com as dores fisícas, mas o que dói mesmo é saber que para o seu filho não deram abrigo. E ela irá sofrer mais tarde, pois o abrigo que agora não deram, chegará 33 anos mais tarde e será o abrigo da cruz. Dor e sofrimento se misturam pela alegria e pelo gáudio do nascimento. Nasceu o Senhor! Nasceu o Rei de Israel, o Salvador!Por este motivo o silêncio mais uma vez é quebrado. O coro celeste aclama: "Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados"( Lc 2, 14)A luz que dissipa o erro nasce e revela o clarão da glória do Pai. Tal evento de salvação nos faz seguir o convite de Santo Agostinho que diz: " Desperta, ó homem; por tua causa Deus se fez homem." (Serm. 185: PL 38, 997-999) Sim, não cochilemos diante de tamanha dádiva! Não deixemos que Ele passe por nós! Acorramos á Ele. Sigamos o exemplo dos pastores que foram ver em Belém o acontecimento que mudou a história da humanidade. Corramos, nos coloquemos á caminho e vejamos o que lá aconteceu. Quando chegarmos lá encontraremos Aquele que fora predito pelos profetas, esperado pelas nações, acolhido pelos corações generosos da Virgem e de São José. Se Deus afastou de nós o medo e a reistência de sua glória, agora o que temos que fazer é amá-LO e acolhê-LO para que o seu amor infinito fira o nosso coração e nos faça gritar: " Sim, Senhor, somos teus e queremos viver na tua comunhão!" Amém.

Sem. Rafael Viana Lima
III ano de Flosofia do Seminário Arquidiocesano de São José

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Resposta cristã ao cientificismo ateu - 2ª pregação do Advento 2010




10-12-2010- Segunda Pregação do Advento



“A VIDA ETERNA QUE A VÓS ANUNCIAMOS” (1 Jo 1,2)

1. Secularização e secularismo

Nesta meditação, veremos o segundo obstáculo que a evangelização no mundo ocidental moderno encontra: a secularização. No Motu Proprio com o qual o Papa criou o Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, é dito que este “está a serviço das Igrejas particulares, especialmente naqueles territórios de antiga tradição cristã onde se manifesta mais claramente o fenômeno da secularização”.

A secularização é um fenômeno complexo e ambivalente. Pode significar a autonomia das realidades terrenas e a separação entre o reino de Deus e o reino de César e, neste sentido, não só não é contra o Evangelho, mas encontra nele uma de suas raízes profundas. Pode, no entanto, indicar também todo um conjunto de atitudes contrárias à religião e à fé, pelo qual é preferível usar o termo secularismo. O secularismo está para secularização assim como o cientificismo para a ciência e o racionalismo à racionalidade.

Cuidando dos obstáculos ou desafios que a fé encontra no mundo moderno, referimo-nos exclusivamente a este sentido negativo da secularização. Mesmo assim delimitada, no entanto, a secularização tem muitas faces, dependendo dos campos em que se manifesta: a teologia, ciência, ética, a hermenêutica bíblica, a cultura em geral, a vida cotidiana. Nesta meditação, tomo o termo em seu primordial. A secularização, como o secularismo, na verdade, derivam da palavra saeculum, que no uso comum termina por indicar o tempo presente (aeon atual, segundo a Bíblia), por oposição à eternidade (aeon futuro, “séculos dos séculos”, da Bíblia. NT: um período de tempo extremamente longo e indefinido). Nesse sentido, o secularismo é sinônimo de temporalidade, de redução do real somente à dimensão terrena.

A queda do horizonte da eternidade ou da vida eterna tem, sobre a fé cristã, o mesmo efeito que a areia jogada sobre uma chama: a sufoca, a apaga. A crença na vida eterna é uma das condições de possibilidade da evangelização. “Se é só para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, somos, dentre todos os homens, os mais dignos de compaixão”. (1 Coríntios 15,19).

2. A ascensão e a queda da idéia de eternidade

Recordemos brevemente a história da crença na vida após a morte, vai nos ajudar a medir a novidade trazida pelo Evangelho neste campo. Na religião hebraica do Antigo Testamento, essa crença se afirma tardiamente. Somente depois do exílio, diante do fracasso das expectativas temporais, nasce a ideia da ressurreição da carne e de uma recompensa após a morte para os justos, e ainda assim não todos a adotam (os saduceus, como sabemos, não partilham tal crença).

Isso desmente clamorosamente a tese daqueles (Feuerbach, Marx, Freud) que explicam a crença em Deus com o desejo de uma recompensa eterna, como projeção no além de expectativas temporais frustradas. Israel acreditou em Deus, muitos séculos antes do que em uma recompensa eterna no além! Não é, portanto, o desejo de uma recompensa eterna que produziu a fé em Deus, mas é a fé que produziu a crença em uma recompensa pós morte.

No mundo bíblico, temos a plena revelação da vida eterna com a vinda de Cristo. Jesus não estabelece a certeza da vida eterna sobre a natureza do homem, a imortalidade da alma, mas sobre “o poder de Deus”, que é um "Deus não de mortos, mas de vivos" (Lc 20, 38). Depois da Páscoa, a este fundamento teológico, os apóstolos acrescentarão o cristológico: a ressurreição de Cristo dentre os mortos. Nela, o Apóstolo fundou a fé na ressurreição da carne e na vida eterna: “Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Mas, na realidade, Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (1 Cor 15, 12.20).

Também no mundo greco-romano assiste-se a uma evolução na concepção de vida após a morte. A mais antiga ideia é a de que a verdadeira vida termina com a morte; depois dessa existe somente um simulacro de vida, num mundo de sombras. Uma novidade se registra com o aparecimento religião órfico-pitagórica. De acordo com ela, o verdadeiro eu do homem é a alma, que, libertada da prisão (sema) do corpo (soma), pode finalmente viver sua verdadeira vida. Platão dará uma dignidade filosófica a esta descoberta, baseando-a na natureza espiritual e, portanto, imortal, da alma [1].

Essa crença permanecerá, no entanto, sendo minoritária, reservada aos iniciados nos mistérios e aos seguidores de escolas filosóficas especiais. Para a massa, persistirá a antiga crença de que a vida real termina com a morte. São conhecidas as palavras que o imperador Adriano dirigi a si próprio próximo de morrer:

“Pequena alma, alma terna e inconstante,
companheira do meu corpo, de que foste hóspede,
vais descer àqueles lugares pálidos,
duros e nus, onde deverás renunciar aos jogos de outrora.
Por um momento, contemplemos juntos ainda os lugares familiares,
os objetos que certamente nunca mais veremos...” [2].

Entende-se neste contexto o impacto que devia ter a mensagem cristã de vida após a morte infinitamente mais plena e mais alegre do que a da terra; também podemos entender por que a ideia e os símbolos da vida eterna são tão comuns nas sepultura cristãs das catacumbas romanas.

Mas o que aconteceu à ideia cristã de uma vida eterna para a alma e para o corpo depois de ter triunfado sobre a ideia pagã de “escuridão além da morte”? Ao contrário do momento atual, no qual o ateísmo é primariamente expresso na negação da existência de um Criador, no século XIX, ele se expressava na negação da vida após a morte. Acolhendo a afirmação de Hegel, segundo a qual “os cristãos desperdiçam no céu a energia destinada à terra”, Feuerbach e principalmente Marx combateram a crença na vida após a morte, sob o pretexto de que aliena o compromisso terreno. À ideia de uma sobrevivência pessoal em Deus, se substitui uma ideia de sobrevivência na espécie e na sociedade do futuro.

Pouco a pouco, recaiu sobre a palavra eternidade a suspeita e o silêncio. O materialismo e o consumismo completaram a obra nas sociedades opulentas, fazendo parecer inconveniente que se fale ainda de eternidade entre pessoas cultas e em sintonia com os tempos. Tudo isso provocou claramente um retrocesso na fé dos crentes que, com o tempo, fez-se tímida e reticente sobre este ponto. Quando ouvimos o último sermão sobre a vida eterna? Continuamos a rezar o Credo: “Et expecto resurrectionem mortuorum et vitam venturi saeculi” (“E Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir”), mas sem dar muito peso a estas palavras. Kierkegaard tinha razão quando escreveu: "A vida após a morte tornou-se uma piada, uma necessidade tão incerta que não só ninguém respeita, mas nem mesmo se cogita que exista, ao ponto que se divertem com o pensamento de que houve um tempo em que esta ideia transformava a toda a existência” [3].

Qual é o efeito prático desse eclipse da ideia de eternidade? São Paulo refere-se à intenção daqueles que não acreditam na ressurreição dos mortos: “Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos” (1 Cor. 15,32). O desejo natural de viver sempre, distorcido, torna-se um desejo ou frenesi de viver bem, ou seja, agradavelmente, mesmo que às custas dos outros, se necessário. Toda a terra se torna o que Dante disse da Itália da sua época: "o canteiro que tão nos faz ferozes". Perdido o horizonte da eternidade, o sofrimento humano parece dupla e irremediavelmente absurdo.

3. A eternidade: uma esperança e uma presença

Ainda a propósito do secularismo, como para o cientificismo, a resposta mais eficaz não é combater o erro contrário, mas fazer brilhar novamente diante dos homens a certeza da vida eterna, confiando na força intrínseca que possui a verdade quando é acompanhada pelo testemunho de vida. "Sempre se poderá negar uma ideia com outra – escreve um antigo Padre – e uma opinião pode ser oposta à outra; mas o que poderá se opor a uma vida?”

Devemos também aproveitar a correspondência de tal verdade ao desejo mais profundo, ainda que reprimido, do coração humano. A um amigo que o repreendeu, quase como se seu desejo de eternidade fosse uma forma de orgulho e arrogância, Miguel de Unamuno, que não era um apologista da fé, disse em uma carta:

“Eu não estou dizendo que merecemos uma vida depois da morte, nem que a lógica nos mostre isso; estou dizendo que a necessito, mereça ou não, e nada mais. Estou dizendo que o que é passageiro não me satisfaz, que tenho sede de eternidade, e que, sem ela, tudo dá no mesmo para mim. Eu necessito disso, necessito! E, sem isso, nem a alegria de viver quer dizer coisa alguma. É muito cômodo dizer ‘temos de viver, temos de estar contentes com a vida!’ E os que não nos contentamos com ela?” [4].

Não é que desejasse a eternidade - acrescentava na mesma ocasião - desprezando o mundo e a vida aqui embaixo: “Eu amo tanto a vida que, perdê-la, parece-me o pior dos males. Não amam realmente a vida aqueles que vivem o dia a dia, sem preocupar-se por saber se vão perdê-la totalmente ou não”. Santo Agostinho dizia a mesma coisa: Cui non datur semper vivere, quid prodest bene vivere?, “De que serve viver bem, se não nos é dado viver para sempre?” [5]. “Tudo, exceto o eterno, é vão ao mundo”, cantou um dos nossos poetas [6].

Aos homens do nosso tempo, que cultivam no fundo do coração esta necessidade de eternidade, sem talvez ter a coragem de confessar a outros e nem para si mesmo, podemos repetir o que Paulo disse aos atenienses: “Pois bem, aquilo que adorais sem conhecer, eu vos anuncio” (cf. At 17,23).

A resposta cristã ao secularismo, no sentido que entendemos aqui, não se baseia, como para Platão, em uma ideia filosófica - imortalidade da alma - mas em um evento. O Iluminismo tinha colocado a famosa pergunta de como é possível atingir a eternidade, enquanto você estiver no tempo, e como dar um ponto de partida histórico para uma consciência eterna [7]. Em outras palavras: como se pode justificar a alegação da fé cristã de prometer uma vida eterna e de ameaçar com uma pena igualmente eterna por atos realizados no tempo.

A única resposta válida para este problema é aquela baseada na fé na encarnação de Deus. Em Cristo, o eterno entrou no tempo, manifestado na carne; diante dele é possível tomar uma decisão para a eternidade. É assim que o evangelista João fala da vida eterna: “Vida eterna que a vós anunciamos, que estava junto do Pai e que se tornou visível para nós” (1 Jo 1, 2).

Para o crente, a eternidade não é, como se vê, somente uma esperança, é também uma presença. Realizamos a experiência cada vez que fazemos um verdadeiro ato de fé em Cristo, porque todo aquele que nele crê “já possui a vida eterna” (cf. 1 Jo 5,13), e toda vez que recebemos a comunhão, onde nos é dado “o penhor da glória futura” (futurae gloriae nobis pignus datur); toda vez que escutamos as palavras do Evangelho são “palavras de vida eterna "(Jo 6,68). São Tomás de Aquino também afirma que “a graça é o início da glória” [8].

Esta presença da eternidade no tempo é chamada Espírito Santo. Ele é descrito como “garantia da nossa herança” (Ef 1,14; 2 Coríntios 5,5), e foi dada a nós porque, tendo recebido as primícias, nós ansiamos pela plenitude. “Cristo - escreve Santo Agostinho - nos deu o penhor do Espírito Santo com o qual ele, que não poderia enganar-nos, quis ter certeza do cumprimento de sua promessa. O que ele prometeu? Ele prometeu a vida eterna, cuja garantia é o Espírito Santo que nos foi dado ” [9].

4. Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos?

Entre a vida de fé no tempo e a vida eterna no tempo há uma relação semelhante à que existe entre a vida do embrião no seio materno e a do bebê, uma vez nascido. Cabasilas escreve:

“Este mundo traz, em gestação, o homem interior, novo, criado segundo Deus, para que ele, formado, moldado e tornado perfeito, não seja gerado àquele mundo perfeito que não envelhece. Como o embrião que, enquanto está na existência escura e líquida, a natureza prepara à vida na luz, é assim com os santos [...]. Para o embrião, no entanto, a vida futura é absolutamente futura: não chega a ele nenhum raio de luz, nada do que é desta vida. Não é assim para nós, do momento que o século futuro foi como derramado e misturado ao presente [...] Então, agora já é concedido aos santos não só dispor-se e preparar-se à vida, mas viver e atuar” [10].

Há uma história que ilustra essa comparação. Havia dois gêmeos, um menino e uma menina, tão inteligentes e precoces que, mesmo no útero materno, já conversavam entre si. A menina perguntava ao irmão: “Pra você, haverá vida após o nascimento?”. Ele respondia: “Não seja ridícula. O que faz você pensar que exista algo fora desse espaço estreito e escuro em que nos encontramos? A menina, criando coragem, insistia: “Talvez haja uma mãe, alguém que nos colocou aqui e que vai cuidar de nós.” Ele disse: “Você vê alguma mãe em algum lugar? O que você vê é tudo que existe”. Ela de novo: “Mas você não sente, às vezes, uma pressão no peito que aumenta dia a dia e nos impele para frente?”. “Pensando bem, ele respondeu, é verdade, sinto isso o tempo todo”. “Veja, concluiu, triunfante, a irmã mais nova, essa dor não pode ser para nada. Eu acho que está nos preparando para algo maior do que este pequeno espaço”.

Podemos usar esta simpática história quando tivermos de anunciar a vida eterna para as pessoas que perderam a fé nela, mas conservaram a nostalgia e talvez esperam que a Igreja, como aquela menina, as ajude a acreditar.

Há perguntas que os homens não deixam de fazer desde que o mundo é mundo e os homens de hoje não são exceção: “Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos”. Na sua “História Eclesiástica do Povo Inglês”, Beda, o Venerável, relata como a fé cristã entrou no norte da Inglaterra. Quando os missionários, vindos de Roma, chegaram a Northumberland, o rei Edwin convocou um conselho de notáveis para decidir se permitiam a eles ou não, pelo menos, divulgar a nova mensagem. Um deles se levantou e disse:

“Suponha, ó rei, esta cena. Você se senta para jantar com seus ministros e líderes: é inverno, o fogo arde no meio e aquece a sala, enquanto lá fora, a tempestade grita e a neve cai. Um passarinho entra pela abertura de uma parede e sai imediatamente do outro lado. Enquanto está dentro, está protegido da tempestade de inverno mas, depois de desfrutar o calor rapidamente, apenas desaparece de vista, perdendo-se no inverno escuro de onde veio. Assim parece ser a vida do homem na terra: ignoramos tudo o que a segue e que a precedeu. Se esta nova doutrina nos traz algo mais seguro sobre isso, acho que deve ser acolhida” [11].

Quem sabe se a fé cristã não pode voltar à Inglaterra e ao continente europeu pela mesma razão pela que fez sua entrada: como a única que tem uma resposta definitiva a dar às grandes interrogações da vida terrena. A melhor oportunidade de transmitir esta mensagem são os funerais. Neles, as pessoas estão menos distraídas que nos outros ritos de passagem (Batismo, Casamento); eles questionam o seu próprio destino. Quando se chora por um ente querido, se chora também por si mesmo.

Certa vez ouvi um interessante programa da BBC inglesa sobre os chamados “funerais seculares”, com a gravação ao vivo de um deles. Em certo momento o mestre de cerimônias dizia aos presentes: “Nós não devemos ficar tristes. Viver uma vida boa, satisfatória, por 70 anos (a idade da falecida), é algo pelo qual se deveria ser grato”. “Grato a quem?, me perguntava. Tais funerais não fazem mais que deixar evidente a derrota total do homem frente à morte.

Os sociólogos e estudiosos da cultura, chamado a explicar o fenômeno dos funerais seculares ou “humanistas”, viam a causa da propagação desta prática em alguns países do norte da Europa no fato de que estes funerais religiosos envolvem os presentes numa fé que não se sentem à vontade para compartilhar. A proposta sugerida era: a Igreja, nos funerais, deveria evitar qualquer menção a Deus, à vida eterna, a Jesus Cristo morto e ressuscitado, e limitar seu papel ao de “organizadora natural e experiente dos ritos de passagem”! Em outras palavras, resignar-se à secularização inclusive da morte!

5. Vamos à casa do Senhor!

Não precisamos de uma fé renovada na eternidade somente para evangelizar, isto é, para o anúncio aos outros, precisamos dela, mesmo antes, para dar um novo impulso à nossa caminhada rumo à santidade. O enfraquecimento da ideia de eternidade atinge também os crentes, diminuindo neles a capacidade de enfrentar com coragem o sofrimento e as provas da vida.

Pensemos em um homem com uma balança na mão: uma daquelas balanças se equilibram com uma mão e tem de um lado um prato onde se colocam as coisas para pesar e do outro uma barra que marca o peso ou a medida. Se cai no chão ou perde a medida, tudo o que e colocado no prato levanta a barra e inclina a balança. Até um punhado de penas.

Assim somos nós quando perdemos o peso, a medida de tudo que é a eternidade: as coisas e os sofrimentos terrenos levam facilmente nossa alma ao chão. Tudo parece muito pesado, excessivo. Jesus dizia: “Se tua mão ou teu pé te leva à queda, corta e joga fora. É melhor entrares na vida tendo só uma das mãos ou dos pés do que, com duas mãos ou dois pés, seres lançado ao fogo eterno. Se teu olho te leva à queda, arranca-o e joga fora. É melhor entrares na vida tendo um olho só do que, com os dois, seres lançado ao fogo do inferno”. (cf. Mt 18,8-9). Mas nós, tendo perdido de vista a eternidade, achamos já excessivo que se nos peça fechar os olhos a um espetáculo imoral.

São Paulo se atreve a escrever: “Com efeito, a insignificância de uma tribulação momentânea acarreta para nós um volume incomensurável e eterno de glória. Isto acontece porque miramos às coisas invisíveis e não às visíveis. Pois o que é visível é passageiro, mas o que é invisível é eterno” (2 Cor 4,17-18). O peso da tribulação é “leve, porque provisório, o da glória é enorme exatamente por ser eterno”. Por esta razão, o mesmo Apóstolo pode dizer: “Eu penso que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que há de ser revelada em nós.” (Rm 8:18).

O cardeal Newman, que foi escolhido como mestre especial neste Advento, obriga-nos a adicionar uma verdade que falta na reflexão realizada até agora sobre a eternidade. Ele faz isso com o poema "O Sonho de Gerôncio", com música do grande compositor inglês Edgar Elgar. Uma verdadeira obra-prima pela profundidade de pensamento, pela inspiração e dramaticidade lírica.

Descreve o sonho de um ancião (o que significa o nome Gerontius-Gerôncio) que se sente perto do fim. A seus pensamentos sobre o sentido da vida, a morte, o abismo do nada no qual se precipita, se sobrepõem os comentários dos espectadores, a voz orante da Igreja: "Parte desse mundo, alma cristã” (proficiscere, alma christiana ), as vozes de contestação de anjos e demônios que pesam sua vida e reclamam sua alma. É particularmente bela e profunda a descrição do momento da morte e do despertar no outro mundo:

“Fui dormir, e agora estou renovado.
Um refresco estranho: por que eu sinto em mim
Uma leveza indescritível, e um sentido
De liberdade, como se eu finalmente fosse
E nunca tinha sido antes. Que paz!
Já não ouço mais que a incessante batida do tempo,
Não, nem me falta a minha respiração, ou o pulso;
Não é um momento diferente do outro” [12].

As últimas palavras que a alma pronuncia no poema são aquelas com as quais chega serena e até ansiosa ao Purgatório:

Lá cantarei o meu Senhor e amor ausente:
Leve-me embora,
Que, mais cedo eu possa subir, e ir acima,
E vê-Lo na verdade do dia eterno.” [13].

Para o imperador Adriano, a morte era a passagem da realidade às sombras, para o cristão John Newman ela é a passagem das sombras à realidade ex umbris et imaginibusin veritatem como quis que fosse escrito sobre seu túmulo.

Qual é, então, a verdade que Newman nos obriga a não manter em silêncio? Que a passagem do tempo à eternidade não é retilínea e igual para todos. Há um juízo para enfrentar, um juízo que pode ter dois resultados muito diferentes, o inferno ou o paraíso. A espiritualidade de Newman é austera, inclusive rigorosa, como a do Dies irae, mas que salutar nessa época inclinada a tomar tudo como brincadeira, como dizia Kierkegaard, com o pensamento da eternidade!

Elevemos o nosso pensamento à eternidade com renovado ímpeto. Repitamos a nós mesmos as palavras do poeta: “Tudo, exceto o eterno, o mundo é em vão.” No saltério hebraico há um grupo de salmos, chamados de “salmos de ascensão” ou “cânticos de Sião”. Eram os salmos que os peregrinos israelitas cantavam quando saíam em peregrinação à cidade santa, Jerusalém. Um deles começa assim: “Fiquei alegre, quando me disseram: Vamos à casa do Senhor!”. Estes salmos de ascensão tornaram-se os salmos de quem, na Igreja, segue a caminho da Jerusalém celeste; são os nossos salmos. Comentando sobre as palavras iniciais do salmo, Santo Agostinho dizia a seus seguidores:

“Corremos porque vamos para a casa do Senhor, corremos porque uma corrida como essa não cansa; porque chegaremos a uma meta onde não existe cansaço. Corramos à casa do Senhor e nossa alma se alegra por aqueles que repetem essas palavras. Estes viram primeiro que nós a pátria, os apóstolos a viram e nos disseram: “Corram, apressem-se, venham atrás! Vamos para a casa do Senhor!” [14].

Temos diante de nós, nesta capela, uma esplêndida representação em mosaico da Jerusalém celeste, com Maria, os apóstolos e uma longa procissão de santos orientais e ocidentais. Eles repetem silenciosamente este convite. Aceitemo-lo e levemo-lo conosco nesta jornada e ao longo da vida.


***

[1] Cf. M. Pohlenz, L’uomo greco, Florença 1967, p. 173ss.

[2] Animula vagula, blandula, In ‘Memórias de Adriano’, p. 251, Editora Circulo do Livro, 1974.

[3] S. Kierkegaard, Postilla conclusiva, 4, in Opere, a cura di C. Fabro, Firenze 1972, p. 458.

[4] Miguel de Unamuno, “Cartas inéditas de Miguel de Unamuno e Pedro Jiménez Ilundain,” ed. Hernán Benítez, Revista de la Universidad de Buenos Aires, vol. 3, no. 9 (Gennaio-Marzo 1949), pp. 135. 150.

[5] S. Agostinho, Tratado sobre o Evangelho de João, 45, 2 (PL, 35, 1720).

[6] Antonio Fogazzaro, “A Sera,” in Le poesie, Milano, Mondadori, 1935, pp. 194–197.

[7] G.E. Lessing, Über den Beweis des Geistes und der Kraft, ed. Lachmann, X, p.36.

[8] S. Tomás deAquino, Somma teologica, II-IIae, q. 24, art.3, ad 2.

[9] S. Agostinho, Sermo 378,1 (PL, 39, 1673).

[10] N. Cabasilas, Vida em Cristo, I,1-2, UTET, 1971, pp.65-67.

[11] Beda, o Venerável, Historia ecclesiastica Anglorum, II, 13.

[12] O sonho de Gerôncio, in Newman Poeta, a cura di L. Obertello, Jaka Book, Milano 2010, p.124.

[13] O sonho de Gerôncio, in Newman Poeta, a cura di L. Obertello, Jaka Book, Milano 2010, p.124.

[14] S. Agostino, Enarrationes in Psalmos 121,2 (CCL, 40, p. 1802).

Resposta cristã ao cientificismo ateu - 1ª pregação do Advento 2010 Frei Raniero Cantalamessa




03-12-2010- Primeira Pregação do Advento



"QUANDO OLHO PARA O TEU CÉU, VEJO A LUA E AS ESTRELAS QUE CRIASTE: QUE COISA É O HOMEM?" (SAL 8, 4-5)



1. A tese do cientificismo ateu

As três meditações deste Advento 2010 querem ser uma pequena contribuição à necessidade da Igreja que levou o Santo Padre Bento XVI a instituir o Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização e escolher este tema para a próxima Assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos: Nova evangelizatio ad cristianam fidem tradendam - A nova evangelização para a transmissão da fé cristã.

A intenção é identificar alguns "nós" ou obstáculos que fazem muitos países de antiga tradição cristã "refratários" à mensagem do Evangelho, como diz o Santo Padre no Motu Proprio com o qual estabeleceu o novo Conselho [1]. Os "nós" ou os desafios que eu pretendo levar em consideração e aos quais eu gostaria de tentar dar uma resposta de fé são o cientificismo, o secularismo e o racionalismo. O apóstolo Paulo classifica esses desafios como "as muralhas e fortalezas que se levantam contra o conhecimento de Deus" (cf. 2 Cor 10:4).

Nesta primeira meditação examinemos o cientificismo. Para compreender o que se entende com este termo podemos começar pela descrição feita por João Paulo II:

"Outro perigo a ser considerado é o cientificismo. Esta concepção filosófica recusa-se a admitir, como válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências positivas, relegando para o âmbito da pura imaginação tanto o conhecimento religioso e teológico, como o saber ético e estético." [2].

Podemos resumir assim a tese principal desta corrente de pensamento:

Primeira tese. A ciência e, particularmente a cosmologia, a física e a biologia, são a única forma objetiva e séria de conhecimento da realidade. "As sociedades modernas, escreveu Monod, estão construídas sobre a ciência. Devem a ela sua riqueza, sua potência e a certeza de que a riqueza e o poder ainda serão maiores e mais acessíveis amanhã ao homem, se ele o quiser [...]. Equipadas com todo o poder, dotadas de toda riqueza que a ciência oferece, nossas sociedades ainda tentam viver e ensinar sistemas de valores, já prejudicados pela mesma ciência subjacente" [3].

Segunda tese. Esta forma de conhecimento é incompatível com a fé que se baseia em pressupostos que não são nem demonstráveis nem refutáveis

Nesta linha, o ateu militante R. Dawkins chega ao ponto de chamar de "analfabetos" os cientistas que se dizem crentes, esquecendo-se de tantos cientistas mais famosos do que ele que já se declararam e continuam declarando-se crentes.

Terceira tese. A ciência já demonstrou a falsidade ou, pelo menos, a inutilidade da hipótese de Deus. É a afirmação que recebeu ampla cobertura dos meios de comunicação do mundo meses atrás, à raiz de uma declaração do astrofísico inglês Stephen Hawking. Este, ao contrário do que já havia escrito anteriormente, sustenta em seu último livro The Grand Design, que o conhecimento advindo da física torna desnecessário acreditar numa divindade criadora do universo: "a criação espontânea é a razão pela qual as coisas existem".

Quarta tese. Quase a totalidade ou a grande maioria dos cientistas são ateus. Esta é a afirmação do ateísmo científico militante, que tem em Richard Dawkins, autor do livro God's Delusion (Deus, um delírio), seu mais ativo propagador.

Todos estes argumentos se revelam falsos, não do ponto de vista do raciocínio a priori ou da argumentação teológica e da fé, mas da própria análise dos resultados da ciência e das opiniões de vários cientistas ilustres do passado e do presente. Um cientista do calibre de Max Planck, o pai da física quântica, diz sobre a ciência aquilo que Agostinho, Tomás de Aquino, Pascal, Kierkegaard e outros já tinham afirmado sobre a razão: "A ciência leva a um ponto, além dele não pode mais dirigir" [4].

Não repetirei a refutação dos argumentos anunciados que já foi feita por cientistas e filósofos competentes. Cito, por exemplo, a crítica pontual de Roberto Timossi, no livro L'illusione dell'ateismo. Perché la scienza non nega Dio (A ilusão do ateísmo. Porque a ciência não nega Deus), que tem apresentação do cardeal Angelo Bagnasco (Edições São Paulo 2009). Limito-me a uma observação elementar. Na semana em que a mídia espalhou a declaração acima, de que a ciência tornou desnecessária a hipótese de um criador, eu me vi na necessidade, na homilia de domingo, de explicar a cristãos muito simples de uma cidade de Reatino onde estava o erro fundamental de cientistas e ateus e porque não deveriam ficar impressionados com a sensação despertada por essa declaração. Fiz isso com um exemplo que pode ser útil repetir aqui em um contexto tão diferente.

"Existem aves noturnas, como a coruja, cujos olhos são feitos para ver no escuro da noite, não de dia. A luz do sol cega. Estes pássaros sabem tudo e se movem com agilidade no mundo noturno, mas não são ninguém no mundo diurno. Vamos adotar, por um momento, o tipo de fábulas nas quais os animais falam uns com os outros. Suponha que uma águia faça amizade com uma família de corujas e converse com elas sobre o sol: como ele ilumina tudo, como, sem ele, tudo iria mergulhar no escuro e no frio, como seu próprio mundo noturno não existiria sem o sol. O que diria a coruja? "Você mente! Nunca vi o seu sol. Nos movemos muito bem e conseguimos alimento sem ele. Seu sol é uma hipótese inútil, não existe".

É exatamente isso que faz o cientista ateu quando diz: "Deus não existe". Julga um mundo que não conhece, aplica suas leis a um objeto que está fora do seu alcance. Para ver Deus é necessário olhar com uma perspectiva diferente, aventurar-se fora da noite. Neste sentido, ainda é válida a antiga afirmação do salmista: "Diz o insensato: Deus não existe".

2. Não ao cientificismo, sim à ciência

A rejeição do cientificismo não deve, naturalmente, levar à rejeição ou à desconfiança na ciência, assim como uma rejeição do racionalismo não nos leva a rejeitar a razão. Fazer o contrário seria um desserviço à fé, antes mesmo que à ciência. A história tem nos ensinado dolorosamente onde nos leva uma atitude como essa.

De uma atitude aberta e construtiva à ciência, nos deu um exemplo luminoso o novo beato John Henry Newman. Nove anos depois da publicação da obra de Darwin sobre a evolução das espécies, quando não poucas pessoas ao redor se mostravam turbadas e perplexas, ele assegurava, exprimindo um juízo que antecipava o juízo atual da Igreja sobre a não incompatibilidade da teoria com a fé católica. Vale a pena escutar novamente trechos centrais da sua carta ao canônico J. Walker, que ainda conservam grande parte de sua validade:

"Essa [a teoria de Darwin] não me assusta [...] Não me parece que se negue a criação pelo fato do Criador, milhões de anos atrás, ter imposto leis à matéria. Não negamos nem delimitamos o Criador por ter criado a ação autônoma que deu origem ao intelecto humano dotado quase de um talento criativo; menos ainda negamos ou delimitamos seu poder se acreditamos que Ele tenha assinado leis à matéria tais como plasmar e construir mediante a instrumentalidade cega através de eras inumeráveis o mundo como o vemos hoje [...]. A teoria do senhor Darwin não deve ser necessariamente ateia, que ela seja verdadeira ou não; pode simplesmente estar surgindo uma ideia mais alargada da Divina Presciência e Capacidade... À primeira vista, não vejo como a ‘evolução casual de seres orgânicos' seja incoerente com o plano divino - É casual para nós, não para Deus" [5].

Sua grande fé permitia que Newman visse com grande serenidade as descobertas científicas presentes ou futuras. "Quando uma enxurrada de fatos, reais ou presumidos, surge enquanto outros já se avizinham, todos os crentes, católicos ou não, se sentem chamados a examinar o significado destes fatos" [6]. Ele via nestas descobertas "uma conexão indireta com as opiniões religiosas". Um exemplo desta conexão, acredito eu, é o próprio fato de que, no mesmo ano em que Darwin elaborava a teoria da evolução das espécies, ele, independentemente, anunciava sua doutrina do "desenvolvimento da doutrina cristã". Referindo-se à analogia, neste ponto, entre a ordem natural e física e a moral, ele escreveu: "Como o Criador descansou no sétimo dia após o trabalho realizado e ainda hoje ele ‘continua agindo', assim ele comunicou de uma vez por todas o Credo no princípio e continua favorecendo seu desenvolvimento e garantindo seu crescimento" [7].

Da atitude nova e positiva da Igreja católica em relação à ciência é expressão concreta a Academia Pontifícia das Ciências, na qual cientistas eminentes de todo o mundo, crentes e não crentes, encontram-se para expor e debater suas ideias sobre problemas de interesse comum para a ciência e para a fé.

3. O homem para o universo ou o universo para o homem?

Mas, repito, não é minha intenção fazer aqui uma crítica geral do cientificismo. O que gostaria de destacar é um aspecto particular de algo que tem um impacto direto e decisivo sobre a evangelização: trata-se da posição que o homem ocupa na visão do cientificismo ateu.

Há agora uma corrida entre os cientistas não crentes, especialmente os biólogos e cosmólogos, que vai mais longe ao afirmar a total marginalização e insignificância do homem no universo e mesmo no grande mar da vida. "A antiga aliança é quebrada - Monod escreveu -; o homem finalmente se sabe sozinho na imensidão do Universo do qual emergiu por acaso. Seu dever, como seu destino, não está escrito em nenhum lugar" [8]. "Sempre pensei - afirma outro - ser insignificante. Conhecendo as dimensões do Universo não chego a compreender quanto o sou verdadeiramente... Somos somente um pouco de lama sobre um planeta que pertence ao sol" [9].

Blaise Pascal refutou de antemão esta tese com um argumento que ainda mantém seu vigor:

"O homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza; mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para o aniquilar: um vapor, uma gota de água, bastam para o matar. Mas quando o universo o aniquilasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata, porque sabe que morre, e a superioridade que o universo tem sobre ele; o universo não sabe nada disso." [10].

A visão cientificista da realidade, junto com o homem, retira subitamente do centro do universo inclusive Cristo. Ele é reduzido, por usar uma expressão de M. Blondel, a "um acidente histórico, isolado do cosmo como um episódio postiço, um intruso ou um perdido na imensidão hostil e esmagadora do Universo" [11].

Esta visão do homem começa a ter reflexos práticos na cultura e na mentalidade. Explicam-se assim certos excessos do ecologismo que tendem a equiparar os direitos dos animais e até das plantas aos direitos do homem. É sabido que existem animais mais bem cuidados e alimentados que milhões de crianças. A influência é sentida inclusive no campo religioso. Há formas difusas de religiosidade nas quais o contato e a sintonia com a energia do cosmo tomaram o lugar do contato com Deus como caminho de salvação. Aquilo que Paulo dizia de Deus: "Pois nele vivemos, nos movemos e existimos" (At. 17, 28), diz aqui do cosmo material.

De certa forma, trata-se do retorno à era pré-cristã como regime de vida: Deus - universo - homem, à qual a Bíblia e o Cristianismo opuseram o regime: Deus - homem - universo. Uma das acusações mais violentas que o pagão Celso faz aos judeus e cristãos é a de dizer que "há Deus e, logo depois dele, nós, desde que fomos criados por ele à sua semelhança; tudo nos é subordinado: a terra, a água, o ar, as estrelas, tudo existe por nós e está ordenado ao nosso serviço" [12].

Mas há ainda uma profunda diferença: no pensamento antigo, principalmente o grego, o homem, mesmo subordinado ao universo, possui uma ‘dignidade altíssima', como mostrou a obra magistral de Max Pohlenz, "O homem grego" [13]; aqui parece que há prazer em deprimir o homem e tirar dele qualquer pretensão de superioridade sobre o resto da natureza. Mais que "humanismo ateu", pelo menos a partir deste ponto de vista, deveríamos falar, no meu modo de ver, de anti-humanismo, ou mesmo "desumanismo ateu".

Chegamos agora à visão cristã. Celso não estava errado em derivá-la da grande afirmação do Gênesis 1, 26 sobre o homem criado "à imagem e semelhança de Deus [14]. A visão bíblica encontra sua mais esplêndida expressão no Salmo 8:

"Quando olho para o teu céu, obra de tuas mãos,

vejo a lua e as estrelas que criaste:

Que coisa é o homem, para dele te lembrares,

que é o ser humano, para o visitares?

No entanto o fizeste só um pouco menor que um deus,

de glória e de honra o coroaste.

Tu o colocaste à frente das obras de tuas mãos.

Tudo puseste sob os seus pés".

A criação do homem à imagem de Deus possui implicações de certa forma chocantes sobre o conceito de homem que o debate atual nos empurra a trazer à luz. Tudo se baseia na revelação da Trindade trazida por Cristo. O homem é criado à imagem de Deus, o que significa que ele compartilha a essência íntima de Deus que é a relação amorosa entre Pai, Filho e Espírito Santo. É claro que existe uma lacuna ontológica entre Deus e a criatura. No entanto, pela graça, (jamais esqueçam esta afirmação!) esta lacuna é preenchida, de modo que é menos profunda do que entre o homem e o resto da criação.

Somente o homem, de fato, como uma pessoa capaz de relacionar-se, participa da dimensão pessoal e relacional de Deus, é sua imagem. O que significa que, na sua essência, embora a um nível de criatura, é o que, no nível incriado, são o Pai, o Filho e o Espírito Santo, em sua essência. A pessoa criada é "pessoa" propriamente por esse núcleo racional que a torna capaz de acolher o relacionamento que Deus quer estabelecer com ela e, ao mesmo tempo, torna-se um gerador de relações para os outros e o mundo.

4. A força da verdade

Vejamos como se poderia traduzir esta visão cristão da relação homem-universo no campo da evangelização. Primeiro, um prefácio. Resumindo o pensamento do mestre, um discípulo de Dionísio Areopagita enunciou esta grande verdade: "Não se deve refutar a opinião dos outros, nem se deve escrever contra uma opinião ou religião que não parece boa. Se deve escrever só a favor da verdade e não contra os outros" [15].

Não se pode absolutizar este princípio (às vezes pode ser útil e necessário refutar doutrinas falsas), mas é certo que a exposição positiva da verdade é, muitas vezes, mais eficaz que a refutação do erro contrário. É importante, creio, tomar em conta este critério na evangelização e especialmente no confronto com os três obstáculos mencionados anteriormente: cientificismo, secularismo e racionalismo. Na evangelização, é mais eficaz que a polêmica contra eles, a exposição pacífica da visão cristã, contando com a força inerente desta quando acompanhada de profunda convicção e feita, como incutia São Pedro, "com doçura e respeito" (1 Pe 3, 16).

A maior expressão da dignidade e da vocação do homem, segundo a visão cristã, foi cristalizada na doutrina da deificação do homem. Esta doutrina não teve tanta importância na Igreja Ortodoxa quanto na latina. Os Padres gregos, superando todos custos que o uso de pagão tinha acumulado sobre o conceito de deificação (theosis), fizeram dele o centro de sua espiritualidade. A teologia latina tem insistido menos sobre ela. "O propósito da vida para os cristãos gregos - lê-se no Dictionnaire des Spiritualitè - é a divinização, o que para os cristãos do Ocidente é a aquisição da santidade... O Verbo se fez carne, de acordo com os gregos, para devolver ao homem semelhança de Deus perdida em Adão e para divinizá-lo. Para os latinos, ele se fez homem para redimir a humanidade... e para pagar a dívida com a justiça de Deus" [16]. Poderíamos dizer, simplificando ao máximo, que a teologia latina, depois de Agostinho, insiste sobre o que Cristo veio tirar - o pecado -, e a grega insiste mais sobre o que ele veio dar aos homens: a imagem de Deus, o Espírito Santo e a vida divina.

Não se deve forçar demais esta oposição, como às vezes tendem a fazer alguns autores ortodoxos. A espiritualidade latina, por vezes, expressa o mesmo ideal ainda que evite o termo divinização, que, é bom lembrar, é estranho à linguagem bíblica. Na liturgia das horas da noite de Natal, vamos ouvir a vibrante exortação de São Leão Magno, que expressa a mesma visão da vocação cristã: "Reconhece, ó cristão, a tua dignidade. Uma vez constituído participante da natureza divina, não penses em voltar às antigas misérias da tua vida passada. Lembra-te de que cabeça e de que corpo és membro" [17].

Infelizmente, alguns autores ortodoxos mantiveram-se firmes à controvérsia do século XIV, entre Gregório Palamas e Barlaam, e parecem ignorar a rica tradição mística latina. A doutrina de São João da Cruz, por exemplo, de que os cristãos, redimidos por Cristo e tornados filhos no Filho, estão imersos no fluxo das operações trinitárias e participam da vida íntima de Deus não é menos elevada que a da divinização, ainda que se expresse em termos diferentes. Também a doutrina sobre os dons da inteligência e da sabedoria do Espírito Santo, tão cara a São Boaventura e autores medievais, estava animada pelo mesma inspiração mística.

Não pode, contudo, deixar de reconhecer que a espiritualidade ortodoxa tem algo a ensinar sobre este ponto ao resto da cristandade, à teologia protestante ainda mais do que à teologia católica. Se existe realmente alguma coisa verdadeiramente oposta à visão ortodoxa do cristão deficado pela graça é a concepção protestante, particularmente a luterana, da justificação extrínseca e legal de que o homem redimido é, "ao mesmo tempo, justo e pecador", pecador em si mesmo, justo diante de Deus.

Acima de tudo, podemos aprender com a tradição oriental a não reservar esse ideal sublime da vida cristã a uma elite espiritual chamada a percorrer os caminhos da mística, mas oferecê-lo a todos os batizados, torná-lo objeto de catequese para o povo, de formação religiosa nos seminários e noviciados. Se volto a pensar nos meus anos de formação, me lembro de ter visto uma ênfase quase exclusiva na ascese que centrava tudo na correção de vícios e na aquisição da virtude. Quando perguntado pelos discípulos sobre o objetivo final da vida cristã, um santo russo, São Serafim de Sarov, respondeu sem hesitação: "A verdadeira finalidade da vida cristã é a aquisição do Espírito Santo de Deus. Quanto à oração, o jejum, vigílias, esmolas e outras boas obras feitas em nome de Cristo, são apenas meios para adquirir o Espírito Santo" [18].

5. "Tudo foi feito por meio dele"

O Natal é a ocasião ideal para voltar a propor a nós mesmos e aos demais este ideal, patrimônio comum da cristandade. É da encarnação do Verbo que os Padres gregos derivam a própria possibilidade da divinização. São Atanásio não se cansa de repetir: "O Verbo se fez homem para que pudéssemos nos tornar Deus" [19]. "Ele se encarnou e o homem tornou-se Deus, porque se uniu a Deus", escreve por sua vez São Gregório Nazianzeno [20]. Com Cristo, é restaurado ou trazido à luz aquele ser "à imagem de Deus" que é a base da superioridade do homem sobre o restante da criação.

Dizia antes como a marginalização do homem traz consigo automaticamente a marginalização de Cristo do universo e da história. Ainda sobre este ponto de vista o Natal é a antítese mais radical da visão cientificista. Sobre isso, escutaremos proclamar solenemente: "Tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada foi feito de tudo o que existe" (Jo. 1,3); "pois é nele que foram criadas todas as coisas, tudo foi criado através dele e para ele" (Col 1,16). A Igreja assumiu essa revelação e nos faz repetir no Credo: "Per quem omnia facta sunt": Por meio dele tudo foi criado.

Ouvindo estas palavras - enquanto todos à nossa volta que não fazem mais que repetir "O mundo se explica sozinho, sem necessidade da hipótese de um criador", ou "somos frutos do acaso e da necessidade" - se dá, sem dúvida, um choque, mas é mais fácil que se produza um conversão e floresça a fé depois de um choque como esse que com uma longa argumentação apologética. A questão crucial é: seremos capazes, nós que aspiramos reevangelizar o mundo, de expandir nossa fé a essa dimensão? Nós realmente acreditamos, de todo o coração, que "todas as coisas foram feitas por meio de Cristo e em vista de Cristo"?

Em seu livro Introdução ao Cristianismo, há muitos anos, Santo Padre, escreveu:

"A segunda parte principal do Credo coloca-nos propriamente diante do elemento cristão fundamental: a crença de que o homem Jesus, um indivíduo executado na Palestina pelo ano 30, é o ‘Cristo' (ungido, escolhido) de Deus, e mais: é o próprio Filho de Deus, centro e opção de toda a história humana... Contudo, o primeiro impacto desta realidade causa escândalo ao pensamento humano: Não nos tornamos com isto vítimas de um tremendo positivismo? Será razoável agarrar-nos à palhinha de um único acontecimento histórico? Poderemos ousar fundamentar a nossa existência inteira, e até a história toda, sobre o que não passa de pobre palha de um acontecimento qualquer a boiar no grande oceano da história?" [21].

Para estas questões, Santo Padre, nós vamos responder sem hesitar, como faz o senhor nesse livro e como não se cansa de repetir hoje, na sua qualidade de Sumo Pontífice: Sim, é possível, é libertador e alegre. Não por nossas forças, mas pelo dom inestimável da fé recebemos e pela qual damos graças infinitas a Deus.


* * *

[1] Bento XVI, Motu Proprio "Ubicunque et semper".

[2] João Paulo II, Parole sull'uomo, Rizzoli, Milano 2002, p. 443; cf. anche Enc. "Fides et ratio", n. 88.

[3] J. Monod, Il caso e la necessità, Mondadori, Milano, 1970, pag. 136-7. [Ed. original francesa: Jacques Monod, Le Hazard et la necessité. Essai sur la philosophie naturelle de la biologie moderne. Seuil, Paris 1970; English trans. Chance and Necessity. An Essay on the Natural Philosophy of Modern Biology, Vintage 1971].

[4] M. Planck, O conhecimento do mundo físico, (cit. por Timossi, op.cit. p. 160).

[5] J.H. Newman, in The Letters and Diaries, vol. XXIV, Oxford 1973, pp. 77 s.

[6] J.H. Newman, Apologia pro vita sua, Brescia 1982, p.277.

[7] J.H. Newman, Lo sviluppo della dottrina cristiana, Bologna 1967.

[8] Monod, op. cit. p. 136.

[9] P. Atkins, citado por Timossi, op. cit. p. 482.

[10] B. Pascal, Pensamentos.

[11] M. Blondel et A. Valensin, Correspondance, Aubier, Paris, 1957, p. 47.

[12] In Origene, Contra Celsum, IV, 23 (SCh 136, p.238; cf. IV, 74 (ib. p. 366).

[13] Cf. M. Pohlenz, O homem grego, Firenze 1962.

[14] In Origene, op. cit., IV, 30 (SCh 136, p. 254).

[15] Scolii a Dionísio Areopagita in PG 4, 536; cf. Dionísio Areopagita, Lettera VI (PG, 3, 1077).

[16] G. Bardy, in Dct. Spir., III, col. 1389 s.

[17] São Leão Magno, Sermo 21, 3: CCL 138, 88 (PL 54, 192-193).

[18] Diálogo com Motovilov, em Irina Gorainoff, Serafino di Sarov, Gribaudi, Turin 1981. p. 156.

[19] S. Atanasio, J. Quasten, Patrologia, II, 22-83; Obras: PG 25-28.

[20] S. Gregorio Nazianzeno, Discursos teológicos, III, 19 (PG 36, 100A).

[21] J. Ratzinger, Introdução ao Cristianismo, Herder, São Paulo, 1970. Versão brasileira do Pe. José Wisniewski Filho, S.V.D., do original alemão Einführung in das Christentum

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Homilia do Santo Padre no Consistório para a Criação de Novos Cardeais da Santa Igreja Romana


Senhores Cardeais,
veneráveis Irmãos no Episcopado e no Sacerdócio,
caros irmãos e irmãs!
O senhor me doa a alegria de cumprir, agora mais uma vez, este solene ato, mediante o qual o Colégio Cardinalício se enriquece de novos Membros, escolhidos das diversas partes do mundo: tratam-se de Pastores que governam com zelo importantes comunidades diocesanas, dos departamentos da Cúria Romana, ou que serviram com exemplar fidelidade à Igreja e à Santa Sé.

De agora em diante, eles se tornam parte do coetus peculiaris, que presta ao Sucessor de Pedro uma colaboração mais imediata e assídua, sustentando-o no serviço de seu ministério universal.

Para eles, em primeiro lugar, dirijo a minha afetuosa saudação, renovando a expressão da minha estima e da minha viva apreciação pelo testemunho que rendem à Igreja e ao mundo. Em particular, saúdo o Arcebispo Angelo Amato e o agradeço pelas gentis expressões que me direcionou.

Ofereço, então, as minhas calorosas boas-vindas para as delegações oficiais de vários países, e a todos que estão aqui reunidos para participar neste evento, no qual esses veneráveis e caros Irmãos recebem o sinal da dignidade cardinalícia, com a imposição do barrete e atribuição do título de uma igreja em Roma.

O vínculo de especial comunhão e afeto, que liga esses novos Cardeais ao Papa, os tornam únicos e preciosos colaboradores do alto mandato confiada por Cristo a Pedro, de pastorar o seu rebanho (Cf. Jo 21,15-17), para reunir os povos com a solecitude da caridade de Cristo. É próprio deste amor que nasceu a Igreja, chamada a viver e caminhar segundo o mandamento do Senhor, no qual se reassume toda a Lei e as profecias. Estar unidos a Cristo na fé e em comunhão com Ele, significa estar “arraigados e alicerçados em amor” (Ef 3:17), o tecido que une todos os membros do Corpo de Cristo.
A palavra de Deus há pouco proclamada ajuda-nos a meditar sobre este aspecto tão crucial. No Evangelho (Mc 10,32-45) coloca diante de nossos olhos o ícone de Jesus como o Messias, profetizado por Isaías (cf. Isaías 53), que não veio para ser servido, mas para servir: o seu estilo de vida se torna a base dos novos relacionamentos ao interno da comunidade cristã e de um modo de exercer a autoridade.
Jesus está no caminho para Jerusalém e anuncia pelo terceita vez, indicando aos discípulos a rota pela qual se pretende implementar o trabalho dado pelo Pai: é o caminho da humildade, dom de si para o sacrifício da vida, caminho da Paixão, caminho da Cruz.
No entanto, mesmo após este anúncio, assim como foi anunciado por seus antecessores, os discípulos revelam toda a sua fadiga em compreender, em operar o necessário “exôdo” de uma mentalidade humana à uma mentalidade de Deus.

Neste caso estão os dois filhos de Zebedeu, Tiago e João, que pedem a Jesus de sentar nos primeiros lugares ao lado dele em sua “glória”, manifestando expectativas e projetos de grandeza, de autoridade, de honras segundo o mundo. Jesus, que conhece o coração do homem, não fica perturbado com esse pedido, mas logo coloca em luz o fluxo de profundidade: “vocês não sabem o que pedem”; depois guia os dois irmãos a compreender o que comporta segui-lo.
Qual é então o caminho que deve percorrer quem quer ser discípulo? É o caminho do Mestre, é o caminho da total obediência a Deus. Por isso, Jesus pede a Tiago e João: estão dispostos a partilhar a minha escolha para fazer a vontade plena do Pai? Estão dispostos a percorrer esta estrada que passa pela humilhação, sofrimento e morte por amor? Os dois discípulos, com suas respostas seguras, “podemos”, mostrando, mais uma vez, não terem entendido o sentido real daquilo que promete seu Mestre.

E de novo, Jesus, com paciência, os faz dar um passo além: nem mesmo podem tomar do cálice do sofrimento e do batismo da morte dá o direito aos primeiros lugares, porque este é “para aquele que está preparado”, está nas mãos do Pai Celeste; o homem não deve calcular, deve simplesmente abandonar-se em Deus, sem pretender, conformar-se a sua vontade.
A indignação dos outros discípulos se torna ocasião para estender o ensinamento a toda comunidade. Antes de tudo, Jesus “chamou a si mesmo”: é o gesto da vocação original, no qual se convida a voltar. É muito significativo este referir-se ao momento constitutivo da vocação dos Dez em “estar com Jesus", para serem enviados, porque recorda com clareza que cada ministério eclesial é sempre resposta a um chamado de Deus. Não é jamais fruto de um projeto próprio ou de uma ambição própria, mas é conformar a própria vontade àquela do Pai que está no Céu, como Cristo em Getsêmani (Cfr Lc 22,42).

Na Igreja nenhum é patrão, mas todos são chamados, todos são convidados, todos são alcançados e guiados pela graça divina. E esta é também a nossa segurança! Basta ouvir novamente a palavra de Jesus que pede “vem e segue-me”, somente recordando a vocação original é possível entender a própria presença e a própria missão na Igreja, como autênticos discípulos.
O pedido de Tiago e João e a indicação dos outros dez Apóstolos levantam uma questão central na qual querem que Jesus responda: quem é grande, quem é o primeiro para Deus?

Primeiro, olhe para o comportamento que pode ser tomado por "aqueles que são considerados os líderes das nações": "dominar e oprimir". Jesus indica aos discípulos um modo completamente diferente: “Entre vós, não é assim”. A sua comunidade segue outra regra, outra lógica,outro modelo: “Quem quiser ser grande entre vós será o vosso servo, e quem quiser ser o primeiro entre vós será escravo de todos”.

O critério da grandeza e primazia, segundo Deus, não é o domínio, mas o serviço. O diaconato é a lei fundamental do discípulo e da comunidade cristã, e permite-nos intuir algo da “soberania de Deus”. E Jesus indica também o ponto de referência: O Filho do homem, que veio para servir, sintetizando assim a sua missão sobre a categoria do serviço, compreendida não no sentido genérico, mas naquele concreto da Cruz, na doação total da vida como “resgate”, como redenção para muitos, e o indica como condição para o seguir.

É a mensagem que vale aos Apóstolos, vale para toda a Igreja, vale, sobretudo, para aqueles que têm a tarefa de guiar o povo de Deus. Não é a lógica do domínio, de poder segundo os critérios humanos, mas a lógica de inclinar-se para lavar os pés, a lógica do serviço, a lógica da Cruz que é à base de cada serviço de autoridade. Em cada tempo, a Igreja se compromete a cumprir esta lógica e testemunhá-la a fim de refletir a “verdadeira soberania de Deus”, aquela do amor.
Venerados Irmãos eleitos à dignidade cardinalícia, a missão, a qual Deus vos chama hoje e que vos permite um serviço eclesial agora mais carregado de responsabilidade, requer uma vontade sempre maior de assumir o modelo do Filho de Deus, que veio em meio a nós como aquele que serve (C0fr Lc 22:25-27).

Trata-se de segui-lo na sua doação de amor humilde e total à Igreja, sua esposa, sua Cruz: é sobre essa madeira que o grão de trigo, deixado cair do Pai sob o campo do mundo, morre para se tornar fruto maduro.

Por isso, requer um enraizamento ainda mais profundo e firme em Cristo. O relacionamento íntimo com Ele, que transforma sempre mais a vida de modo a poder dizer como São Paulo “não sou eu quem vive, mas Cristo em mim” (Gl 2,20); constitui a exigência primária para que o nosso serviço seja sereno e feliz e possa dar o fruto que espera Deus de nós.

Queridos irmãos e irmãs, rezem pelos novos Cardeais! Amanhã, nesta Basílica, durante a concelebração na solenidade de Cristo Rei do Universo, lhes consentirei seus anéis. Será uma nova ocasião para “louvar o Senhor, que permanece fiel para sempre” (Sl 145), como respondemos no Salmo Responsorial.

O seu Espírito sustenta os novos portadores no empenho do serviço à Igreja, segundo o Cristo da Cruz também, se necessário usque ad effusionem sanguinis, prontos sempre – como nos dizia São Pedro na leitura proclamada – a responder a qualquer um que nos pergunte a razão da esperança que está em nós (cf 1 Pd 3:15). À Maria, Mãe da Igreja, confio os novos Cardeais e seus serviços eclesiais, afim que, com ardor apostólico, possam proclamar a todos os povos o amor misericordioso de Deus. Amém.

Catequese de Bento XVI sobre Santa Cataria de Sena




Queridos irmãos e irmãs,

hoje, eu gostaria de falar-vos sobre uma mulher que teve um papel de destaque na história da Igreja. Trata-se de Santa Catarina de Sena. O século em que viveu – o décimo quarto – foi uma época conturbada para a vida da Igreja e da sociedade em geral na Itália e na Europa. No entanto, mesmo nos momentos de maior dificuldade, o Senhor não cessa de abençoar o seu Povo, suscitando Santos e Santas que inspiram as mentes e os corações, levando à conversão e à renovação. Catarina é uma dessas e ainda hoje fala-nos e estimula-nos a caminhar com coragem rumo à santidade, para sermos cada vez mais plenamente discípulos do Senhor.

Nascida em Sena em 1347, em uma família muito numerosa, morreu em sua cidade natal, em 1380. Com a idade de 16 anos, impulsionada por uma visão de São Domingos, entrou na Ordem Terceira Dominicana, o ramo feminino dito das Mantellate. Permanecendo em família, confirmou o voto de virgindade feito privadamente quando ainda era adolescente, dedicou-se à oração, à penitência, às obras de caridade, especialmente em benefício dos doentes.

Quando a fama de sua santidade espalhou-se, foi protagonista de uma intensa atividade de aconselhamento espiritual na relação com todas as categorias de pessoas: nobres e políticos, artistas e gente do povo, pessoas consagradas, eclesiásticos, incluindo o Papa Gregório XI que, naquele período, residia em Avignon e ao qual Catarina exortou enérgica e eficazmente que retornasse para Roma. Viajou muito para solicitar a reforma interior da Igreja e promover a paz entre os Estados: também por esse motivo, o Venerável João Paulo II desejou declará-la copadroeira da Europa: o Velho Continente nunca poderá esquecer as raízes cristãs que formam a base de seu caminho e continua a desenhar, a partir do Evangelho, os valores fundamentais que asseguram a justiça e a harmonia.

Catarina sofreu muito, como muitos Santos. Alguns chegaram a pensar que se devesse ter cautela com ela ao ponto de que, em 1374, seis anos antes de sua morte, o capítulo geral dos Dominicanos convocou-a a Florença para interrogá-la. Colocaram-na junto a um frade douto e humilde, Raimundo de Cápua, futuro Mestre-Geral da Ordem. Ele tornou-se seu confessor e também seu "filho espiritual" e escreveu a primeira biografia completa da santa. Foi canonizada em 1461.

A doutrina de Catarina, que aprendeu a ler com dificuldade e aprendeu a escrever quando já era adulta, está contida no Il Dialogo della Divina Provvidenza ovvero Libro della Divina Dottrina [O Diálogo da Divina Providência ou Livro da Divina Doutrina], uma obra-prima da literatura espiritual, em seu Epistolario [Correspondências] e na reunião das Preghiere [Orações]. Seu ensino possui uma riqueza tamanha que o Servo de Deus Paulo VI, em 1970, declarou-a Doutora da Igreja, título que se uniu àquele de copadroeira da cidade de Roma, por desejo do Beato Pio IX, e de Padroeira da Itália, de acordo com a decisão do Venerável Papa Pio XII.

Em uma visão que jamais se apagou do coração e da mente de Catarina, Nossa Senhor apresentou-a a Jesus, que lhe deu um esplêndido anel de ouro, dizendo: "Eu, teu Criador e Salvador, esposo-te na fé, que conservarás sempre pura, até quando vieres celebrar comigo no céu as tuas núpcias eternas" (Raimundo de Cápua, S. Caterina da Siena, Legenda maior, n. 115, Siena, 1998). Aquele anel foi visível somente para ela. Nesse episódio extraordinário, colhemos o centro vital da religiosidade de Catarina e de toda a espiritualidade verdadeira: o cristocentrismo. Cristo é para ela como o esposo, com quem há uma relação íntima, de comunhão e de fidelidade; é o bem amado acima de todos os outros bens.

Essa união profunda com o Senhor é ilustrada por um outro episódio da vida dessa grande mística: a troca de corações. Segundo Raimundo de Cápua, que transmite as confidências recebidas de Catarina, o Senhor Jesus lhe aparece segurando na mão um coração humano vermelho esplendente, abre-lhe o peito, introdu-lo e diz: "Querida filha, como no outro dia eu tomei o teu coração que tu me ofereceste, eis que agora te dou o meu, e de agora em diante ficará no lugar que ocupava o teu" (ibid.). Catarina viveu realmente as palavras de São Paulo, "[...] não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim" (Gl 2, 20).

Assim como a santa sienesa, todo o crente sente a necessidade de conformar-se com os sentimentos do Coração de Cristo para amar a Deus e o próximo como Cristo mesmo ama. E todos nós podemos deixar-nos transformar o coração e aprender a amar como Cristo, em uma familiaridade com ele nutrida pela oração, meditação da Palavra de Deus e dos Sacramentos, sobretudo recebendo frequentemente e com devoção a santa Comunhão. Também Catarina pertence àquela fileira de santos eucarísticos com que eu desejei concluir a minha Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis (cf. n. 94). Queridos irmãos e irmãs, a Eucaristia é um dom extraordinário de amor que Deus nos renova continuamente para alimentar o nosso caminho de fé, revigorar a nossa esperança, inflamar a nossa caridade, para tornar-nos sempre mais semelhantes a Ele.

Em torno de uma personalidade tão forte e autêntica foi-se constituindo uma verdadeira e própria família espiritual. Tratava-se de pessoas fascinadas pela autoridade moral desta jovem mulher de elevadíssimo nível de vida, e às vezes impressionadas também pelos fenômenos místicos de que participava, como o êxtase frequente. Muitos colocaram-se ao seu serviço e, sobretudo, consideraram um privilégio serem guiados espiritualmente por Catarina. Eles chamavam-na de "mamãe", porque, como filhos espirituais, dela obtêm a nutrição do espírito.

Também hoje a Igreja recebe um grande benefício do exercício da maternidade espiritual de tantas mulheres, consagradas e leigas, que alimentam nas almas o pensamento por Deus, fortalecem a fé do povo e orientam a vida cristã rumo a picos sempre mais elevados. "Filho, digo-vos e chamo-vos – escreve Catarina dirigindo-se a um de seus filhos espirituais, o cartuxo João Sabatini –, enquanto dou-vos à luz através de contínuas orações e lembrança constante diante de Deus, como uma mãe dá à luz ao filho" (Epistolario, Lettera n. 141: A don Giovanni de’ Sabbatini). Ao frade dominicano Bartolomeu de Dominici era usual dirigir-se com estas palavras: "Diletíssimo e queridíssimo irmão e filho em Cristo, doce Jesus".

Uma outra característica da espiritualidade de Catarina está relacionada com o dom das lágrimas. Elas expressam uma sensibilidade profunda e requintada, capacidade de comoção e ternura. Não poucos santos tiveram o dom das lágrimas, renovando a emoção do próprio Jesus, que não reteve ou escondeu suas lágrimas diante do sepulcro de seu amigo Lázaro e da tristeza de Maria e Marta, e à vista de Jerusalém, em seus últimos dias terrenos. Segundo Catarina, as lágrimas dos Santos se mesclam ao Sangue de Cristo, de quem ela falava com tons vibrantes e imagens simbólicas muito eficazes: "Fazei memória de Cristo crucificado, Deus e homem [...]. Tenhais como objetivo Cristo crucificado, esconde-te nas chagas de Cristo crucificado, mergulha-te no sangue de Cristo crucificado" (Epistolario, Lettera n. 16: Ad uno il cui nome si tace).

Aqui nós podemos entender porque Catarina, embora consciente das carências humanas dos padres, sempre teve uma grandíssima reverência por eles: dispensam, através dos Sacramentos e da Palavra, o poder salvador do Sangue de Cristo. A Santa Sienesa convidou sempre os ministros sagrados, também o Papa, a quem chamava de "doce Cristo na terra", a serem fiéis às suas responsabilidades, movida sempre e somente pelo seu amor profundo e constante pela Igreja. Antes de morrer, disse: "Partindo-me do corpo, na verdade, consumei e dei a vida na Igreja e pela Igreja Santa, o que me é singularíssima graça" (Raimundo de Cápua, S. Caterina da Siena, Legenda maior, n. 363).

De Santa Catarina, portanto, aprendemos a ciência mais sublime: conhecer e amar Jesus Cristo e sua Igreja. No Dialogo della Divina Provvidenza, ela, com uma imagem singular, descreve Cristo como uma ponte entre o céu e a terra. Essa ponte é composta por três escadas, constituídas pelos pés, pelo lado e pela boca de Jesus. Elevando-se através das escadas, a alma passa por três fases de toda a via de santificação: a separação do pecado, a prática das virtudes e do amor, a união doce e afetuosa com Deus.

Queridos irmãos e irmãs, aprendemos de Santa Catarina a amar com coragem, de modo intenso e sincero, Cristo e a Igreja. Façamos nossas, por isso, as palavras de Santa Catarina, que lemos no Dialogo della Divina Provvidenza, na conclusão do capítulo que fala de Cristo-ponte: "Por misericórdia lavou-nos no sangue, por misericórdia desejastes conversas com as criaturas. Ó, Louco de amor! Não te bastou encarnar-te, mas desejastes também morrer! [...] Ó misericórdia! O coração meu afoga-se no pensar em ti: que para onde quer que eu dirija meu pensamento, não encontro nada que não seja misericórdia" (cap. 30, pp 79-80). Obrigado.

Humanizar a sexualidade ( Dom Fillipo Santoro, Bispo de Petropolis)



Depois da apresentação de trechos do último livro do Papa Bento XVI ”Luz do Mundo. O Papa, a Igreja e os Sinais dos Tempos. Uma conversa do Papa com Peter Seewald” (Livraria Editora Vaticana), se levantaram muitos comentários na imprensa indicando uma mudança no ensinamento da Igreja sobre a moral sexual.

O Papa, neste livro, no final do XI capítulo, reafirma a posição da Igreja na perspectiva de não banalizar a sexualidade reduzindo tudo à distribuição de preservativos sem a devida ênfase numa séria campanha educativa. O Papa afirma: “não se pode resolver o problema com a distribuição de preservativos. É preciso fazer muito mais. Temos de estar próximos das pessoas, orientá-las, ajudá-las; e isso quer antes, quer depois de uma doença. Efetivamente acontece que, onde quer que alguém queira obter preservativos, eles existem. Só que isso, por si só, não resolve o assunto. Tem de se fazer mais”. E acrescenta que também fora da visão da Igreja ”Desenvolveu-se, entretanto, precisamente no domínio secular, a chamada teoria... que defende ‘Abstinência – Fidelidade – Preservativo’, sendo que o preservativo só deve ser entendido como uma alternativa quando os outros dois não resultam. Ou seja, a mera fixação no preservativo significa uma banalização da sexualidade, e é precisamente esse o motivo perigoso pelo qual tantas pessoas já não encontram na sexualidade a expressão do seu amor, mas antes e apenas uma espécie de droga que administram a si próprias”.

O objetivo da entrevista do Papa é superar uma visão puramente mecânica da sexualidade e abrir a uma visão mais humana, que comporta a doação à vida do outro e não apenas uma droga para uma satisfação narcisista de si. Trata-se de ampliar a afetividade e não de frustrá-la ou reduzi-la. “É por isso que o combate contra a banalização da sexualidade também faz parte da luta para que ela seja valorizada positivamente e o seu efeito positivo se possa desenvolver sobre o ser humano na sua totalidade”.

Assim o Papa se coloca na perspectiva da valorização da sexualidade humana como expressão de amor, responsabilidade e dom de si e não como redução do outro a objeto. Isso aprofunda e não reforma o ensinamento moral da Igreja. Quando a prática sexual representa um efetivo risco para a vida do outro, e somente neste caso excepcional, o uso do preservativo, reduzindo o risco do contagio, é um primeiro ato de responsabilidade, um primeiro passo para uma sexualidade mais humana.

“Pode haver casos pontuais, justificados, como, por exemplo, a utilização do preservativo por um prostituto, em que a utilização do preservativo possa ser um primeiro passo..., uma primeira parcela de responsabilidade para voltar a desenvolver a consciência de que nem tudo é permitido e que não se pode fazer tudo o que se quer. Não é, contudo, a forma apropriada para controlar o mal causado pela infecção por HIV. Essa tem, realmente, de residir na humanização da sexualidade”.

Não estamos diante de nenhuma revolução na visão da moral cristã, mas sim diante de um aprofundamento do valor da sexualidade e do valor pleno da vida, que nasce do respeito da dignidade humana. O horizonte do Papa é muito maior que a pura questão do preservativo. Como afirmou o jornalista Peter Seewald, o Papa neste livro tem como perspectiva “o futuro do planeta”.

Durante a apresentação do texto no Vaticano, o jornalista afirma “Nosso livro evoca a sobrevivência do planeta que está ameaçado; o Papa lança um apelo à humanidade, nosso mundo está no transe do colapso e a metade dos jornalistas só se interessa pela questão do preservativo”. A questão de fundo é: “a sexualidade tem algo a ver com o amor? Trata-se da responsabilidade da sexualidade”.

O centro da mensagem do Papa nesta entrevista é uma proposta de esperança para a humanidade, que tem um horizonte grande e quer oferecer uma luz para o presente e o destino das pessoas.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Homilia de Bento XVI na Missa em Santiago de Compostela


Queridos irmãos em Jesus Cristo
dou graças a Deus pelo dom de poder estar aqui nesta explêndida praça repleta de arte, culturas e significado espiritual. Neste ano santo, chego como peregrino entre os peregrinos, acompanhando tantos que vem aqui sedentos da fé em Jesus Cristo Ressuscitado. Fé anunciada e transmitida fielmente pelos apóstolos como São Tiago maior, venerado em Compostela, neste ano memorial.

Agradeço as gentis palavras de boas vindas de Dom Julián Barrio, Arcebispo desta Igreja particular e a amável presença de suas Altezas Reais os Príncipes de Asturias, os senhores cardeais, assim como dos numeros irmãos no episcopado e no sacerdócio. Também saúde cordialmente os Parlamentares Europeus, membros do intergrupo "Caminho de Santiago" assim como as distintas autoridades nacionais, autônomas e locais que quiseram estar presentes nesta Celebração.

Tudo isso é sinal de deferência para com o Sucessor de Pedro e também do sentimento profundo que Santiago de Compostela desperta na Galícia e nos demais povos da Espanha, que reconhecem o Apóstolo como seu Patrono e protetor. Uma calorosa saudação, igualmente, às pessoas consagradas, seminaristas e fiéis que participam desta Eucaristia e, com uma emoção particular, aos peregrinos, cujo ardor genuíno do espírito compostelano, sem o qual pouco ou nada se entenderia do que aqui se realiza.

Uma frase da primeira leitura afirma com admirável simplicidade: "Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da Ressurreição do Senhor". Com efeito, no ponto de partida de tudo o que o cristianismo foi e continua sendo não se encontra um projeto humano, sem Deus, que declara a Jesus justo e santo diante da sentença do tribunal humano que o condenou como blasfemo e subversivo. Deus, que arrancou Jesus da morte. Deus, que fará justiça a todos os injustamente humilhados da história.

"Somos testemunhas dessas coisas, nós e o Espírito Santo, que Deus concedeu aos que lho obedecem" (Hb 5,32), disseram os apóstolos. Assim pois, eles deram testemunho da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, a quem conheceram enquanto pregava e fazia milagres. A nós, queridos irmãos, nos toca hoje seguir o exemplo dos apóstolos, conhecendo ao Senhor cada dia mais e dando um testemunho claro e destemido de seu Evangelho. Não existe maior tesouro que possamos oferecer aos nossos contemporâneos. Assim imitaremos também a São Paulo que, em meio a tantas tribulações, naufrágios e solidão, proclama exultante: "Este tesouro nós trazemos em vasos de argila, para que vejam que esse poder extraordinário provém de Deus e não de nós" (II Cor 4,7).

Junto a estas palavras do Apóstolo dos gentios, estão as próprias palavras do Evangelho que acabarmos de escutar, e que nos convidam a viver de acordo com a humildade de Cristo que, seguindo em tudo a vontade do Pai, veio para servir, "para dar sua vida em resgate de muitos" (cf Mt 20,28). Para os discípulos que queriam seguir e imitar a Cristo, o servir aos irmãos já não é uma mera opção, mas parte essencial de seu ser. Um serviço que não se mede pelos critérios mundanos do imediato, do material do vistoso, mas faz presente o amor de Deus a todos os homems e em todas as suas dimensões, e dá testemunho Dele, inclusive com os gestos mais simples.

Ao propor este novo modo de se relacionar com a comunidade, baseado na lógica do amor e do serviço, Jesus se dirige também aos "chefes dos povos", porque onde não há entrega pelos demais, surgem formas de prepotência e exploração que não deixam espaço para uma autêntica promoção humana integral.

Gostaria que essa mensagem chegasse, principalmente aos jovens: principalmente a vocês, este conteúdo essencial do Evangelho os indica um cainho, para que, renunciando a um modo de pensar egoísta, de curto alcance, como tantas vezes lhes é proposto, e assumindo a Jesus, possam se realizar plenamente e serem sementes de esperança.

Isto é o que nos recorda também a celebração deste Ano Santo Compostelano. E isto é o que, no segredo do coração, sabendo explicitamente ou sentido sem saber expressá-lo com palavras, vivem tantos peregrinos que caminham a Santiago de Compostela para abraçar o Apóstolo. O cansaço do andar, a variedade das paisagens, o encontro com pessoas de outra nacionalidade, os abrem ao mais profundo e comum que nos une aos homens: seres em busca, seres necessitados de verdade e de beleza, de uma experiência de graça, de caridade e de paz, de perdão e redenção.

E no mais recôndito de todos os homens ressoa uma presença de Deus e da ação do Espírito Santo. Sim, a todo homem que faz silêncio em seu interior e se distancia de seus anseios, desejos e quereres imediatos, ao homem que reza, Deus o ilumina para que O encontre e para que reconheça a Cristo. Quem peregrina a Santiago, no fundo, o faz para encontrar-se sobretudo com Deus que é refletido na majestade de Cristo, o acolhe e abençoa ao chegar ao Pórtico da Glória.

Desde aqui, como mensageiro do Evangelho que Pedro e São Tiago marcaram com o proprio sangue, desejo voltar meu olhar para a Europa que peregrinou a Compostela. Quais são suas grandes necessidades, temores e esperanças? Qual é o contributo específico e fundamental da Igreja para esta Europa, que percorreu no último meio século um caminho para novas configurações e projetos? Seu trabalho se centra em uma realidade tão simples e decisiva como esta: que Deus existe e que é Ele quem nos têm dado a vida. Somente Ele é absoluto, amor fiel e imutável, meta infinita que transparece através de todos os bens, verdades e belezas admiráveis deste mundo; admiráveis, porém insuficientes para o coração do homem. Bem compreendeu isto Santa Teresa de Jesus quando escreveu: "Só Deus basta!"

É uma tragédia que na Europa, sobretudo no século XIX, se afirmasse e divulgasse a convicção de que Deus é o antagonista do homem e o inimigo de sua liberdade. Com isto se queria colocar na sombra a verdadeira fé bíblica em Deus, que enviou ao mundo o seu Filho, Jesus Cristo, a fim de que ninguém pereça, mas que todos tenham a vida eterna (cf. Jo 3,16).

O autor sagrado afirma diante de um paganismo para o qual Deus está com inveja do homem ou o despreza: "Como Deus teria criado todas as coisas se não as tivesse amado, Ele que, em sua infinita plenitude, não precisa de nada?" (cf. Sab 11,24-26). Como teria se revelado aos homens, se não queria protegê-los? Deus é a origem de nosso ser, fundamento e ápice de nossa liberdade. Não seu oponente.

Como o homem mortal pode criar-se a si mesmo e como o homem pecador vai se reconcilar consigo mesmo? Como é possível que se tenha feito silêncio público sobre esta realidade primeira e essencial da vida humana? Como o que é mais determinante nela pode ser trancada na mera intimidade ou colocados na penumbra? Nós homens não podemos viver às escuras, sem ver a luz do sol. E então, como é possível que se negue a Deus, sol das inteligências, força das vontades e imã de nossos corações, o direito de propor essa luz que dissipa toda treva?

Por isso, é necessário que Deus volte a ressoar alegremente sobre os céus da Europa; que essa palavra santa não se pronuncie jamais em vão; que não a pervertam fazendo servir aos fins que não lhe são próprios. É mistério que seja pronunciado santamente. É necessário que a percebamos desse modo, na vida de cada dia, no silêncio do trabalho, no amor fraterno e nas dificuldades que anos trazem consigo.

A Europa deve abrir-se a Deus, sair ao seu encontro sem medo, trabalhar com sua graça por aquela dignidade do homem que as melhores tradições descobriram: Além da bíblica, fundamental nessa ótica, também as de época clássica, medieval e moderna, das quais nasceram as grandes criações filosóficas e literárias, culturais e sociais da Europa.

Esse Deus e esse homem são aqueles que se manifestaram concreta e historicamente em Cristo. A esse Cristo que podemos encontrar nos caminhos que conduzem a Compostela, pois ainda existe uma cruz que acolhe e orienta nas encruzilhadas. Essa cruz, supremo sinal do amor levado até o extremo e, por isso, dom e perdão ao mesmo tempo, deve ser nossa estrela guia na noite do tempo.

Cruz e amor, cruz e luz tem sido sinônimos em nossa história, porque Cristo se deixou cravar nela para nos dar o testemunho supremo do seu amor, para nos convidar ao perdão e a reconciliação, para nos ensinar a vencer o mal com o bem. Não deixe de aprender as lições desse Cristo, das encruzilhadas dos caminhos e da vida, Nele Deus vem ao nosso encontro como amigo, Pai e guia. "Óh Cruz bendita, brilha sempre nas terras da Europa!"

Deixe-me que proclame daqui a glória do homem, que percebe ameaças à sua dignidade com a expoliação de seus valores e riquezas originários, com a marginalização e morte infligidas aos mais fracos e pobres. Não se pode cultuar a Deus, sem velar pelo homem seu Filho e não se serve ao homem sem perguntar-se por quem é seu pai e responder a pergunta por si mesmo.

A Europa das ciências e das tecnologias, a Europa da civilização e da cultura, tem que ser a Europa aberta a transcedência e a fraternidade com os outros continentes, ao Deus vivo e verdadeiro a partir do homem vivo e verdadeiro. Isto é o que a Igreja deseja trazer à Europa: velar por Deus e velar pelo homem, a partir da compreensão que Jesus Cristo nos oferece de ambos.

Queridos amigos, levantemos o olhar de esperança a tudo aquilo que Deus nos prometeu e nos oferece. Que Ele nos dê sua fortaleza, que Ele nos conceda sua força, revigore essa arquidiocese compostelana, que verifique a fé de seus filhos e os ajude a seguir fiéis sua vocação de semear e dar vigor ao Evangelho, também em outras terras.

Que São Tiago, o amigo do Senhor, alcance abundantes bençãos para a Galícia, para os demais povos da Espanha, da Europa e de tantos outros lugares além dos mares, onde o apóstolo é o sinal de identidade cristã e promotor do anúncio de Cristo.

Discurso do Papa na visita à Catedral de Santiago de Compostela


Sua Eminência.
Queridos irmãos bispos,
Distintas Autoridades,
Queridos Padres, Seminaristas e religiosos,
Queridos irmãos e irmãs,
Queridos amigos.

Grato Arcebispo Xulián Barriode Santiago de Compostela pelas palavras. Cumprimento vocês com muita afeição no Senhor e com gratuidade pela presença de vocês neste lugar muito significante.

Seguindo a peregrinação não é simples visitar um lugar com tantos admiráveis tesouros da natureza, arte ou história. Uma peregrinação realmente marcada pelo encontro com Deus onde Ele tem se revelado, onde a graça tem sido derramada com particular esplendor e ricos frutos de conversão e santificação para quem crer. Acima de tudo cristão sigam a peregrinação a Terra Santa, para os lugares associados com a Paixão de Nosso Senhor, morte e ressurreição.

Eles vão para Roma, a cidade do martírio de Paulo e Pedro e também de Compostela, que, associado com a memória de São Tiago, tem recebido peregrinos de toda parte do mundo que tem o desejo de fortalecer seus espíritos com os Apóstolos testemunhas da fé e do amor.

Neste ano Santo de Compostela, eu também como sucessor de Pedro, desejei vir em peregrinação para a “Casa de São Tiago” em preparação para a celebração 800º aniversário de sua consagração. Eu venho confirmar sua fé, seu estímulo para esperança e para sua confiança na intercessão apostólica, suas aspirações, suas lutas e trabalho em serviço do Evangelho.

Abracei a venerável estátua de São Tiago, também, rezei pelas crianças da Igreja, que tem sua origem no mistério da comunhão com Deus.

Através da fé introduzimos o mistério do amor que é a Santíssima Trindade em que somos abraçados por Deus, transformados pelo seu amor. A Igreja é este abraço de Deus, em que os homens e a mulheres aprendem também a abraçar os irmãos e as irmãs e descobre neles a divina imagem e semelhança que constitui a mais profunda verdade de suas existência, e que é a origem da genuína liberdade.

Verdade e Liberdade estão próximas e necessariamente relacionadas. Honestamente buscar e aspirar a verdade é a condição da autêntica liberdade. Uma não pode viver sem a outra. A Igreja que
deseja servir sem reservas a pessoa humana e sua dignidade, se levanta a serviço de ambas, liberdade e verdade.

A Igreja não pode renunciar nenhuma delas, porque o que está em jogo é o próprio homem, porque a Igreja é movida pelo amor do homem, “a única criatura na Terra que Deus quis para Ele” (Gaudium et Spes, 24), e porque sem esta inspiração da verdade, justiça e liberdade o homem se perderia nele mesmo.

De Compostela, o coração espiritual da Galácia e ao mesmo tempo a escola da ilimita universalidade, permite-me exortar toda a fé desta amada Arquidiocese,e a Igreja da Espanha para viver e ser iluminada pela fé de Cristo, confessando a fé com alegria, consistência e simplicidade, no lar, no trabalho e com comprometimento com os cidadãos.

Que a alegria de saber que somos filhos amados de Deus levá-lo a um amor sempre mais profundo para a Igreja e para cooperar com ela em seu trabalho de conduzir todos os homens e mulheres a Cristo. Ore ao Senhor da messe que muitos jovens vão se dedicar a esta missão no ministério sacerdotal e à vida consagrada: hoje, é tão interessante como sempre dedicar uma vida inteira para o anúncio da boa nova do Evangelho.

Não posso concluir sem antes expressar o meu apreço e gratidão para com os católicos da Espanha para a generosidade com que eles sustentam tantas instituições de caridade e de desenvolvimento humano. Continuar a manter estas obras que beneficiam a sociedade como um todo, e cuja eficácia foi demonstrada em um modo especial na atual crise econômica, bem como grave quando as catástrofes naturais afetaram alguns países.

Com estes sentimentos, peço a Deus Todo-Poderoso conceda a todos vocês a confiança que São Tiago mostrou no testemunho de Cristo ressuscitado. Desta forma, você pode ser fiel nos caminhos da santidade e passar-se para a glória de Deus e o bem de nossos irmãos e irmãs mais necessitados. Obrigado.

Homilia do Santo Padre na Missa de Dedicação da igreja da Sagrada Familia - Barcelona


Queridos irmãos e irmãs no Senhor
Neste dia santo para o Senhor teu Deus, não chores... “A alegria do senhor é a nossa força” ( Neemias 8: 9-11 ). Com a as palavras da primeira leitura que proclamamos, eu desejo cumprimentar todos vocês que participam desta celebração.

Estendo meus cumprimentos afetuosos para a majestade o Rei e a Rainha da Espanha que desejo que sejam um conosco.

Estendo meus cumprimentos de gratidão para o Cardial Lluís Martínez Sistach, Arcebispo de Barcelona, agradeço as palavras de boas vindas e por ter me convidado para celebrar na Igreja da Sagrada Família, uma magnífica obra da engenharia, arte e fé.

Eu também cumprimento o Cardial Ricardo María Carles Gordó, Arcebispo Emérito de Barcelona, os outros Cardiais presentes e meus irmãos bispos, especialmente, o bispo auxiliar desta Igreja local, e aos padres, diáconos, seminaristas, religiosos e religiosas, e leigos que participam desta solene cerimônia.

Também estendo um cumprimento respeitoso para as autoridades nacionais, regionais e locais presentes. Bem como os membros das comunidades cristãs que compartilham nossa alegria e gratidão em Deus.

Hoje marca uma importante etapa na longa história de esperança, trabalho e generosidade que transpassa pelos séculos. Queria neste momento me dirigir com alegria a cada um que foi promotor para a execução deste trabalho (Igreja Sagrada Família), os arquitetos, os trabalhadores e todos que contribuíram generosamente para a construção deste edifício. Nós lembramos também Antoni Gaudí, um criativo arquiteto e um cristão praticante que foi a alma e o artesão deste projeto. Ele manteve a tocha da fé até o fim da vida, uma vida vivida com dignidade e absoluta austeridade. Este evento também é dedicado para a terra da Catalonia que ao longo da história, especialmente, no fim do século XIX deu com abundância santos, fundadores, mártires e poetas cristãos. Esta é uma história de santidade, artística e de criação poética, nascida pela fé, que recolhemos e presenteamos a Deus no dia de hoje com uma oferta na Eucaristia.

A alegria que sinto presidindo esta cerimônia se torna maior quando soube que este santuário, desde o seu início, tinha uma relação especial com São José. Eu tenho sido movido pela fé de Gaudí que confiava em São José, pois em muitas dificuldades que ele tinha ao construir este santuário ele exclamava: “São José irá terminar esta Igreja!”. É uma alegria ter sido São José quem providenciou tudo para a construção deste santuário. Já que meu nome batismal é José.

Esta Igreja é fruto da fé e da inteligência humana, que deu origem a este trabalho de arte. Este é um sinal visível do Deus invisível, como estas torres que apontam para a direção da luz, Aquele que é a luz, a luz absoluta e a beleza em si.

Neste lugar Gaudí desejou unificar as inspirações vinda de três livros que o alimentou como um homem, como um crente e como um arquiteto: o livro da natureza, o livro da Sagrada Escritura e o livro da liturgia. Deste modo, ele trouxe junta a realidade do mundo e da história da salvação, como contada na Bíblia e feita nesta presente liturgia. Ele fez pedras, árvores e a vida humana parte da Igreja para que toda criação se reúnem em louvor a Deus, mas ao mesmo tempo ele trouxe imagens sagradas para colocar as pessoas diante do mistério de Deus reveladas no nascimento, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Deste modo, ele brilhantemente ajudou na construção da nossa consciência humana, ancorada no mundo ainda aberto a Deus, iluminado e santificado por Cristo. Nisso, ele realizou uma das tarefas mais importantes dos nossos tempos: a superação da divisão entre a consciência humana e da consciência cristã, entre a vida neste mundo temporal e estar aberto para a vida eterna, entre a beleza das coisas e Deus como beleza. Antoni Gaudí fez isto não com palavras mas com pedras, linhas, planos e pontos. Na verdade, a beleza é uma das maiores necessidades da humanidade, é a raiz de onde os galhos da nossa paz e os frutos da nossa esperança brotam. Beleza também revela de Deus, porque, como ele, uma obra de beleza é pura gratuidade, que nos chama à liberdade e que nos afasta do egoísmo.

Temos dedicado este espaço sagrado a Deus que se revelou e se deu a nós em Cristo para que definitivamente Deus seja próximo ao homem. A revelação da Palavra, a humanidade de Cristo e a sua Igreja são três supremas expressões da sua manifestação e sua doação para humanidade.

Assim diz São Paulo na segunda leitura: “Segundo a graça que Deus me deu, como sábio arquiteto lancei o fundamento, mas outro edifica sobre ele.

Quanto ao fundamento, ninguém pode pôr outro diverso daquele que já foi posto: Jesus Cristo”. O Senhor Jesus é a pedra que suporta o peso do mundo que mantém a coesão da Igreja e traz junto em ultimato a unidade e toda realização da humanidade. Nele temos Deus palavra e presença e a Igreja recebe dele a vida, o ensinamento e a missão.

A Igreja por si mesma não é nada, ela é chamada a ser sinal e instrumento de Cristo, na pura docilidade para autoridade dele e em total serviço para seu mandato. O único Cristo é a fundação da sua única Igreja. Ele é a rocha que a nossa fé é construída. Construída na fé, lutemos juntos para mostrar para o mundo a face de Deus, que é amor e o único que pode responder nossos anceios.
Esta é a nossa grande tarefa mostrar um Deus que é paz e não violência, é o Deus da liberdade e não da coesão, da harmonia e não da discórdia.

Nesse sentido, considero que a dedicação da igreja da Sagrada Família é um evento de grande importância, num momento em que o homem diz ser capaz de construir sua vida sem Deus, como se Deus não tinha nada para lhe dizer. Nesta obra, Gaudí nos mostra que Deus é a verdadeira medida do homem, que o segredo da autêntica originalidade consiste, como ele mesmo disse, em voltar a sua origem que é Deus. Gaudí, abrindo o seu espírito a Deus, foi capaz de criar na cidade um espaço de fé, beleza e esperança, que conduz o homem ao encontro com Aquele que é a verdade e a beleza em si. O arquiteto expressa seus sentimentos com as seguintes palavras: "A igreja [é] a única coisa digna de representar a alma de um povo, pois a religião é a realidade mais elevada no homem".

Esta afirmação de Deus traz com ele a suprema afirmação e proteção da dignidade de cada e de todos os homens e mulheres: “Não sabeis que sois templo de Deus?... O templo de Deus é santo, e você é um templo”. ( I Cor 3; 16-17). aqui encontramos a alegria junto com a verdade e dignidade de Deus e a verdade e dignidade do homem. Assim, consagramos o altar da Igreja, que tem Cristo como o fundador. Nós apresentamos ao mundo um Deus que é amigo dos homens e convidamos estes homens e mulheres a serem amigos de Deus. Tocamos nesta realidade no caso de Zaqueu de quem hoje o evangelho fala (Lucas 19:1-10).

Se permitimos Deus entrar em nossos corações e em nosso mundo, se permitimos Christ viver em nossos corações, não nos arrependeremos. Faremos a experiência da alegria de compartilharmos sua própria vida que é o objetivo do seu infinito amor.

A Igreja surgiu da iniciativa da Associação dos Amigos de São José, que queriam dedicá-la a Sagrada Sagrada Família de Nazaré. O lar formado por Jesus, Maria e José que sempre foi considerada uma de escola de amor, oração e trabalho. Os promotores desta Igreja queria promover o amor no mundo e a vivência na presença de Deus, como a Sagrada Família vivia. A vida mudou muito e com isso um enorme progresso foi feito nas esferas técnica, social e cultural. Nós não podemos simplesmente ficar satisfeitos com esses avanços. Ao lado deles, há também precisam ser os avanços morais, como na proteção e assistência às famílias, na medida em que o amor generoso e indissolúvel entre um homem e uma mulher é o contexto eficaz e fundamento da vida humana em sua gestação, parto, crescimento e morte natural. Somente onde o amor e a fidelidade são a verdadeira liberdade presente pode nascer e resistir.

Por esta razão, a Igreja defende adequados meios econômicos e sociais para que as mulheres podem encontrar na casa e no trabalho o seu pleno desenvolvimento, que homens e mulheres que contrair matrimônio e formar uma família recebe um apoio decisivo do Estado, que a vida das crianças pode ser defendida como sagrada e inviolável desde o momento da sua concepção, que a realidade do nascimento ser dado o devido respeito e recebem apoio jurídico, social e legislativa. Por este motivo a Igreja resiste a qualquer forma de negação da vida humana e dá seu apoio a tudo o que iria promover a ordem natural na esfera da instituição da família.

Ao contemplar com admiração este espaço sagrado de beleza maravilhosa, de tanta história cheia de fé, peço a Deus que na terra de testemunhas Catalunha nova da santidade pode levantar-se e florescer, e apresentar ao mundo o grande serviço que a Igreja pode e deve oferecer à humanidade: ser um ícone da beleza divina, uma chama ardente de caridade, um caminho para que o mundo creia no único que Deus enviou (cf. Jo 6:29).

Queridos irmãos e irmãs, como eu dedico esta esplêndida igreja, imploro o Senhor de nossas vidas que, a partir deste altar, que agora será ungido com óleo santo e sobre a qual o sacrifício do amor de Cristo vai ser consumida, pode haver um dilúvio de graça e caridade sobre a cidade de Barcelona e do seu povo, e sobre todo o mundo. Que estas águas fecundas encher de fé e vitalidade apostólica desta arquidiocese da Igreja, seus pastores e seus fiéis.

Por último, gostaria de elogiar a proteção amorosa da Mãe de Deus, Maria Santíssima, Rose de Abril, Mãe de misericórdia, todos os que entram aqui e todos os que por palavras ou por obras, em silêncio e oração, tem tornado possível esta maravilhosa arquitetura. Que Nossa Senhora acolha as alegrias e aflições de todos os que virão no futuro a este lugar sagrado, para que aqui, como a Igreja reza quando dedicando edifícios religiosos, os pobres podem achar graça, da liberdade oprimida verdade e todos os homens assumir a dignidade de filhos de Deus. Amém.