Ao criar este blog, gostaria de propor reflexões, mensagens e apontamentos sobre aspectos relevantes a fé e tudo aquilo que ensina a Santa Igreja, através de seu magistério, da Liturgia e dos demais meios que nos são propostos pela mesma Igreja. Espero que todos gostem deste novo blog. Grande abraço a todos, sejam bem vindos!
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
Audiência geral das Quartas - 16 de Fevereiro de 2011
São João da Cruz
Queridos irmãos e irmãs,
Há duas semanas apresentei a figura da grande mística espanhola Teresa de Jesus; hoje gostaria de falar de São João da Cruz, reformador junto com ela da Ordem Carmelita. Nasceu em uma família pobre, tendo ficado órfão de pai ainda jovem. Devido às suas qualidades humanas e resultados no estudo, foi admitido no Colégio dos Jesuítas em Medina do Campo. Terminada a sua formação, decidiu fazer-se Carmelita. Após ter sido ordenado sacerdote, conheceu Santa Teresa, a qual lhe expôs o plano reformador para a sua ordem religiosa, que daria origem aos Carmelitas Descalços. Contudo, a sua adesão à reforma, devido a injustiças e incompreensões, causou-lhe muito sofrimento. Por fim, depois de fazer parte do governo geral da família teresiana, morreu em 1591 [mil quinhentos e noventa e um], dizendo aos seus confrades que recitavam o Ofício Matutino: “Hoje vou cantar o Ofício no céu”. Suas principais obras, nas quais apresenta a sua profunda doutrina mística, são: Subida ao Monte Carmelo; Noite Escura; Cântico Espiritual e Chama viva de Amor.
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Amados peregrinos de língua portuguesa: a todos saúdo cordialmente e recordo, com São João da Cruz, que a santidade não é privilégio de poucos, mas vocação a qual todo cristão é chamado. Por isso, exorto-vos a entrardes de modo sempre mais decidido no caminho de purificação do coração e da vida, para irdes ao encontro de Cristo. Somente nele jaz a verdadeira felicidade. Ide em paz!
Audiência geral das Quartas - 09 de Fevereiro de 2011
Santa Teresa de Ávila [de Jesus]
São Pedro Canísio
Prezados irmãos e irmãs!
Hoje gostaria de vos falar sobre são Pedro Kanis, Canísio na forma latinizada do seu sobrenome, uma figura muito importante no século XVI católico. Nasceu a 8 de Maio de 1521 em Nimega, na Holanda. O seu pai era burgomestre da cidade. Quando era estudante na Universidade de Colónia, frequentou os monges cartuxos de santa Bárbara, um centro propulsor de vida católica, e outros homens piedosos que cultivavam a espiritualidade da chamada devotio moderna. Entrou na Companhia de Jesus a 8 de Maio de 1543 em Mogúncia (Renânia-Palatinado), depois de ter seguido um curso de exercícios espirituais sob a guia do beato Pedro Favre, Petrus Faber, um dos primeiros companheiros de Santo Inácio de Loyola. Ordenado sacerdote em Junho de 1546 em Colónia, já no ano seguinte como teólogo do Bispo de Augsburgo, o cardeal Otto Truchsess von Waldburg, esteve presente no Concílio de Trento, onde colaborou com dois coirmãos, Diogo Laínez e Afonso Salmerón.
Em 1548, santo Inácio fez-lhe completar em Roma a formação espiritual e enviou-o depois ao Colégio de Messina para se exercitar em humildes serviços domésticos. Obteve em Bolonha o doutorado em teologia a 4 de Outubro de 1549 e foi destinado por santo Inácio ao apostolado na Alemanha. Em 2 de Setembro desse ano, visitou o Papa Paulo III em Castel Gandolfo e depois foi à Basílica de São Pedro para rezar. Aí implorou a ajuda dos grandes Santos Apóstolos Pedro e Paulo, que dessem eficácia permanente à Bênção apostólica para o seu grande destino, para a sua nova missão. No seu diário, anotou algumas palavras desta prece. Diz: «Ali senti que uma grande consolação e a presença da graça me eram concedidas por meio de tais intercessores [Pedro e Paulo]. Eles confirmavam a minha missão na Alemanha e pareciam transmitir-me, como apóstolo da Alemanha, o apoio da sua benevolência. Vós sabeis, Senhor, de quantos modos e quantas vezes nesse mesmo dia me confiastes a Alemanha, pela qual depois eu continuaria a ser solícito, pela qual desejaria viver e morrer».
Temos que ter presente o facto de que estamos no tempo da Reforma luterana, no momento em que a fé católica nos países de língua germânica, diante do fascínio da Reforma, parecia definhar. Era quase impossível a tarefa de Canísio, encarregado de revitalizar, de renovar a fé católica nos países germânicos. Só era possível em virtude da oração. Só era possível a partir do centro, ou seja, de uma profunda amizade pessoal com Jesus Cristo; amizade com Cristo no seu Corpo, a Igreja, que deve nutrir-se da Eucaristia, sua presença real.
Continuando a missão recebida de Inácio e do Papa Paulo III, Canísio partiu para a Alemanha e sobretudo para o Ducado da Baviera, que por vários anos foi o lugar do seu ministério. Como decano, reitor e vice-chanceler da Universidade de Ingolstadt, cuidou da vida académica da Instituição e da reforma religiosa e moral do povo. Em Viena, onde por um breve período foi administrador da Diocese, desempenhou o ministério pastoral nos hospitais e nas prisões, tanto na cidade como no campo, e preparou a publicação do seu Catecismo. Em 1556 fundou o Colégio de Praga e, até 1569, foi o primeiro superior da província jesuíta da Alemanha superior.
Nesse ofício, criou nos países germânicos uma densa rede de comunidades da sua Ordem, especialmente de colégios, que foram pontos de partida para a reforma católica, para a renovação da fé católica. Nessa época, participou também no diálogo de Worms com os dirigentes protestantes, entre os quais Filipe Melantone (1557); desempenhou a função de Núncio pontifício na Polónia (1558); participou nas duas Dietas de Augsburgo (1559 e 1565); acompanhou o Cardeal Estanislau Hozjusz, legado do Papa Pio IV junto do Imperador Ferdinando (1560); interveio na Sessão final do Concílio de Trento, onde falou sobre a questão da Comunhão sob as duas espécies e da Lista dos livros proibidos (1562).
Em 1580 retirou-se em Friburgo, na Suíça, dedicando-se inteiramente à pregação e à composição das suas obras, e ali faleceu em 21 de Dezembro de 1597. Beatificado pelo beato Pio IX em 1864, foi proclamado segundo Apóstolo da Alemanha pelo Papa Leão XIII em 1897, e pelo Papa Pio XI canonizado e proclamado Doutor da Igreja em 1925.
São Pedro Canísio transcorreu boa parte da sua vida em contacto com as pessoas socialmente mais importantes da sua época e exerceu uma influência especial com os seus escritos. Foi editor das obras completas de são Cirilo de Alexandria e de são Leão Magno, das Cartas de são Jerónimo e das Orações de são Nicolau de Flüe. Publicou livros de devoção em várias línguas, biografias de alguns santos suíços e muitos textos de homilética. Mas os seus escritos mais divulgados foram os três Catecismos, compostos de 1555 a 1558. O primeiro Catecismo destinava-se aos estudantes capazes de entender noções elementares de teologia; o segundo, aos jovens do povo para uma primeira instrução religiosa; o terceiro, aos jovens com uma formação escolar a nível de escolas secundárias e superiores. A doutrina católica era exposta com perguntas e respostas, brevemente, em termos bíblicos, com muita clareza e sem comentários polémicos. Só durante a sua vida houve 200 edições deste Catecismo! E sucederam-se centenas de edições até ao século XX. Assim na Alemanha, ainda na geração do meu pai, as pessoas chamavam o Catecismo simplesmente o Canísio: foi deveras o Catequista da Alemanha, formou a fé de pessoas durante séculos.
Eis uma características de são Pedro Canísio: saber compor harmoniosamente a fidelidade aos princípios dogmáticos com o devido respeito por cada pessoa. São Canísio distinguiu entre a apostasia consciente, culpável, da fé, da perda da fé inculpável, nessas circunstâncias. E declarou, em relação a Roma, que a maior parte dos alemães que tinham passado para o Protestantismo não tinha culpa. Num momento histórico de fortes contrastes confessionais, evitava — é algo extraordinário — a aspereza e a retórica da ira — algo raro, como disse nessa época, nos debates entre os cristãos — e visava somente à apresentação das raízes espirituais e à revitalização da fé na Igreja. Para isto serviu o conhecimento vasto e incisivo que ele tinha da Sagrada Escritura e dos Padres da Igreja: o mesmo conhecimento que sustentou a sua relação pessoal com Deus e a espiritualidade austera que lhe derivava da devotio moderna e da mística renana.
É característica para a espiritualidade de são Canísio uma profunda amizade pessoal com Jesus. Por exemplo, a 4 de Setembro de 1549 escreve no seu diário, falando com o Senhor: «No final Vós, como se me abrisses o coração do Sacratíssimo Corpo, que me parecia ver diante de mim, ordenastes-me para que bebesse daquela nascente, convidando-me por assim dizer a haurir as águas da minha salvação das vossas fontes, ó meu Salvador». E depois, vê que o Salvador lhe oferece um indumento com três partes que se chamam paz, amor e perseverança. E com este indumento composto de paz, amor e perseverança, Canísio desempenhou a sua obra de renovação do catolicismo. Esta sua amizade com Jesus — que é o centro da sua personalidade — alimentada pelo amor à Bíblia, pelo amor ao Sacramento, pelo amor aos Padres, esta amizade estava claramente unida à consciência de ser continuador da missão dos Apóstolos na Igreja. E isto recorda-nos que todo o evangelizador autêntico é sempre um instrumento unido, e por isso mesmo fecundo, com Jesus e com a sua Igreja.
Na amizade com Jesus, são Pedro Canísio formou-se no ambiente espiritual da Cartuxa de Colónia, onde vivera em íntimo contacto com dois místicos cartuxos: João Lansperger, latinizado em Lanspergius, e Nicolau van Hesche, latinizado em Eschius. Sucessivamente, aprofundou a experiência daquela amizade, familiaritas stupenda nimis, com a contemplação dos mistérios da vida de Jesus, que ocupam uma boa parte nos Exercícios espirituais de santo Inácio. A sua intensa devoção ao Coração do Senhor, que culminou na consagração ao ministério apostólico na Basílica Vaticana, encontra aqui o seu fundamento.
Na espiritualidade cristocêntrica de são Pedro Canísio arraiga-se uma profunda convicção: não há alma solícita da própria perfeição que não pratique todos os dias a oração, prece mental, meio comum que permite ao discípulo de Jesus viver a intimidade com o Mestre divino. Por isso, nos escritos destinados à educação espiritual do povo, o nosso santo insiste sobre a importância da Liturgia com os seus comentários aos Evangelhos, às festas, ao rito da Santa Missa e dos outros Sacramentos, mas ao mesmo tempo preocupa-se em mostrar aos fiéis a necessidade e a beleza que a oração pessoal diária acompanhe e impregne a participação no culto público da Igreja.
Trata-se de uma exortação e de um método que conservam intacto o seu valor, especialmente depois que foram repropostos de modo autorizado pelo Concílio Vaticano II, na Constituição Sacrosanctum concilium: a vida cristã não cresce, se não for alimentada pela participação na Liturgia, de modo particular na Santa Missa dominical, e pela oração individual quotidiana, pelo contacto pessoal com Deus. No meio das mil actividades e dos múltiplos estímulos que nos circundam, é preciso encontrar todos os dias momentos de recolhimento diante do Senhor, para O ouvir e falar com Ele.
Ao mesmo tempo, é sempre actual e de valor permanente o exemplo que são Pedro Canísio nos deixou, não somente nas suas obras, mas sobretudo com a sua vida. Ele ensina com clareza que o ministério apostólico só é incisivo e produz frutos de salvação nos corações, se o pregador for testemunha pessoal de Jesus e souber ser instrumento à sua disposição, unido intimamente a Ele pela fé no seu Evangelho e na sua Igreja, por uma vida moralmente coerente e por uma prece incessante como o amor. E isto é válido para cada cristão que quiser viver com empenhamento e fidelidade a sua adesão a Cristo. Obrigado!
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Saudação
Amados peregrinos de língua portuguesa, para todos a minha saudação amiga e encorajadora! Antes de vós, veio peregrino a Roma Pedro Canísio para invocar a intercessão dos Apóstolos São Pedro e São Paulo sobre a missão que lhe fora confiada na Alemanha, o seu campo de apostolado mais longo. No seu diário, descreve como aqui sentiu a graça divina que fazia dele um continuador da missão dos Apóstolos. Como ele, todos nós, cristãos, somos enviados a evangelizar, mas para isso precisamos de permanecer unidos com Jesus e com a Igreja. Sobre vós e as vossas famílias desça a minha Bênção.
Audiência geral das Quartas - 02 de Fevereiro de 2011
Santa Teresa de Ávila [de Jesus]
Prezados irmãos e irmãs!
Durante as Catequeses que eu quis dedicar aos Padres da Igreja e a grandes figuras de teólogos e de mulheres da Idade Média tive a oportunidade de meditar também sobre alguns Santos e Santas que foram proclamados Doutores da Igreja pela sua doutrina eminente. Hoje gostaria de começar uma breve série de encontros para completar a apresentação dos Doutores da Igreja. E começo com uma santa que representa um dos vértices da espiritualidade cristã de todos os tempos: santa Teresa de Ávila [de Jesus].
Nasce em Ávila, na Espanha, em 1515, com o nome de Teresa de Ahumada. Na autobiografia ela menciona alguns pormenores da sua infância: o nascimento de «pais virtuosos e tementes a Deus», numa família numerosa, com nove irmãos e três irmãs. Ainda menina, com menos de 9 anos, tem a ocasião de ler as vidas de alguns mártires que lhe inspiram o desejo do martírio, a tal ponto que improvisa uma breve fuga de casa para morrer mártir e subir ao Céu (cf. Vida 1, 4); «Quero ver Deus», diz a pequena aos pais. Alguns anos depois, Teresa falará da suas leituras da infância e afirmará que nelas descobriu a verdade, que resume com dois princípios fundamentais: por um lado, «o facto de que tudo o que pertence ao mundo daqui, passa»; por outro, que só Deus é «para sempre», tema que retorna na celebérrima poesia «Nada te turbe / nada te espante; / tudo passa. Deus não muda; / a paciência obtém tudo; / quem possui Deus / nada lhe falta / só Deus basta!». Tendo ficado órfã de mãe com doze anos, pede à Virgem Santissima que lhe seja mãe (cf. Vida 1, 7).
Se na adolescência a leitura de livros profanos a tinha levado às distracções de uma vida mundana, a experiência como aluna das monjas agostinianas de Santa Maria das Graças de Ávila e a leitura de livros espirituais, sobretudo clássicos de espiritualidade franciscana, ensinam-lhe o recolhimento e a oração. Com vinte anos entra no mosteiro carmelita da Encarnação, ainda em Ávila; na vida religiosa assume o nome de Teresa de Jesus. Três anos depois adoece gravemente, a ponto de ficar 4 dias de coma, aparentemente morta (cf. Vida 5, 9). Até na luta contra as próprias doenças a santa vê o combate contra as fraquezas e as resistências à chamada de Deus: «Eu desejava viver — escreve — porque entendia bem que não estava a viver, mas sim a lutar com uma sombra de morte, e não tinha alguém que me desse vida, e nem eu a podia tomar, e Aquele que ma podia dar tinha razão de não me socorrer, dado que muitas vezes me dirigira para Ele, e eu O tinha abandonado» (Vida 8, 2). Em 1543 perde a proximidade dos familiares: o pai falece e todos os seus irmãos emigram, um após o outro, para a América. Na Quaresma de 1554, com 39 anos, Teresa chega ao ápice da luta contra as próprias debilidades. A descoberta da imagem de «um Cristo muito chagado» marca profundamente a sua vida (cf. Vida 9). A santa, que nesse período encontra profunda consonância com o santo Agostinho das Confissões, assim descreve o dia decisivo da sua experiência mística: «Acontece... que de repente tive a sensação da presença de Deus, que de nenhum modo eu podia duvidar que estava dentro de mim, e que eu estava totalmente absorvida nele» (Vida 10, 1).
Paralelamente ao amadurecimento da sua interioridade, a santa começa a desenvolver de modo concreto o ideal de reforma da Ordem carmelita: em 1562 funda em Ávila, com o apoio do Bispo da cidade, D. Alvaro de Mendoza, o primeiro Carmelo reformado, e pouco depois recebe também a aprovação do Superior-Geral da Ordem, Giovanni Battista Rossi. Nos anos seguintes continua as fundações de novos Carmelos, 17 no total. É fundamental o encontro com são João da Cruz com quem, em 1568, constitui em Duruelo, perto de Ávila, o primeiro convento de Carmelitas descalços. Em 1580 obtém de Roma a erecção a Província autónoma para os seus Carmelos reformados, ponto de partida da Ordem religiosa dos Carmelitas descalços. Teresa termina a sua vida terrena precisamente enquanto está empenhada na tarefa de fundação. Com efeito em 1582, depois de ter constituído o Carmelo de Burgos e enquanto voltava para Ávila, falece na noite de 15 de Outubro em Alba de Tormes, repetindo humildemente duas expressões: «No fim, morro como filha da Igreja» e «Meu Esposo, chegou a hora de nos vermos». Uma existência consumida na Espanha, mas despendida pela Igreja inteira. Beatificata pelo Papa Paulo V em 1614 e canonizada em 1622 por Gregório XV, é proclamada «Doutora da Igreja» pelo Servo de Deus Paulo VI em 1970.
Teresa de Jesus não tinha uma formação académica, mas sempre valorizou os ensinamentos de teólogos, letrados e mestres espirituais. Como escritora, sempre se ateve àquilo que pessoalmente vivera ou vira na experiência do próximo (cf. Prólogo ao Caminho de Perfeição), isto é, a partir da experiência. Teresa consegue manter relações de amizade espiritual com muitos santos, em especial com são João da Cruz. Ao mesmo tempo, alimenta-se com a leitura dos Padres da Igreja, são Jerónimo, são Gregório Magno e santo Agostinho. Entre as suas principais obras deve-se recordar sobretudo a autobiografia, intitulada Livro da vida, ao qual ela chama Livro das Misericórdias do Senhor. Composta no Carmelo de Ávila em 1565, discorre sobre o percurso biográfico e espiritual, escrito como afirma a própria Teresa, para submeter a sua alma ao discernimento do «Mestre dos espirituais», são João de Ávila. A finalidade é evidenciar a presença e a acção de Deus misericordioso na sua vida: por isso, a obra cita com frequência o diálogo de oração com o Senhor. É uma leitura que fascina, porque a santa não só narra, mas mostra que revive a profunda experiência da sua relação com Deus. Em 1566, Teresa escreve o Caminho de Perfeição, por ela chamado Admoestações e conselhos que Teresa dá de Jesus às suas monjas. Destinatárias são as doze noviças do Carmelo de são José em Ávila. Teresa propõe-lhes um intenso programa de vida contemplativa ao serviço da Igreja, em cuja base estão as virtudes evangélicas e a oração. Entre os trechos mais preciosos, o comentário ao Pai-Nosso, modelo de oração. A obra mística mais famosa de santa Teresa é o Castelo interior, escrito em 1577, em plena maturidade. Trata-se de uma releitura do próprio caminho de vida espiritual e, ao mesmo tempo, de uma codificação do possível desenvolvimento da vida cristã rumo à sua plenitude, a santidade, sob a acção do Espírito Santo. Teresa inspira-se na estrutura de um castelo com sete quartos, como imagem da interioridade do homem, introduzindo ao mesmo tempo o símbolo do bicho da seda que renasce como borboleta, para expressar a passagem do natural ao sobrenatural. A santa inspira-se na Sagrada Escritura, em particular no Cântico dos Cânticos, para o símbolo final dos «dois Esposos», que lhe permite descrever no sétimo quarto o ápice da vida cristã nos seus quatro aspectos: trinitário, cristológico, antropológico e eclesial. À sua obra de fundadora dos Carmelos reformados, Teresa dedica o Livro das fundações, escrito de 1573 a 1582, em que fala da vida do grupo religioso nascente. Como na autobiografia, a narração visa frisar sobretudo a acção de Deus na obra de fundação dos novos mosteiros.
Não é fácil resumir em poucas palavras a profunda e minuciosa espiritualidade teresiana. Gostaria de mencionar alguns pontos essenciais. Em primeiro lugar, santa Teresa propõe as virtudes evangélicas como base de toda a vida cristã e humana: em especial, o desapego dos bens, ou pobreza evangélica, e isto diz respeito a todos nós; o amor mútuo como elemento básico da vida comunitária e social; a humildade como amor à verdade; a determinação como fruto da audácia cristã; a esperança teologal, que descreve como sede de água viva. Sem esquecer as virtudes humanas: a afabilidade, veracidade, modéstia, cortesia, alegria e cultura. Em segundo lugar, santa Teresa propõe uma profunda sintonia com as grandes figuras bíblicas e a escuta viva da Palavra de Deus. Ela sente-se em sintonia sobretudo com a esposa do Cântico dos Cânticos e com o apóstolo Paulo, mas também com o Cristo da Paixão e com Jesus Eucarístico.
Depois, a santa realça como a oração é essencial; orar, diz, «significa frequentar com amizade, porque frequentamos face a face Aquele que sabemos que nos ama» (Vida 8, 5). A ideia de santa Teresa coincide com a definição que s. Tomás de Aquino dá da caridade teologal, como «amicitia quaedam hominis ad Deum», um tipo de amizade do homem com Deus, que foi o primeiro a oferecer a sua amizade ao homem; a iniciativa vem de Deus (cf. Summa Theologiae II-II, 23, 1). A oração é vida e desenvolve-se gradualmente com o crescimento da vida cristã: começa com a prece vocal, passa pela interiorização mediante a meditação e o recolhimento, até chegar à união de amor com Cristo e a Santíssima Trindade. Obviamente, não se trata de um desenvolvimento em que subir os degraus mais altos quer dizer deixar o precedente tipo di oração, mas é antes um aprofundar-se gradual da relação com Deus que envolve toda a vida. Mais do que uma pedagogia da oração, a de Teresa é uma verdadeira «mistagogia»: ao leitor das suas obras ensina a rezar, orando ela mesma com ele; com efeito, frequentemente interrompe a narração ou a exposição para irromper em oração.
Outro tema amado pela santa é a centralidade da humanidade de Cristo. Com efeito, para Teresa a vida cristã é relação pessoal com Jesus, que culmina na união com Ele pela graça, amor e imitação. Daqui a importância que ela atribui à meditação da Paixão e à Eucaristia, como presença de Cristo na Igreja, pela vida de cada crente e como centro da liturgia. Santa Teresa vive um amor incondicional à Igreja: manifesta um «sensus Ecclesiae» vivo diante dos episódios de divisão e conflito na Igreja do seu tempo. Reforma a Ordem carmelita com a intenção de melhor servir e defender a «Santa Igreja Católica Romana», disposta a dar a vida por ela (cf. Vida 33, 5).
Um último aspecto essencial da doutrina teresiana, que gostaria de frisar, é a perfeição, como aspiração de toda a vida cristã e sua meta final. A santa tem uma ideia muito clara da «plenitude» de Cristo, revivida pelo cristão. No final do percurso do Castelo interior, no último «quarto», Teresa descreve tal plenitude realizada na morada da Trindade, na união a Cristo através do mistério da sua humanidade.
Caros irmãos e irmãs, santa Teresa de Jesus é verdadeira mestra de vida cristã para os fiéis de todos os tempos. Na nossa sociedade, muitas vezes carente de valores espirituais, santa Teresa ensina-nos a ser testemunhas indefessas de Deus, da sua presença e acção, ensina-nos a sentir realmente esta sede de Deus que existe na profundidade do nosso coração, este desejo de ver Deus, de O procurar, de dialogar com Ele e de ser seu amigo. Esta é a amizade necessária para todos nós e que devemos buscar de novo, dia após dia. O exemplo desta santa, profundamente contemplativa e eficaz nas suas obras, leve-nos também a nós a dedicar cada dia o justo tempo à oração, a esta abertura a Deus, a este caminho para procurar Deus, para O ver, para encontrar a sua amizade e assim a vida verdadeira; porque realmente muitos de nós deveriam dizer: «Não vivo, não vivo realmente, porque não vivo a essência da minha vida». Por isso, o tempo da oração não é perdido, é tempo em que se abre o caminho da vida, para aprender de Deus um amor ardente a Ele, à sua Igreja, e uma caridade concreta para com os nossos irmãos. Obrigado!
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Saudação
Dou as boas vindas a todos os peregrinos de língua portuguesa, presentes nesta Audiência! Que o exemplo e a intercessão de Santa Teresa de Jesus vos ajudem a ser, através da oração e da caridade aos irmãos, testemunhas incansáveis de Deus em uma sociedade carente de valores espirituais. Com estes votos, de bom grado, a todos abençôo.
Audiência geral das Quartas - 26 de Janeiro de 2011
Santa Joana d’Arc
Estimados irmãos e irmãs!
Hoje gostaria de vos falar de Joana d’Arc, uma jovem santa do fim da Idade Média, morta com 19 anos em 1431. Esta santa francesa, citada várias vezes no Catecismo da Igreja Católica, está particularmente próxima de santa Catarina de Sena, padroeira da Itália e da Europa, de quem falei numa catequese recente. Com efeito, são duas jovens do povo, leigas e consagradas na virgindade; duas místicas comprometidas, não no claustro, mas sim no meio das realidades mais dramáticas da Igreja e do mundo da sua época. São, talvez, as figuras mais características daquelas «mulheres fortes» que, no final da Idade Média, propagaram sem medo a grande luz do Evangelho nas complexas vicissitudes da história. Poderíamos compará-las com as santas mulheres que permaneceram no Calvário, perto de Jesus Crucificado e de Maria, sua Mãe, enquanto os Apóstolos fugiram e o próprio Pedro O tinha negado três vezes. Naquele período, a Igreja vivia a profunda crise do grande cisma do Ocidente, que durou quase 40 anos. Quando Catarina de Siena faleceu, em 1380, havia um Papa e um antipapa; quando Joana nasceu, em 1412, havia um Papa e dois antipapas. Juntamente com esta laceração no interior da Igreja havia contínuas guerras fratricidas entre os povos cristãos da Europa, das quais a mais dramática foi a interminável «Guerra dos cem anos» entre a França e a Inglaterra.
Joana d’Arc não sabia ler nem escrever, mas pode ser conhecida no mais profunda da sua alma graças a duas fontes de extraordinário valor histórico: os dois Processos que lhe dizem respeito. O primeiro, o Processo de Condenação (PCon), contém a transcrição dos longos e numerosos interrogatórios de Joana, durante os últimos meses da sua vida (Fevereiro-Maio de 1431), e cita as próprias palavras da santa. O segundo, o Processo de Nulidade da Condenação, ou de «Reabilitação» (PNul), contém as desposições de cerca de 120 testemunhas oculares de todos os períodos da sua vida (cf. Procès de Condamnation de Jeanne d'Arc, 3 vols. e Procès en Nullité de la Condamnation de Jeanne d'Arc, 5 vols., ed. Klincksieck, Paris 1960-1989).
Joana nasce em Domremy, um pequeno povoado situado na fronteira entre a França e a Lorena. Os seus pais são camponeses abastados, conhecidos por todos como cristãos excelentes. Deles recebe uma boa educação religiosa, com uma notável influência da espiritualidade do Nome de Jesus, ensinada por são Bernardino de Sena e propagada na Europa pelos franciscanos. Ao Nome de Jesus é sempre unido o Nome de Maria e assim, por detrás da religiosidade popular, a espiritualidade de Joana é profundamente cristocêntrica e mariana. Desde a infância, ela demonstra uma grande caridade e compaixão pelos mais pobres, pelos doentes e por todos os que sofrem, no contexto dramático da guerra.
Das suas próprias palavras sabemos que a vida religiosa de Joana amadurece como experiência mística a partir da idade de 13 anos (PCon, I, pp. 47-48). Através da «voz» do ancanjo são Miguel, Joana sente-se chamada pelo Senhor a intensificar a sua vida cristã e também a comprometer-se pessoalmente pela libertação do seu povo. A sua resposta imediata, o seu «sim» é o voto de virgindade, com um novo compromisso na vida sacramental e na oração: participação quotidiana na Missa, Confissão e Comunhão frequentes, longos momentos de oração silenciosa diante do Crucifixo ou da imagem de Nossa Senhora. A compaixão e o compromisso da jovem camponesa francesa diante do sofrimento do seu povo tornam-se mais intensos graças à sua relação mística com Deus. Um dos aspectos mais originais da santidade desta jovem é precisamente este vínculo entre experiência mística e missão política. Depois dos anos de vida escondida e de amadurecimento interior segue-se o biénio breve, mas intenso, da sua vida pública: um ano de acção e um ano de paixão.
No início do ano de 1429, Joana começa a sua obra de libertação. Os numerosos testemunhos mostram-nos esta jovem de apenas 17 anos como uma pessoa muito forte e determinada, capaz de convencer homens inseguros e desanimados. Superando todos os obstáculos, encontra o Delfim da França, o futuro Rei Carlos VII, que em Poitiers a submete a um exame da parte de alguns teólogos da Universidade. O seu juízo é positivo: nela não vêem nada de mal, mas só uma boa cristã.
A 22 de Março de 1429, Joana dita uma importante carta ao Rei da Inglaterra e aos seus homens que assediam a cidade de Orléans (Ibid., pp. 221-222). A sua proposta é de verdadeira paz na justiça entre os dois povos cristãos, à luz dos Nomes de Jesus e de Maria, mas é rejeitada, e Joana deve empenhar-se na luta pela libertação da cidade, que tem lugar no dia 8 de Maio. O outro momento culminante da sua obra é a coroação do Rei Carlos VII em Reims, no dia 17 de Julho de 1429. Durante um ano inteiro, Joana vive com os soldados, realizando no meio deles uma verdadeira missão de evangelização. São numerosos os testemunhos relativos à sua bondade, à sua coragem e à sua pureza extraordinária. É chamada por todos e ela mesma define-se «a donzela», ou seja, a virgem.
A paixão de Joana tem início a 23 de Maio de 1430, quando cai prisioneira nas mãos dos seus inimigos. No dia 23 de Dezembro é conduzida à cidade de Rouen. É ali que se realiza o longo e dramático Processo de Condenação, que começa em Fevereiro de 1431 e termina a 30 de Maio, com a fogueira. É um processo grande e solene, presidido por dois juízes eclesiásticos, o bispo Pierre Cauchon e o inquisidor Jean le Maistre, mas na realidade inteiramente orientado por um numeroso grupo de teólogos da célebre Universidade de Paris, que participam no processo como assessores. São eclesiásticos franceses que, tendo feito uma escolha política oposta àquela de Joana, têm a priori um juízo negativo sobre a sua pessoa e a sua missão. Este processo é uma página devastante da história da santidade e também uma página iluminadora sobre o mistério da Igreja que, segundo as palavras do Concílio Vaticano II, é «simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação» (LG, 8). É o encontro dramático entre esta santa e os seus juízes, que são eclesiásticos. Joana é acusada e julgada por eles, a ponto de ser condenada como herege e enviada à morte terrível na fogueira. Diversamente dos santos teólogos que tinham iluminado a Universidade de Paris, como são Boaventura, são Tomas de Aquino e o beato beato Duns Scoto, dos quais falei em algumas catequeses, estes juízes são teólogos aos quais faltam a caridade e a humildade de ver nesta jovem a obra de Deus. Vêm à mente as palavra de Jesus, segundo as quais os mistérios de Deus são revelados àqueles que têm o coração das crianças, enquanto permanecem escondidos aos doutos e sábios que não têm humildade (cf. Lc 10, 21). Assim, os juízes de Joana são radicalmente incapazes de a compreender, de ver a beleza da sua alma: não sabiam que condenavam uma santa.
O apelo de Joana ao juízo do Papa, a 24 de Maio, é rejeitado pelo tribunal. Na manhã de 30 de Maio ela recebe pela última vez a sagrada Comunhão no cárcere e é imediatamente conduzida ao suplício na praça do velho mercado. Pede a um dos sacerdotes que conserve diante da fogueira uma cruz de procissão. Assim, morre contemplando Jesus Crucificado e pronunciando várias vezes e em voz alta o Nome de Jesus (PNul, I, p. 457; cf. Catecismo da Igreja Católica, 435). Cerca de 25 anos mais tarde, o Processo de Nulidade, aberto sob a autoridade do Papa Calisto III, conclui-se com uma solene sentença que declara nula a condenação (7 de Julho de 1456; PNul, II, pp. 604-610). Este longo processo, que reuniu as deposições das testemunhas e os juízos de muitos teólogos, todos favoráveis a Joana, evidencia a sua inocência e a sua fidelidade perfeita à Igreja. Joana d’Arc será depois canonizada por Bento XV, em 1920.
Prezados irmãos e irmãs o Nome de Jesus, invocado pela nossa santa até nos últimos instantes da sua vida terrena, era como que o suspiro contínuo da sua alma, como a palpitação do seu coração, o centro de toda a sua vida. O «Mistério da caridade de Joana d’Arc», que tanto tinha fascinado o poeta Charles Péguy, é este amor total por Jesus, e pelo próximo em Jesus e por Jesus. Esta santa tinha compreendido que o Amor abraça toda a realidade de Deus e do homem, do céu e da terra, da Igreja e do mundo. Jesus está sempre em primeiro lugar na sua vida, segundo a sua bonita expressão: «Nosso Senhor, o primeiro a ser servido» (PCon, I, p. 288; cf. Catecismo da Igreja Católica, 223). Amá-lo significa obedecer sempre à sua vontade. Ela afirma com total confiança e abandono: «Entrego-me a Deus meu Criador, amo-O com todo o meu coração» (Ibid., p. 337). Com o voto de virgindade, Joana consagra de modo exclusivo toda a sua pessoa ao único Amor de Jesus: é «a sua promessa feita a nosso Senhor, de conservar bem a sua virgindade de corpo e de alma» (Ibid., pp. 149-150). A virgindade da alma é o estado de graça, valor supremo, para ela mais precioso do que a vida: é um dom de Deus, que deve ser recebido e conservado com humildade e confiança. Um dos textos mais conhecidos do primeiro Processo diz respeito precisamente a isto: Interrogada se sabia que estava na graça de Deus, responde: se não estou nela, que Deus me queira pôr; se aí estou, Deus me queira conservar» (Ibid., p. 62; cf. Catecismo da Igreja Católicaa, n. 2005).
A nossa santa vive a oração na forma de um diálogo contínuo com o Senhor, que ilumina também o seu diálogo com os juízes e lhe dá paz e segurança. Ela pede com confiança: «Dulcíssimo Deus, em honra da vossa santa Paixão, peço-vos, se me amais, que me reveleis como devo responder a estes homens de Igreja» (Ibid., p. 252). Jesus é contemplado por Joana como o «Rei do Céu e da Terra». Assim, no seu estandarte, Joana mandou pintar a imagem de «Nosso Senhor que mantém o mundo» (Ibid., p. 172): ícone da sua missão política. A libertação do seu povo é uma obra de justiça humana, que Joana realiza na caridade, por amor a Jesus. O seu é um bonito exemplo de santidade para os leigos comprometidos na vida política, sobretudo nas situações mais difíceis. A fé é a luz que orienta todas as opções, como testemunhará um século mais tarde outro grande santo, o inglês Tomás More. Em Jesus, Joana contempla também toda a realidade da Igreja, tanto a «Igreja triunfante» do Céu, como a «Igreja militante» da terra. Segundo as suas palavras, «um só é Nosso Senhor e a Igreja» (Ibid., p. 166). Esta afirmação, citada pelo Catecismo da Igreja Católica (cf. n. 795), tem uma índole verdadeiramente heróica no contexto do Processo de Condenação, diante dos seus juízes, homens de Igreja, que a perseguiram e a condenaram. No Amor de Jesus, Joana encontra a força para amar a Igreja até ao fim, inclusive no momento da condenação.
Apraz-me recordar como santa Joana d’Arc teve uma profunda influência sobre uma jovem santa da época moderna: Teresa do Menino Jesus. Numa vida completamente diferente, transcorrida na clausura, a carmelita de Lisieux sentia-se muito próxima de Joana, vivendo no coração da Igreja e participando nos padecimentos de Cristo para a salvação do mundo. A Igreja reuniu-as como Padroeiras da França, depois da Virgem Maria. Santa Teresa tinha expresso o seu desejo de morrer como Joana, pronunciando o Nome de Jesus (Manuscritto B, 3r), e era animada pelo mesmo grande amor a Jesus e ao próximo, vivido na virgindade consagrada.
Queridos irmãos e irmãs, com o seu testemunho luminoso, santa Joana d’Arc convida-nos a uma medida alta da vida cristã: fazer da oração o fio condutor dos nossos dias; ter plena confiança no cumprimento da vontade de Deus, qualquer que ela seja; viver a caridade sem favoritismos, sem limites e, como ela, haurindo do Amor de Jesus um profundo amor pela Igreja. Obrigado!
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Saudação
Saúdo, com afecto a todos vós, amados peregrinos de língua portuguesa, desejando que esta peregrinação a Roma vos encha de luz e fortaleza no vosso testemunho cristão, para confessardes Jesus Cristo como único Salvador e Senhor da vossa vida: fora d'Ele não há vida nem esperança de a ter. Com Cristo, ganha sentido a vida que Deus vos confiou. Para cada um de vós e família, a minha Bênção!
Audiência geral das Quartas - 19 de Janeiro de 2011
Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos
Amados irmãos e irmãs
Celebramos a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, em que todos os crentes em Cristo são convidados a unir-se em oração para dar testemunho do profundo vínculo que existe entre eles e para invocar o dom da plena comunhão. É providencial o facto de que, no caminho para construir a unidade, a oração seja posta no centro: isto recorda-nos, mais uma vez, que a unidade não pode ser um simples produto do agir humano; ela é antes de tudo um dom de Deus, que comporta um crescimento na comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O Concílio Vaticano II diz: «Tais preces comuns são certamente um meio muito eficaz para impetrar a graça da unidade. São uma genuína manifestação dos vínculos pelos quais os católicos ainda estão unidos aos irmãos separados: “Porque onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome [diz o Senhor], aí estou Eu no meio deles” (Mt 18, 20)» (Decreto Unitatis redintegratio, 8). O caminho rumo à unidade visível entre todos os cristãos habita na oração porque, fundamentalmente, a unidade não somos nós que a «costruímos», mas é Deus que a «constrói», deriva dele, do Mistério trinitário, da unidade do Pai com o Filho no diálogo de amor que é o Espírito Santo, e o nosso compromisso ecuménico deve abrir-se à obra divina, deve fazer-se invocação quotidiana da ajuda de Deus. A Igreja é sua, e não nossa.
O tema escolhido este ano para a Semana de Oração faz referência à experiência da primeira comunidade cristã de Jerusalém, como é descrita pelos Actos dos Apóstolos; ouvimos o texto: «Eles eram assíduos ao ensino dos apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e à oração» (Act 2, 42). Devemos considerar que já no momento do Pentecostes o Espírito Santo desce sobre pessoas de diferentes línguas e culturas: isto significa que a Igreja abraça desde o início pessoas de diversas proveniências e, todavia, precisamente a partir de tais diferenças, o Espírito cria um único corpo. Como início da Igreja, o Pentecostes assinala a ampliação da Aliança de Deus a todas as criaturas, povos e tempos, para que a inteira criação caminhe rumo à sua verdadeira finalidade: ser lugar de unidade e de amor.
No trecho citado pelos Actos dos Apóstolos, quatro características definem a primeira comunidade cristã de Jerusalém como lugar de unidade e de amor, e são Lucas não quer apenas descrever algo do passado. Oferece-nos este modelo como norma da Igreja presente, porque estas quatro características devem constituir sempre a vida da Igreja. Primeira característica, ser unida e assídua à escuta do ensino dos Apóstolos, depois à comunhão fraterna, à fracção do pão e às orações. Como eu disse, estes quatro elementos ainda hoje são os pilares da vida de cada comunidade cristã e constituem também o único fundamento sólido sobre o qual progredir na busca da unidade visível da Igreja.
Antes de tudo temos a escuta do ensino dos Apóstolos, ou seja, a escuta do testemunho que eles dão da missão, da vida, morte e ressurreição do Senhor. É a isto que Paulo chama simplesmente o «Evangelho». Os primeiros cristãos recebiam o Evangelho dos lábios dos Apóstolos, eram unidos pela sua escuta e pela sua proclamação porque o Evangelho, como afirma São Paulo, «é uma força vinda de Deus para a salvação de todo aquele que crê» (Rm 1, 16). Ainda hoje, a comunidade dos fiéis reconhece na referência ao ensino dos Apóstolos a norma da própria fé: cada esforço pela construção da unidade entre todos os cristãos passa, portanto, através do aprofundamento da fidelidade ao depositum fidei que nos foi transmitido pelos Apóstolos. Firmeza na fé é o fundamento da nossa comunhão, é o alicerce da unidade cristã.
O segundo elemento é a comunhão fraterna. Na época da primeira comunidade cristã, bem como nos nossos dias, ela é a expressão mais tangível, sobretudo para o mundo externo, da unidade entre os discípulos do Senhor. Nos Actos dos Apóstolos lemos que os primeiros cristãos tinham tudo em comum, e quem dispunha de propriedades e bens, vendia-os para os dividir com os necessitados (cf. Act 2, 44-45). Na história da Igreja, esta partilha dos próprios bens encontrou modalidades de expressão sempre novas. Uma delas, peculiar, é a das relações de fraternidade e de amizade, construídas entre cristãos de diversas confissões. A história do movimento ecuménico está marcada por dificuldades e incertezas, mas é também uma história de fraternidade, de cooperação e de partilha humana e espiritual, que mudou em medida significativa as relações entre os crentes no Senhor Jesus: todos estamos comprometidos em continuar por este caminho. Portanto o segundo elemento, a comunhão, é antes de tudo comunhão com Deus através da fé; mas a comunhão com Deus cria a comunhão entre nós e manifesta-se necessariamente naquela comunhão concreta da qual falam os Actos dos Apóstolos, ou seja, a partilha. Ninguém na comunidade cristã deve sentir fome, nem ser pobre: esta é uma obrigação fundamental. A comunhão com Deus, realizada como comunhão fraterna, expressa-se concretamente no compromisso social, na caridade cristã e na justiça.
Terceiro elemento: na vida da primeira comunidade de Jerusalém era essencial o momento da fracção do pão, em que o próprio Senhor se torna presente com o único sacrifício da Cruz no seu doar-se completamente pela vida dos seus amigos: «Isto é o meu Corpo que será entregue por vós... Este é o cálice do meu Sangue... derramado por vós». «A Igreja vive da Eucaristia. Esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contém em síntese o próprio núcleo do mistério da Igreja» (João Paulo II, Encíclica Ecclesia de Eucharistia, 1). A comunhão no sacrifício de Cristo é o ápice da nossa união com Deus e portanto representa também a plenitude da unidade dos discípulos de Cristo, a plena comunhão. Durante esta semana de oração pela unidade é particularmente viva a lástima pela impossibilidade de compartilhar a mesma Mesa eucarística, sinal de que ainda estamos distantes da realização da unidade pela qual Cristo orou. Esta experiência dolorosa, que confere inclusive uma dimensão penitencial à nossa oração, deve tornar-se motivo de um compromisso ainda mais generoso da parte de todos a fim de que, removidos os obstáculos para a plena comunhão, chegue o dia em que será possível reunir-nos ao redor da Mesa do Senhor, partir juntos o Pão eucarístico e beber do mesmo cálice.
Enfim, a oração — ou, como diz são Lucas, as orações — é a quarta característica da Igreja primitiva de Jerusalém, descrita no livro dos Actos dos Apóstolos. A oração é desde sempre a atitude constante dos discípulos de Cristo, o que acompanha a sua vida diária em obediência à vontade de Deus, como nos atestam também as palavras do apóstolo Paulo, que escreve na primeira carta aos Tessalonicenses: «Vivei sempre felizes. Orai sem cessar. Em todas as circunstâncias dai graças, porque esta é a vontade de Deus para vós em Jesus Cristo» (1 Ts 5, 16-18; cf. Ef 6, 18). A oração cristã, participação na prece de Jesus, é experiência filial por excelência, como nos atestam as palavras do Pai-Nosso, oração da família — o «nós» dos filhos de Deus, dos irmãos e das irmãs — que fala ao Pai comum. Portanto, pôr-se em atitude de oração significa também abrir-se à fraternidade. Só no «nós» podemos recitar o Pai-Nosso. Por isso abramo-nos à fraternidade, que deriva do facto de sermos filhos do único Pai celeste e estarmos dispostos ao perdão e à reconciliação.
Caros Irmãos e Irmãs, como discípulos do Senhor temos uma comum responsabilidade pelo mundo, temos que prestar um serviço comum: como a primeira comunidade cristã de Jerusalém, começando a partir daquilo que já compartilhamos, temos que oferecer um forte testemunho, fundado espiritualmente e sustentado pela razão, do único Deus que se revelou e nos fala em Cristo, para sermos portadores de uma mensagem que oriente e ilumine o caminho do homem do nosso tempo, muitas vezes desprovido de pontos de referência claros e válidos. Então, é importante crescer cada dia no amor recíproco, comprometendo-nos a superar as barreiras que ainda existem entre os cristãos; sentir que existe uma verdadeira unidade interior entre todos aqueles que seguem o Senhor; colaborar o mais possível, trabalhando juntos sobre as questões ainda abertas; e sobretudo permanecendo conscientes de que neste itinerário o Senhor deve assistir-nos, ainda nos deve ajudar muito, pois sem Ele, sozinhos, sem «permanecer nele», nada podemos (cf. Jo 15, 5).
Estimados amigos, é de novo na oração que nos encontramos reunidos — particularmente nesta semana — com todos aqueles que professam a sua fé em Jesus Cristo, Filho de Deus: perseveremos na oração, sejamos homens de oração, implorando de Deus o dom da unidade, para que se realize para o mundo inteiro o seu desígnio de salvação e de reconciliação. Obrigado!
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Saudação
Amados peregrinos de língua portuguesa, sede bem-vindos! A todos saúdo com grande afeto e alegria, exortando-vos a perseverar na oração, pedindo a Deus o dom da unidade, a fim de que se cumpra no mundo inteiro o seu desígnio de salvação! Ide em paz!
Audiência geral das Quartas - 12 de Janeiro de 2011
Santa Catarina de Génova
Prezados irmãos e irmãs!
Hoje gostaria de vos falar de outra santa que tem o nome de Catarina, depois de Catarina de Sena e Catarina de Bolonha; falo de Catarina de Génova, conhecida sobretudo pela sua visão sobre o purgatório. O texto que descreve a sua vida e o seu pensamento foi publicado nessa cidade da Ligúria em 1551; ele é dividido em três parte: a Vida propriamente dita, a Demonstração e declaração do purgatório — mais conhecida como Tratado — e o Diálogo entre a alma e o corpo (cf. Livro da Vida admirável e da doutrina santa, da beata Catarina de Génova, que contém uma útil e católica demonstração e declaração do purgatório, Génova, 1551). O redactor final foi o confessor de Catarina, o sacerdote Cattaneo Marabotto.
Catarina nasceu em Génova, em 1447; última de cinco filhos, ficou órfã do pai, Giacomo Fieschi, ainda em tenra idade. A mãe, Francesca di Negro, dispensou uma válida educação cristã, a tal ponto que a maior das duas filhas se tornou religiosa. Com 16 anos, Catarina foi concedida como esposa a Giuliano Adorno, um homem que, depois de várias experiências comerciais e militares no Médio Oriente, tinha regressado a Génova para casar. A vida matrimonial não foi fácil, também devido à índole do marido, apaixonado pelo jogo de azar. Inicialmente, a própria Catarina foi induzida a levar um tipo de vida mundana em que, contudo, não conseguia encontrar a serenidade. Depois de dez anos, no seu coração havia um profundo sentido de vazio e de amargura.
A conversão teve início a 20 de Março de 1473, graças a uma experiência singular. Tendo ido à igreja de são Bento e ao mosteiro de Nossa Senhora das Graças para se confessar, ajoelhou-se diante do sacerdote e «recebeu — como ela mesma escreve — uma chaga no coração, de um imenso amor de Deus», com uma visão tão clarividente das suas misérias e dos seus defeitos e, ao mesmo tempo, da bondade de Deus, que quase desmaiou. Foi tocada no coração por este conhecimento de si mesma, da vida vazia que ela levava e da bondade de Deus. Desta experiência derivou a decisão que orientou toda a sua vida, expressa com estas palavras: «Basta com o mundo e com os pecados» (cf. Vida admirável, 3rv). Então Catarina fugiu, suspendendo a Confissão. Voltou para casa, entrou no quarto mais escondido e chorou prolongadamente. Naquele momento, foi instruída interiormente sobre a oração e adquiriu a consciência do imenso amor de Deus por ela, pecadora, uma experiência espiritual que não conseguia expressar com palavras (cf. Vida admirável, 4r). Foi nessa ocasião que lhe apareceu Jesus sofredor que carregava a cruz, como é frequentemente representado na iconografia da santa. Poucos dias depois, foi ter com o sacerdote para finalmente realizar uma boa Confissão. Aqui teve início aquela «vida de purificação» que, durante muito tempo, lhe fez sentir uma dor constante pelos pecados cometidos e que a impeliu a impor-se penitências e sacrifícios para demonstrar o seu amor a Deus.
Neste caminho, Catarina foi-se aproximando cada vez mais do Senhor, até entrar naquela que é denominada «vida unitiva», ou seja, uma relação de profunda união com Deus. Na Vida está escrito que a sua alma era orientada e ensinada interiormente só pelo dócil amor de Deus, que lhe concedia tudo aquilo que ela precisava. Catarina abandonou-se de modo tão total nas mãos do Senhor que chegou a viver, durante cerca de vinte e cinco anos — como ela escreve — «sem o intermédio de qualquer criatura, instruída e governada unicamente por Deus» (Vida, 117r-118r), alimentada sobretudo pela oração constante e pela Sagrada Comunhão recebida todos os dias, o que não era comum na sua época. Só muitos anos mais tarde o Senhor lhe concedeu um sacerdote que cuidasse da sua alma.
Catarina hesitava sempre em confiar e manifestar a sua experiência de comunhão mística com Deus, sobretudo pela profunda humildade que sentia diante das graças do Senhor. Foi só a perspectiva de dar glória a Ele e de poder favorecer o caminho espiritual de outros que a levou a narrar aquilo que se verificava nela, a partir do momento da sua conversão, que é a sua experiência originária e fundamental. O lugar da sua ascensão aos vértices místicos foi o hospital de Pammatone, a maior estrutura hospitalar genovesa, da qual foi directora e animadora. Portanto, não obstante esta profundidade da sua vida interior, Catarina vive uma existência totalmente activa. Em Pammatone foi-se formando ao seu redor um grupo de seguidores, discípulos e colaboradores, fascinados pela sua vida de fé e pela sua caridade. O próprio marido, Giuliano Adorno, foi conquistado por ela, a ponto de abandonar a sua vida desregrada, de se tornar terciário franciscano e de se transferir para o hospital, para oferecer a sua ajuda à esposa. O compromisso de Catarina no cuidado dos doentes continuou até ao fim do seu caminho terreno, a 15 de Setembro de 1510. Desde a conversão até à morte, não houve acontecimentos extraordinários, mas dois elementos caracterizaram toda a sua existência: por um lado a experiência mística, ou seja, a profunda união com Deus, sentida como uma união esponsal e, por outro, a assistência aos enfermos, a organização do hospital e o serviço ao próximo, especialmente aos mais necessitados e abandonados. Estes dois pólos — Deus e o próximo — preencheram totalmente a sua vida, transcorrida praticamente entre as paredes do hospital.
Estimados amigos, nunca devemos esquecer que quanto mais amarmos a Deus e formos constantes na oração, tanto mais conseguiresmos amar verdadeiramente quantos estão ao nosso redor, quem está perto de nós, porque seremos capazes de ver em cada pessoa o Rosto do Senhor, que ama sem limites nem distinções. A mística não cria distâncias em relação ao outro, não cria uma vida abstracta, mas sobretudo aproxima do outro, porque se começa a ver e a agir com os olhos, com o Coração de Deus.
O pensamento de Catarina sobre o purgatório, pelo qual ela é particularmente conhecida, está condensado nas últimas duas partes do livro citado no início: o Tratado sobre o purgatório e o Diálogo entre a alma e o corpo. É importante observar que, na sua experiência mística, Catarina jamais tem revelações específicas sobre o purgatório ou sobre as almas que ali estão a purificar-se. Todavia, nos escritos inspirados pela nossa santa, é um elemento central, e o modo de o descrever tem características originais em relação à sua época. O primeiro traço original diz respeito ao «lugar» da purificação das almas. No seu tempo, ele era representado principalmente com o recurso a imagens ligadas ao espço: pensava-se num certo espaço, onde se encontraria o purgatório. Em Catarina, ao contário, o purgatório não é apresentado como um elemento da paisagem das vísceras da terra: é um fogo não exterior, mas interior. Este é o purgatório, um fogo interior. A santa fala do caminho de purificação da alma, rumo à plena comunhão com Deus, a partir da própria experiência de profunda dor pelos pecados cometidos, em relação ao amor infinito de Deus (cf. Vida admirável, 171v). Ouvimos sobre o momento da conversão, quando Catarina sente repentinamente a bondade de Deus, a distância infinita da própria vida desta bondade e um fogo ardente no interior de si mesma. E este é o fogo que purifica, é o fogo interior do purgatório. Também aqui há um traço original em relação ao pensamento do tempo. Com efeito, não se começa a partir do além para narrar os tormentos do purgatório — como era habitual naquela época e talvez ainda hoje — e depois indicar o caminho para a purificação ou a conversão, mas a nossa santa começa a partir da própria experiência interior da sua vida a caminho da eternidade. A alma — diz Catarina — apresenta-se a Deus ainda vinculada aos desejos e à pena que derivam do pecado, e isto torna-lhe impossível regozijar com a visão beatífica de Deus. Catarina afirma que Deus é tão puro e santo que a alma com as manchas do pecado não pode encontrar-se na presença da majestade divina (cf. Vida admirável, 177r). E também nós sentimos como estamos distantes, como estamos repletos de tantas coisas, a ponto de não podermos ver Deus. A alma está consciente do imenso amor e da justiça perfeita de Deus e, por conseguinte, sofre por não ter correspondido de modo correcto e perfeito a tal amor, e precisamente o amor a Deus torna-se chama, é o próprio amor que a purifica das suas escórias de pecado.
Em Catarina entrevê-se a presença de fontes teológicas e místicas das quais era normal haurir na sua época. Em particular, encontra-se uma imagem típica de Dionísio, o Areopagita, ou seja, aquela do fio de ouro que liga o coração humano ao próprio Deus. Quando Deus purifica o homem, liga-o com um fio de ouro extremamente fino, que é o seu mor, e atrai-o a si com um afecto tão forte, que o homem permanece como que «superado, vencido e totalmente fora de si». Assim, o coração do homem é invadido pelo amor de Deus, que se torna o único guia, o único motor da sua existência (cf. Vida admirável, 246rv). Esta situação de elevação a Deus e de abandono à sua vontade, expressa na imagem do fio, é utilizada por Catarina para manifestar a obra da luz divina nas almas do purgatório, luz que as purifica e eleva aos esplendores dos raios fúlgidos de Deus (cf. Vida admirável, 179r).
Queridos amigos, na sua experiência de união com Deus os santos alcançam um «saber» tão profundo dos mistérios divinos, no qual o amor e o conhecimento se compenetram, a ponto de ajudarem os próprios teólogos no seu compromisso de estudo, de intelligentia fidei, de intelligentia dos mistérios da fé, de aprofundamento real dos mistérios, por exemplo daquilo que é o purgatório.
Com a sua vida, santa Catarina ensina-nos que quanto mais amamos a Deus e entramos em intimidade com Ele na oração, tanto mais Ele se faz conhecer e acende o nosso coração com o seu amor. Escrevendo acerca do purgatório, a santa recorda-nos uma verdade fundamental da fé, que se torna para nós um convite a rezar pelos defuntos, a fim de que eles possam chegar à visão beatífica de Deus na comunhão dos santos (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1032). Além disso, o serviço humilde, fiel e generoso, que a santa prestou durante toda a sua vida no hospital de Pammatone, é um exemplo luminoso de caridade para todos e um encorajamento especialmente para as mulheres que oferecem uma contribuição fundamental para a sociedade e a Igreja com a sua obra preciosa, enriquecida pela sua sensibilidade e pela atenção aos mais pobres e necessitados. Obrigado!
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Saudação
Amados peregrinos de língua portuguesa, de quem me apraz salientar a presença do grupo de juristas do Brasil: para todos vai a minha saudação amiga de boas-vindas, com o convite a aderirdes sempre mais a Jesus Cristo e a fazerdes do seu Evangelho o guia do vosso pensamento e da vossa vida. Então sereis, na sociedade, aquele fermento de vida nova que a humanidade precisa para construir um futuro mais justo e solidário, que sonhais e servis com a vossa actividade. Sobre vós e vossas famílias, desça a minha Bênção Apostólica.
Audiência geral das Quartas - 5 de Janeiro de 2011
Estimados irmãos e irmãs!
Estou feliz por vos receber nesta primeira Audiência geral do novo ano e, de todo o coração, transmito-vos, bem como às vossas famílias os meus fervorosos bons votos. O Senhor do tempo e da história oriente os nossos passos pelo caminho do bem e conceda a cada um abundantes graças e prosperidade. Ainda circundados pela luz do Santo Natal, que nos convida à alegria pelo advento do Salvador, hoje estamos na vigília da Epifania, na qual celebramos a manifestação do Senhor a todos os povos. A festividade do Natal fascina, tanto hoje como outrora, mais do que as outras grandes festas da Igreja; fascina porque todos, de certo modo, intuem que o nascimento de Jesus tem a ver com as aspirações e as esperanças mais profundas do homem. O consumismo pode distrair desta saudade interior, mas se no coração existe o desejo de receber aquele Menino que traz a novidade de Deus, que veio para nos oferecer a vida em plenitude, as luzes dos adornos natalícios podem tornar-se sobretudo um reflexo da Luz que se acendeu mediante a Encarnação de Deus.
Nas celebrações litúrgicas destes dias santos vivemos de maneira misteriosa mas real a entrada do Filho de Deus no mundo e fomos iluminados mais uma vez pela luz do seu fulgor. Cada celebração é presença actual do mistério de Cristo e, nela, prolonga-se a história da salvação. A propósito do Natal, o Papa são Leão Magno afirma: «Embora a sucessão das obras corpóreas agora tenha passado, como foi ordenado antecipadamente no desígnio eterno..., todavia nós adoramos continuamente o mesmo parto da Virgem que produz a nossa salvação» (Sermão sobre o Natal do Senhor, 29, 2), e esclarece: «Porque aquele dia não passou, de tal modo que tenha passado também o poder da obra que então foi revelada» (Sermão sobre a Epifania, 36, 1). Celebrar os acontecimentos da Encarnação do Filho de Deus não é uma simples recordação de eventos do passado, mas significa tornar presentes aqueles mistérios portadores de salvação. Na Liturgia, na celebração dos Sacramentos, aqueles mistérios fazem-se actuais e tornam-se eficazes para nós, hoje. São Leão Magno afirma novamente: «Tudo aquilo que o Filho de Deus fez e ensinou para reconciliar o mundo, não o conhecemos somente através da narração de obras levadas a cabo no passado, mas vivemos sob o efeito do dinamismo de tais obras presentes» (Sermão 52, 1).
Na Constituição sobre a sagrada liturgia, o Concílio Vaticano II ressalta o modo como a obra da salvação realizada por Cristo continua na Igreja, mediante a celebração dos santos mistérios, graças à acção do Espírito Santo. Já no Antigo Testamento, no caminho rumo à plenitude da fé, temos testemunhos do modo como a presença e a acção de Deus é interposta através dos sinais, por exemplo o sinal do fogo (cf. Êx 3, 2 ss.; 19, 18). Mas a partir da Encarnação realiza-se algo surpreendente: o regime de contacto salvífico com Deus transforma-se radicalmente e a carne torna-se o instrumento da salvação: «Verbum caro factum est», «o Verbo fez-se carne», escreve o evangelista João, enquanto um autor cristão do século III, Tertuliano, afirma: «Caro salutis est cardo», «a carne é o fulcro da salvação» (De carnis resurrectione, 8, 3: PL 2, 806).
O Natal é já o primeito fruto do «sacramentum-mysterium paschale», ou seja, o princípio do mistério central da salvação que culmina na paixão, morte e ressurreição, porque Jesus dá início à oferenda de si mesmo por amor, desde o primeiro instante da sua existência humana, no seio da Virgem Maria. Por conseguinte, a noite de Natal está profundamente vinculada à grande vigília da noite da Páscoa, quando a redenção se realiza no sacrifício glorioso do Senhor morto e ressuscitado. O próprio presépio, como imagem da Encarnação do Verbo, à luz da narração evangélica, já alude à Páscoa, e é interessante ver como em alguns ícones da Natividade, na tradição oriental, o Menino Jesus é representado envolto em faixas e colocado numa manjedoura que tem a forma de um sepulcro; uma alusão ao momento em que Ele será deposto da cruz, envolvido num lençol e depositado num sepulcro escavado na rocha (cf. Lc 2, 7; e 23, 53). Encarnação e Páscoa não se encontram uma ao lado da outra, mas constituem os dois pontos-chave inseparáveis da única fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus Encarnado e Redentor. Cruz e Ressurreição pressupõem a Encarnação. Só porque verdadeiramente o Filho, e nele o próprio Deus, «desceu» e «se fez carne», a morte e a ressurreição de Jesus constituem acontecimentos que nos são contemporâneos e nos dizem respeito, nos arrebatam da morte e nos abrem para um futuro em que esta «carne», a existência terrena e transitória, entrará na eternidade de Deus. Nesta perspectiva unitária do Mistério de Cristo, a visita ao presépio orienta para a visita à Eucaristia, onde está presente de modo real o Cristo crucificado e ressuscitado, o Cristo vivo.
Então, a celebração litúrgica do Natal não representa apenas uma recordação, mas é sobretudo um mistério; não é só memória, mas também presença. Para captar o sentido destes dois aspectos inseparáveis, é necessário viver intensamente todo o Tempo natalício como a Igreja o apresenta. Se o considerarmos em sentido lato, ele prolonga-se por quarenta dias, de 25 de Dezembro a 2 de Fevereiro, desde a celebração da Noite de Natal, até à Maternidade de Maria, à Epifania, ao Baptismo de Jesus, às bodas de Caná, à Apresentação no Templo, precisamente em analogia com o Tempo pascal, que forma uma unidade de cinquenta dias, até ao Pentecostes. A manifestação de Deus na carne é um acontecimento que revelou a Verdade na história. Com efeito, a data de 25 de Dezembro, única à ideia da manifestação solar — Deus que aparece como luz sem ocaso, no horizonte da história — recorda-nos que não se trata unicamente de uma ideia, aquela segundo a qual Deus é a plenitude da luz, mas de uma realidade para nós homens já realizada e sempre actual: tanto hoje como outrora, Deus revela-se na carne, ou seja, no «corpo vivo» da Igreja peregrina no tempo, e nos Sacramentos concede-nos hoje a salvação.
Os símbolos das celebrações natalícias, evocados pelas Leituras e pelas orações, conferem à liturgia deste Tempo um profundo sentido de «epifania» de Deus no seu Cristo-Verbo encarnado, ou seja, de «manifestação» que possui também um significado escatológico, isto é, orienta para os últimos tempos. Já no Advento, as duas vindas, a histórica e a do fim da história, estavam directamente vinculadas entre si; mas é em particular na Epifania e no Baptismo de Jesus que a manifestação messiânica se celebra na perspectiva das expectativas escatológicas: a consagração messiânica de Jesus, Verbo encarnado, mediante a efusão do Espírito Santo de forma visível, completa o tempo das promessas e assim inaugura os últimos tempos.
É necessário resgatar este Tempo natalício de um revestimento demasiado moralista e sentimental. A celebração do Natal não nos propõe apenas alguns exemplos a imitar, como a humildade e a pobreza do Senhor, a sua benevolência e o seu amor pelos homens; mas é sobretudo um convite a deixar-se transformar totalmente por Aquele que entrou na nossa carne. São Leão Magno exclama: «O Filho de Deus... uniu-se a nós e vinculou-nos a si de tal modo que a humilhação de Deus até à condição humana se tornasse uma elevação do homem até às alturas de Deus» (Sermão sobre o Natal do Senhor, 27, 2). A manifestação de Deus tem como finalidade a nossa participação na vida divina, na realização em nós mesmos do mistério da sua Encarnação. Tal mistério constitui o cumprimento da vocação do homem. São Leão Magno explica-nos novamente a importância concreta e sempre actual do mistério do Natal para a vida cristã: «As palavras do Evangelho e dos Profetas... inflamam o nosso espírito e ensinam-nos a compreender a Natividade do Senhor, este mistério do Verbo que se fez carne, não tanto como uma recordação de um acontecimento passado, mas sobretudo como um facto que se realiza sob os nossos olhos... é como se, na solenidade hodierna, ainda se proclamasse: “Anuncio-vos uma grande alegria, que será para todo o povo: hoje, na cidade de David, nasceu para vós um Salvador, que é Cristo Senhor”» (Sermão sobre o Natal do Senhor, 29, 1). E acrescenta: «Reconhece, cristão, a tua dignidade e, tendo-te tornado partícipe da natureza divina, presta atenção a não recair, com uma conduta indigna, de tal grandeza na baixeza primitiva» (Sermão 1 sobre o Natal do Senhor, 3).
Estimados amigos, vivamos este Tempo natalício com intensidade: depois de termos adorado o Filho de Deus que se fez homem e foi colocado numa manjedoura, agora somos chamados a passar ao altar do Sacrifício, onde Cristo, o Pão que desceu do céu, se nos oferece como verdadeiro alimento para a vida eterna. E aquilo que nós vimos com os nossos olhos, na mesa da Palavra e do Pão de Vida, o que contemplamos, aquilo que as nossas mãos tocaram, ou seja o Verbo que se fez carne, anunciemo-lo com alegria ao mundo e testemunhemo-lo generosamente com toda a nossa vida. Renovo de coração a todos vós e aos vossos entes queridos os sinceros bons votos para o Novo Ano e desejo-vos uma feliz festividade da Epifania.
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Saudação
Saúdo com profunda amizade os peregrinos de língua portuguesa presentes nesta Audiência, particularmente os fiéis vindos do Brasil. Neste início de ano, invoco sobre todos vós as luzes e bênçãos do Céu, para que possais anunciar e testemunhar alegremente, com palavras e obras, a vinda do Verbo que se fez carne. Ide em paz!
Homilia do Papa na Missa de Ordenação Episcopal - Roma, fevereiro de 2011
Estimados irmãos e irmãs!
Saúdo carinhosamente estes cinco Irmãos Presbíteros que daqui a pouco receberão a Ordenação episcopal: Mons. Savio Hon Tai-Fai, Mons. Marcello Bartolucci, Mons. Celso Morga Iruzubieta, Mons. Antonio Guido Filipazzi e Mons. Edgar Peña Parra. Desejo manifestar-lhes a minha gratidão, assim como a da Igreja, pelo serviço que até agora desempenharam com generosidade e dedicação, e formular o convite a acompanhá-los com a oração no ministério ao qual são chamados na Cúria Romana e nas Representações pontifícias como Sucessores dos Apóstolos, a fim de que sejam sempre iluminados e orientados pelo Espírito Santo na messe do Senhor.
«A messe é abundante, mas os trabalhadores são poucos! Orai, pois, ao Senhor da messe, para que envie trabalhadores para a sua messe!» (Lc 10, 2). Esta palavra do Evangelho da Missa de hoje diz-nos respeito particularmente de perto nesta hora. É a hora da missão: o Senhor envia-vos, estimados amigos, para a sua messe. Tendes o dever de cooperar naquela função de que fala o profeta Isaías na primeira leitura: «O Senhor mandou-me a levar o feliz anúncio aos miseráveis, a curar as chagas dos corações feridos» (Is 61, 1). É nisto que consiste o trabalho para a messe, no campo de Deus, no campo da história humana: levar aos homens a luz da verdade, libertá-los da pobreza de verdade, que é a verdadeira tristeza e a verdadeira pobreza do homem. Levar-lhes o feliz anúncio que não é apenas uma palavra, mas um acontecimento: Deus, Ele mesmo, veio entre nós. Ele toma-nos pela mão, eleva-nos rumo a Si próprio, e assim o coração ferido é curado. Demos graças ao Senhor, porque Ele envia trabalhadores para a messe da história do mundo. Demos-lhe graças, porque Ele vos envia a vós, porque dissestes sim e porque neste momento pronunciareis novamente o vosso «sim» e sereis os trabalhadores do Senhor para os homens.
«A messe é abundante» — também hoje, precisamente hoje. Embora possa parecer que uma grande parte do mundo moderno, dos homens de hoje, voltem as costas para Deus e considerem a fé algo do passado — todavia existe o anseio de que finalmente sejam estabelecidos a justiça, o amor e a paz, de que a pobreza e o sofrimento sejam ultrapassados, de que os homens encontrem a alegria. Todo este anseio está presente no mundo contemporâneo, o anseio por aquilo que é grandioso, por quanto é bom. Trata-se da saudade do Redentor, do próprio Deus, mesmo lá onde Ele é negado. Precisamente nesta hora, o trabalho no campo de Deus é de modo particular urgente e precisamente nesta hora nós sentimos de maneira particularmente dolorosa a verdade da palavra de Jesus: «Os trabalhadores são poucos». Ao mesmo tempo, o Senhor permite-nos compreender que não podemos ser simplesmente nós, sozinhos, a enviar operários para a sua messe; que não se trata de uma questão de management, da nossa própria capacidade organizativa. Os trabalhadores para o campo da sua messe, só o próprio Deus os pode enviar. No entanto, Ele deseja enviá-los através da porta da nossa oração. Nós podemos cooperar para a vinda dos trabalhadores, mas só o podemos fazer, cooperando com Deus. Deste modo, esta hora da acção de graças pela realização de um envio em missão constitui, de maneira particular, também a hora da oração: Senhor, enviai trabalhadores para a vossa messe! Abri os corações ao vosso chamamento! Não permitais que a nossa súplica seja vã!
Por conseguinte, a liturgia do presente dia oferece-nos duas definições da vossa missão de Bispos, de sacerdotes de Jesus Cristo: ser trabalhadores na messe da história do mundo, com a tarefa de purificar, abrindo as portas do mundo ao senhorio de Deus, a fim de que a vontade de Deus seja feita, assim na terra como no céu. Além disso, o nosso ministério é descrito como cooperação na missão de Jesus Cristo, como participação no dom do Espírito Santo, concedido a Ele enquanto Messias, o Filho ungido por Deus. A Carta aos Hebreus — a segunda leitura — completa-o ainda a partir da imagem do sumo sacerdote Melquisedec, que é uma referência misteriosa a Cristo, o verdadeiro Sumo Sacerdote, o Rei da paz e de justiça.
Contudo, gostaria de dizer também algo sobre o modo como esta grande tarefa deve ser desempenhada a nível prático — sobre aquilo que ela exige concretamente de nós. Por ocasião da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, as Comunidades cristãs de Jerusalém tinham escolhido para este ano as palavras dos Actos dos Apóstolos, em que são Lucas quer explicar de modo normativo quais são os elementos fundamentais da existência cristã na comunhão da Igreja de Jesus Cristo. Ele exprime-se assim: «Eram assíduos no ensino dos Apóstolos e na comunhão, na fracção do pão e nas orações» (Act 2, 42). Nestes quatro elementos fundamentais do ser da Igreja está descrita, contemporaneamente, a tarefa essencial dos seus Pastores. Estes quatro elementos são conservados em unidade, mediante a expressão «eram assíduos» — «erant perseverantes»: a Bíblia latina traduz assim a expressão grega: a perseverança, a assiduidade, pertence à essência do ser cristão, e é fundamental para a sua tarefa de Pastores, de trabalhadores na messe do Senhor. O Pastor não deve ser uma vara no pântano, que se inclina segundo o sopro do vento, um servo do espírito do tempo. O ser intrépido, a coragem de se opor às correntes do momento, pertence de maneira essencial à tarefa do Pastor. Ele não deve ser uma vara no pântano, mas sim — segundo a imagem do primeiro Salmo — deve ser como uma árvore que tem raízes profundas, nas quais se encontra solidamente arraigada. Isto nada tem a ver com a rigidez ou a inflexibilidade. Somente onde existe estabilidade há também crescimento. O cardeal Newman, cujo caminho foi caracterizado por três conversões, afirma que viver é transformar-se. Contudo, as suas três conversões e as transformações nelas ocorridas constituem um único caminho coerente: o caminho da obediência à verdade, a Deus; o caminho da verdadeira continuidade, que precisamente deste modo faz progredir.
«Assíduos no ensino dos Apóstolos» — a fé tem um conteúdo concreto. Não é uma espiritualidade indeterminada, uma sensação indefinível para a transcendência. Deus agiu, e foi precisamente Ele que falou. Realizou realmente algo, e disse algo de maneira autêntica. Sem dúvida, a fé é em primeiro lugar um confiar-se a Deus, uma relação viva com Ele. Mas o Deus ao qual nos confiamos tem um rosto e concedeu-nos a sua Palavra. Podemos contar com a estabilidade da sua Palavra. A Igreja antiga resumiu o núcleo essencial do ensinamento dos Apóstolos na chamada Regula fidei que, em síntese, é idêntica às Profissões de Fé. Eis o fundamento confiável, sobre o qual também nós cristãos nos fundamentamos hoje. Trata-se da base segura sobre a qual podemos construir a casa da nossa fé, da nossa vida (cf. Mt 7, 24 ss.). E, mais uma vez, a estabilidade e a definitividade daquilo em que acreditamos não significam rigidez. João da Cruz comparava o mundo da fé com uma mina em que descobrimos sempre novos tesouros — tesouros em que se desenvolvem a única fé, a profissão do Deus que se manifesta em Cristo. Como Pastores da Igreja, vivemos desta fé e assim podemos também anunciá-la como a alegre mensagem que nos torna seguros do amor de Deus e do facto de sermos por Ele amados.
O segundo pilar da existência eclesial é definido por são Lucas como —communio. Depois do Concílio Vaticano II, este termo tornou-se uma palavra fulcral da teologia e do anúncio porque nele, com efeito, se manifestam todas as dimensões do ser cristão e da vida eclesial. O que Lucas quer expressar, precisamente, com tal palavra neste texto não o sabemos. Por conseguinte, podemos tranquilamente compreendê-la com base no contexto global do Novo Testamento e da Tradição apostólica. Uma primeira grande definição de communio foi feita por são João, no início da sua Primeira Carta: aquilo que vimos e ouvimos, aquilo que as nossas mãos tocaram, é quanto vos anunciamos, para que também vós estejais em communio connosco. E a nossa communio é comunhão com o Pai e com o seu Filho, Jesus Cristo (cf. 1 Jo 1, 1-4). Por nós, Deus tornou-se visível e tocável, e deste modo criou uma comunhão real com Ele mesmo. Entramos em tal comunhão através do acto de crer e de viver juntamente com aqueles que O tocaram. Com eles, e através deles, nós mesmos de certa forma podemos vê-lo, e tocamos o Deus que se fez próximo. Assim, a dimensão horizontal e a dimensão vertical estão aqui inseparavelmente entrelaçadas entre si. Mediante o acto de estarmos em comunhão com os Apóstolos, de estarmos na sua fé, nós mesmos entramos em contacto com o Deus vivo. Caros amigos, para esta finalidade serve o ministério dos Bispos: que esta corrente da comunhão não se interrompa. Esta é a essência da Sucessão apostólica: conservar a comunhão com aqueles que encontraram o Senhor de forma visível e tangível, e assim manter aberto o Céu, a presença de Deus no meio de nós. Somente através da comunhão com os Sucessores dos Apóstolos, também nós entramos em contacto com o Deus encarnado. Mas também o contrário é válido: só graças à comunhão com Deus, somente graças à comunhão com Jesus Cristo, esta cadeia das testemunhas permanece unida. Ninguém jamais é bispo sozinho, diz-nos o Concílio Vaticano II, mas sempre exclusivamente no colégio dos Bispos. Além disso, ele não pode encerrar-se no tempo da própria geração. À colegialidade pertence o entrelaçamento de todas as gerações, a Igreja viva de todos os tempos. Vós, estimados Irmãos no Episcopado, tendes a missão de conservar esta comunhão católica. Sabei que o Senhor encarregou são Pedro e os seus sucessores para serem o centro de tal comunhão, os garantes da permanência na totalidade da comunhão apostólica e da sua fé. Oferecei a vossa ajuda a fim de que permaneça viva a alegria pela grande unidade da Igreja, pela comunhão de todos os lugares e tempos, pela comunhão da fé que abarca o céu e a terra. Vivei a communio e vivei com o coração, dia após dia, o seu fulcro mais profundo naquele momento sagrado, em que o próprio Senhor se oferece na sagrada Comunhão.
Assim, chegamos ao sucessivo elemento fundamental da existência eclesial, mencionado por são Lucas: a fracção do pão. Nesta altura, o olhar do Evangelista volta atrás, rumo aos discípulos de Emaús, que reconheceram o Senhor pelo gesto da fracção do pão. E dali, o olhar volta ainda atrás, para a hora da Última Ceia em que Jesus, ao partir o pão, se distribuiu a si mesmo, tornando-se pão para nós e antecipando a sua sua morte e a sua ressurreição. Partir o pão — a sagrada Eucaristia constitui o fulcro da Igreja e deve ser o centro do nosso ser cristãos e da nossa vida sacerdotal. O Senhor concede-se a nós. O Ressuscitado entra no meu íntimo e deseja transformar-se para me fazer entrar numa profunda comunhão com Ele. Deste modo, abre-me também a todos os outros: nós, os muitos, somos um só pão e um só corpo, diz são Paulo (cf. 1 Cor 10, 17). Procuremos celebrar a Eucaristia com uma dedicação, um fervor cada vez mais profundo, procuremos cadenciar os nossos dias em conformidade com a sua medida, procuremos deixar-nos plasmar por ela. Partir o pão — é assim que se exprime ao mesmo tempo também a partilha, a transmissão do nosso amor pelo próximo. A dimensão social, a partilha não constitui um suplemento moral que se acrescenta à Eucaristia, mas faz parte dela. Isto manifesta-se com clareza, precisamente a partir do versículo que, nos Actos dos Apóstolos, se segue àquele que acaba de ser citado: «Todos os fiéis... conservavam tudo em comum», afirma Lucas (2, 44). Prestemos atenção a fim de que a fé se manifeste sempre no amor e na justiça de uns em relação aos outros, e que a nossa práxis social seja inspirada pela fé; e que a fé seja vivida no amor.
Como último pilar da existência eclesial, Lucas menciona «as orações». Ele fala no plural: orações. O que quer dizer com isto? Provavelmente, ele pensa na participação da primeira Comunidade de Jerusalém nas orações no templo, nos ordenamentos comuns da oração. Deste modo, põe-se em evidência algo importante. Por um lado, a oração deve ser muito pessoal, um unir-se a Deus no mais profundo. Deve ser a minha luta com Ele, a minha busca dele, a minha acção de graças por Ele e a minha alegria nele. Todavia, nunca é exclusivamente algo particular do meu «eu» individual, que não diz respeito aos outros. Rezar é, essencialmente, também sempre um orar no «nós» dos filhos de Deus. Somente neste «nós» somos filhos do Pai nosso, que o Senhor nos ensinou a recitar. Só este «nós» nos abre o caminho para o Pai, por um lado, a nossa oração deve tornar-se cada vez mais pessoal, tocar e penetrar sempre mais profundamente o núcleo do nosso «eu». Por outro, deve alimentar-se sempre da comunhão dos orantes, da unidade do Corpo de Cristo, para me plasmar verdadeiramente a partir do amor de Deus. Assim o rezar, em última análise, não constitui uma actividade no meio das outras, um determinado espaço do meu tempo. Rezar é a resposta ao imperativo que se encontra no início do Cânone, na Celebração eucarística: Sursum corda — corações ao alto! É a ascensão da minha existência rumo à altura de Deus. Em são Gregório Magno encontra-se uma bonita palavra a este propósito. Ele recorda que Jesus chama João Baptista uma «lâmpada que arde e resplandece» (Jo 5, 35), e continua: «Ardente pelo desejo celeste, resplandecente pela palavra. Por conseguinte, a fim de que seja conservada a veridicidade do anúncio, deve ser conservada a altura da vida» (Hom. in Ez. 1, 11, 7, CCL 142, 134). A altura, a medida alta da vida, que precisamente hoje é tão essencial para o testemunho a favor de Jesus Cristo, só podemos encontrá-la se na oração nos deixarmos, continuamente, atrair por Ele rumo à sua própria altura.
Duc in altum (Lc 5, 4) — Fazei-vos ao largo e lançai as redes para a pesca. É quanto disse Jesus a Pedro e aos seus companheiros, quando os chamou a tornar-se «pescadores de homens». Duc in altum — o Papa João Paulo ii, nos seus últimos anos, retomou com vigor estas palavras, proclamando-as em voz alta aos discípulos do Senhor de hoje. Duc in altum — diz o Senhor nesta hora também a vós, queridos amigos. Fostes chamados para assumir cargos relacionados com a Igreja universal. Sois chamados a lançar a rede do Evangelho no mar agitado deste tempo, para obter a adesão dos homens a Cristo; para os retirar, por assim dizer, das águas salinas da morte e da obscuridade em que a luz do céu não penetra. Deveis levá-los para a terra da vida, na comunhão com Jesus Cristo.
Num trecho do primeiro livro da sua obra sobre a Santíssima Trindade, santo Hilário de Poitiers irrompe, repentinamente, numa oração: é por isso que rezo, «a fim de que Vós enchais as velas desfraldadas da nossa fé e da nossa profissão, com o sopro do vosso Espírito, e que me impulsione para a frente, na travessia do meu anúncio» (I 37, CCL 62, 35 s.). Sim, por isso oremos nesta hora por vós, dilectos amigos. Por conseguinte, desfraldai as velas das vossas almas, as velas da fé, da esperança e do amor, a fim de que o Espírito Santo possa enchê-las e conceder-vos realizar uma viagem abençoada como pescadores de homens no oceano do nosso tempo. Amém.
Homilia na Festa da Apresentação do Senhor - Roma 2011
Prezados irmãos e irmãs!
Na festa hodierna contemplamos o Senhor Jesus que Maria e José apresentam no templo «para O oferecer ao Senhor» (Lc 2, 22). Nesta cena evangélica revela-se o mistério do Filho da Virgem, o consagrado do Pai, que veio ao mundo para cumprir fielmente a sua vontade (cf. Hb 10, 5-7). Simeão indica-o como «luz para iluminar as nações» (Lc 2, 32) e anuncia com palavra profética a sua oferta suprema a Deus e a sua vitória final (cf. Lc 2, 32-35). É o encontro dos dois Testamentos, Antigo e Novo. Jesus entra no antigo templo, Ele que é o novo Templo de Deus: vem visitar o seu povo, obedecendo à Lei e inaugurando os tempos últimos da salvação.
É interessante observar de perto este ingresso do Menino Jesus na solenidade do templo, num grande «vaivém» de muitas pessoas, ocupadas com os seus afazeres: os sacerdotes e os levitas com os seus turnos de serviço, os numerosos devotos e peregrinos, desejosos de se encontrar com o Deus santo de Israel. Porém, nenhum deles se dá conta de nada. Jesus é um menino como os outros, filho primogénito de dois pais muito simples. Até os sacerdotes são incapazes de captar os sinais da nova e especial presença do Messias e Salvador. Só dois anciãos, Simeão e Ana, descobrem a grande novidade. Guiados pelo Espírito Santo, eles encontram nesse Menino o cumprimento da sua longa espera e vigilância. Ambos contemplam a luz de Deus, que vem iluminar o mundo, e o seu olhar profético abre-se ao futuro, como anúncio do Messias: «Lumen ad revelationem gentium!» (Lc 2, 32). Na atitude profética dos dois anciãos está toda a Antiga Aliança que exprime a alegria do encontro com o Redentor. Ao virem o Menino, Simeão e Ana intuem que Ele é precisamente o Esperado.
A Apresentação de Jesus no templo constitui um ícone eloquente da doação total da própria vida por quantos, homens e mulheres, são chamados a reproduzir na Igreja e no mundo, mediante os conselhos evangélicos, «os traços característicos de Jesus casto, pobre e obediente» (Vita consecrata, 1). Por isso, a Festa hodierna foi escolhida pelo Venerável João Paulo II para celebrar o anual Dia da Vida Consagrada. Neste contexto, dirijo uma saudação cordial e reconhecida a D. João Braz de Aviz, que há pouco nomeei Prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e para as Sociedades de Vida Apostólica, com o Secretário e os colaboradores. Saúdo com afecto os Superiores-Gerais presentes e todas as pessoas consagradas.
Gostaria de propor três breves pensamentos para a reflexão nesta Festa. O primeiro: o ícone evangélico da Apresentação de Jesus no templo contém o símbolo fundamental da luz que, partindo de Cristo, se irradia sobre Maria e José, sobre Simeão e Ana e, através deles, sobre todos. Os Padres da Igreja uniram esta irradiação ao caminho espiritual. A vida consagrada exprime este caminho de modo especial como «filocalia», amor pela beleza divina, reflexo da bondade de Deus (cf. ibid., 19). No rosto de Cristo resplandece a luz de tal beleza. «A Igreja contempla o rosto transfigurado de Cristo, para se confirmar na fé e não correr o risco de perder ao ver o seu rosto desfigurado na Cruz... ela é a Esposa na presença do Esposo, que participa do seu mistério, envolvida pela sua luz, [que] atinge todos os seus filhos... Mas uma singular experiência dessa luz que dimana do Verbo encarnado é feita, sem dúvida, pelos que são chamados à vida consagrada. Na verdade, a profissão dos conselhos evangélicos coloca-os como sinal e profecia para a comunidade dos irmãos e para o mundo» (Ibid., 15).
Em segundo lugar, o ícone evangélico manifesta a profecia, dom do Espírito Santo. Contemplando o Menino Jesus, Simeão e Ana vislumbram o seu destino de morte e ressurreição para a salvação de todos os povos e anunciam tal mistério como salvação universal. A vida consagrada é chamada a tal testemunho profético, ligado à sua dupla atitude contemplativa e activa. De facto, aos consagrados e consagradas é dado manifestar o primado de Deus, a paixão pelo Evangelho praticado como forma de vida e anunciado aos pobres e aos últimos da terra. «Em virtude desta primazia, nada pode ser preferido ao amor pessoal por Cristo e pelos pobres, nos quais Ele vive. A verdadeira profecia nasce de Deus, da amizade com Ele, da escuta diligente da sua Palavra nas diversas circunstâncias da história» (Ibid., 84). Deste modo a vida consagrada, na sua vivência diária pelos caminhos da humanidade, manifesta o Evangelho e o Reino já presente e concreto.
Em terceiro lugar, o ícone evangélico da Apresentação de Jesus no templo expressa a sabedoria de Simeão e Ana, a sabedoria de uma vida dedicada totalmente à busca do rosto de Deus, dos seus sinais, da sua vontade; uma vida dedicada à escuta e ao anúncio da sua Palavra. «“Faciem tuam, Domine, requiram”: busco a vossa face, ó Senhor (Sl 26, 8)... A vida consagrada é no mundo e na Igreja sinal visível desta busca do rosto do Senhor e dos caminhos que a Ele conduzem (cf. Jo 14, 8)... A pessoa consagrada testemunha portanto o empenho alegre e diligente da busca assídua e sábia da vontade divina» (cf. Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e para as Sociedades de Vida Apostólica, Instrução O serviço da autoridade e a obediência. Faciem tuam Domine requiram [2008], 1).
Caros irmãos e irmãs, sede ouvintes assíduos da Palavra, porque toda a sabedoria de vida nasce da Palavra do Senhor! Sede perscrutadores da Palavra através da lectio divina, porque a vida consagrada «nasce da escuta da Palavra de Deus e acolhe o Evangelho como sua norma de vida». Deste modo, viver no seguimento de Cristo casto, pobre e obediente é uma “exegese” viva da Palavra de Deus. O Espírito Santo, por cuja virtude foi escrita a Bíblia, é o mesmo que ilumina a Palavra de Deus, com nova luz, para os fundadores e fundadoras. Dela brotou cada um dos carismas e dela cada regra quer ser expressão, dando origem a itinerários de vida cristã marcados pela radicalidade evangélica» (Verbum Domini, 83).
Hoje vivemos, sobretudo nas sociedades mais avançadas, uma condição muitas vezes marcada por uma pluralidade radical, por uma marginalização progressiva da religião da esfera pública, de um relativismo que atinge os valores fundamentais. Isto exige que o nosso testemunho cristão seja luminoso e coerente, e que o nosso esforço educativo seja cada vez mais atento e generoso. A vossa obra apostólica, em particular, dilectos irmãos e irmãs, se torne empenho de vida que acede com paixão perseverante à Sabedoria como verdade e beleza, «esplendor da verdade». Sabei orientar com a sabedoria da vossa vida, e com a confiança nas possibilidades inesgotáveis da verdadeira educação, a inteligência e o coração dos homens e das mulheres do nosso tempo em relação à «vida boa do Evangelho».
Neste momento, dirijo o meu pensamento com carinho especial a todos os consagrados e consagradas, em todas as partes da terra, enquanto vos confio à Bem-Aventurada Virgem Maria:
Ó Maria, Mãe da Igreja,
confio-te toda a vida consacrada,
para que lhe obtenhas a plenitude da luz divina:
viva na escuta da Palavra de Deus,
na humildade da sequela de Jesus, teu Filho e nosso Senhor,
no acolhimento da visita do Espírito Santo,
na alegria diária do magnificat,
a fim de que a Igreja seja edificada pela santidade de vida
destes teus filhos e filhas,
no mandamento do amor. Amém!
Celebração de Conclusão da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos - 25/01/2011
Prezados irmãos e irmãs!
Seguindo o exemplo de Jesus, que na vigília da sua paixão rezou ao Pai pelos seus discípulos, «para que todos sejam um só» (Jo 17, 21), os cristãos continuam a invocar incessantemente de Deus o dom da unidade. Este pedido faz-se mais intenso durante a Semana de oração, que se encerra hoje, quando as Igrejas e as Comunidades eclesiais meditam e rezam em conjunto pela unidade de todos os cristãos. Este ano, o tema oferecido à nossa meditação foi proposto pelas Comunidades cristãs de Jerusalém, às quais gostaria de manifestar o meu profundo agradecimento, acompanhado pela certeza do afecto e da oração, tanto da minha parte como de toda a Igreja. Os cristãos da Cidade Santa convidam-nos a renovar e revigorar o nosso compromisso pelo restabelecimento da plena unidade, meditando sobre o modelo de vida dos primeiros discípulos de Cristo, reunidos em Jerusalém: «Eles — lemos nos Actos dos Apóstolos — eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e às orações» (Act 2, 42). É este o retrato da primeira comunidade, nascida em Jerusalém no mesmo dia do Pentecostes, suscitada pela pregação que o Apóstolo Pedro, cheio do Espírito Santo, dirige a todos aqueles que tinham chegado à Cidade Santa para a festividade. Uma comunidade não fechada em si mesma mas, desde o seu nascimento, católica, universal, capaz de abraçar pessoas de diferentes línguas e culturas, como o próprio livro dos Actos dos Apóstolos nos testemunha. Uma comunidade não fundada sobre um pacto entre os seus membros, nem pela simples partilha de um programa ou de um ideal, mas pela profunda comunhão com Deus, que se revelou no seu Filho, pelo encontro com Cristo morto e ressuscitado.
Num breve sumário, que conclui o capítulo iniciado com a narração da descida do Espírito Santo no dia de Pentecostes, o evangelista Lucas apresenta sinteticamente a vida desta primeira comunidade: quantos tinham acolhido a palavra anunciada por Pedro e foram baptizados, ouviam a Palavra de Deus, transmitida pelos Apóstolos; permaneciam juntos de bom grado, desempenhando serviços necessários e compartilhando livre e generosamente os bens materiais entre si; celebravam o sacrifício de Cristo na Cruz, o seu mistério de morte e ressurreição, na Eucaristia, repetindo o gesto da fracção do pão; louvavam e davam graças continuamente ao Senhor, invocando a sua ajuda nas dificuldades. Contudo, esta descrição não é simplesmente uma recordação do passado, e nem sequer a apresentação de um exemplo a imitar ou de uma meta ideal a alcançar. Pelo contrário, ela é a afirmação da presença e da obra do Espírito Santo na vida da Igreja. Trata-se de uma confirmação, repleta de confiança, de que o Espírito Santo, unindo todos em Cristo, constitui o princípio da unidade da Igreja e faz de todos os fiéis um só.
A doutrina dos Apóstolos, a comunhão fraterna, a fracção do pão e a oração são as formas concretas de vida da primeira comunidade cristã de Jerusalém, reunida pela obra do Espírito Santo, mas ao mesmo tempo constituem as características essenciais de todas as comunidades cristãs, de todos os tempos e lugares. Em síntese, poderíamos dizer que eles representam também as dimensões fundamentais da unidade do Corpo visível da Igreja.
Temos que ser reconhecidos porque no curso das últimas décadas o movimento ecuménico, surgido «sob o impulso da graça do Espírito Santo» (Unitatis redintegratio, 1), deu passos significativos em frente, tornando possível atingir convergências encorajadoras e consensos sobre diversificados aspectos, desenvolvendo entre as Igrejas e as Comunidades eclesiais relações de estima e de respeito recíproco, assim como de colaboração concreta diante dos desafios do mundo contemporâneo. Todavia, sabemos bem que ainda estamos distantes daquela unidade pela qual Cristo rezou e que encontramos reflectida no retrato da primeira comunidade de Jerusalém. A unidade à qual Cristo, mediante o seu Espírito, chama a Igreja não se realiza apenas no plano das estruturas organizativas, mas configura-se a um nível muito mais profundo, como unidade expressa «na confissão de uma só fé, na comum celebração do culto divino e na concórdia fraterna da família de Deus» (Ibid., n. 2). A busca do restabelecimento da unidade entre os cristãos divididos não pode, portanto, reduzir-se a um reconhecimento das diferenças recíprocas, nem à consecução de uma convivência pacífica: aquilo ao que aspiramos é a unidade pela qual o próprio Cristo rezou e que, por sua natureza, se manifesta na comunhão da fé, dos sacramentos e do ministério. O caminho rumo a esta unidade deve ser sentido como um imperativo moral, resposta a um chamamento específico do Senhor. Por isso, é necessário vencer a tentação da resignação e do pessimismo, que é falta de confiança no poder do Espírito Santo. O nosso dever consiste em continuarmos a percorrer com paixão o caminho rumo àquela meta, com um diálogo sério e rigoroso, para aprofundar o comum património teológico, litúrgico e espiritual; com o conhecimento recíproco; com a formação ecuménica das novas gerações; e, sobretudo, com a conversão do coração e com a oração. De facto, como o Concílio Vaticano II declarou, o «o santo propósito de reconciliar todos os cristãos na unidade de uma só e única Igreja de Cristo excede as forças e a capacidade humana» e, por isso, a nossa esperança deve ser depositada primeiramente «na oração de Cristo pela Igreja, no amor do Pai para connosco e no poder do Espírito Santo» (Ibid., n. 24).
Neste caminho de busca da plena unidade visível entre todos os cristãos acompanha-nos e sustém-nos o Apóstolo Paulo, cuja Festa da Conversão celebramos solenemente no dia de hoje. Antes que lhe aparecesse o Ressuscitado no caminho de Damasco, dizendo-lhe: «Eu sou Jesus, que tu persegues!» (Act 9, 5), ele era um dos adversários mais ferozes das primeiras comunidades cristãs. O evangelista Lucas descreve Saulo entre aqueles que aprovaram a morte de Estêvão, nos dias em que ocorria uma violenta perseguição contra os cristãos de Jerusalém (cf. Act 8, 1). Da Cidade Santa, Saulo partiu para estender a perseguição dos cristãos até à Síria e, depois da sua conversão, voltou ali para ser introduzido aos Apóstolos por Barnabé, que se fez garante da autenticidade do seu encontro com o Senhor. A partir de então, Paulo foi admitido, não só como membro da Igreja, mas também como pregador do Evangelho juntamente com os demais Apóstolos, tendo recebido como eles a manifestação do Senhor Ressuscitado e a vocação especial a ser «instrumento escolhido» para anunciar o seu Nome a todos os povos (cf. Act 9, 15). Nas suas longas viagens missionárias, peregrinando por diversas cidades e regiões, Paulo nunca esqueceu o vínculo de comunhão com a Igreja de Jerusalém. A colecta a favor dos cristãos daquela comunidade, que muito cedo tiveram necessidade de ser socorridos (cf. 1 Cor 16, 1), ocupou um lugar importante nas preocupações de Paulo, que a considerava não apenas uma obra de caridade, mas o sinal e a garantia da unidade e da comunhão entre as Igrejas por ele fundadas e a Comunidade primitiva da Cidade Santa, um sinal da unidade da única Igreja de Cristo.
Neste clima de intensa oração, desejo dirigir a minha cordial saudação a todos os presentes: ao Cardeal Francesco Monterisi, Arcipreste desta Basílica, ao Cardeal Kurt Koch, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, e aos demais Cardeais, aos Irmãos no episcopado e no sacerdócio, ao Abade e aos monges beneditinos desta antiga comunidade, aos religiosos, às religiosas e aos leigos que representam toda a assembleia diocesana de Roma. De modo especial, gostaria de saudar os Irmãos e as Irmãs das outras Igrejas e Comunidades eclesiais aqui representados nesta tarde. Entre eles, é-me particularmente grato dirigir uma saudação aos membros da Comissão mista internacional para o diálogo teológico entre a Igreja católica e as Igrejas Orientais ortodoxas, cuja reunião se realiza em Roma nestes dias. Confiemos ao Senhor o bom êxito do vosso encontro, a fim de que possa representar um passo em frente rumo à tão almejada unidade.
Dirijo uma saudação particular aos representantes da Igreja Unida Evangélica Luterana da Alemanha, que veio a Roma chefiada pelo Bispo regional da Baviera.
Caros irmãos e irmãs, confiantes na intercessão da Virgem Maria, Mãe de Cristo e Mãe da Igreja, invoquemos portanto o dom da unidade. Unidos a Maria, que no dia de Pentecostes estava presente no Cenáculo juntamente com os Apóstolos, dirijamo-nos a Deus, fonte de toda a dádiva, para que se renove para nós hoje o milagre do Pentecostes e, orientados pelo Espírito Santo, todos os cristãos restabeleçam a plena unidade em Cristo. Amém!
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